Mundo

Onde até o leite depende do petróleo

Nicholas Kulish © 2016 New York Times News Service Al Kharj, Arábia Saudita – Eis o que é preciso para manter uma fazenda de gado leiteiro no meio do deserto escaldante: 180 mil vacas Holstein, estábulos perfeitamente climatizados, bombas que trazem água do lençol freático, ração argentina e um sistema de refrigeração de última geração. Para […]

FAZENDA NA ARÁBIA SAUDITA:  preço do leite é controlado pelo governo, apesar do aumento dos custos da produção — como ração e a ducha para os animais se refrescarem no deserto / Sergey Ponomarev/ The New York Times

FAZENDA NA ARÁBIA SAUDITA: preço do leite é controlado pelo governo, apesar do aumento dos custos da produção — como ração e a ducha para os animais se refrescarem no deserto / Sergey Ponomarev/ The New York Times

DR

Da Redação

Publicado em 26 de outubro de 2016 às 17h34.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 17h59.

Nicholas Kulish © 2016 New York Times News Service

Al Kharj, Arábia Saudita – Eis o que é preciso para manter uma fazenda de gado leiteiro no meio do deserto escaldante: 180 mil vacas Holstein, estábulos perfeitamente climatizados, bombas que trazem água do lençol freático, ração argentina e um sistema de refrigeração de última geração. Para transportar o leite resfriado e outros produtos para toda a Península Arábica, acrescente mais nove mil veículos.

O responsável pela empresa, a Almarai, um modelo de gestão em um país que tenta se livrar da dependência do petróleo, é ninguém menos que o filho predileto do Rei Salman e segundo na linha do trono, o príncipe Mohammed bin Salman. Porém, até mesmo empresas como a Almarai, sem qualquer relação aparente com o petróleo, dependem da energia barata oferecida pelo reino.

Contudo, isso está chegando ao fim. Com o preço do petróleo em baixa e o alto custo da guerra no Iêmen, o orçamento saudita está esburacado, e o país enfrenta uma crise que levou a cortes nos gastos públicos, reduções nos salários e benefícios de funcionários públicos, além de uma série de novos impostos e taxas. Os enormes subsídios para combustível, água e eletricidade que encorajam o consumo desenfreado começam a ser controlados. Para a Almarai, uma das marcas mais importantes do Oriente Médio, isso significa um aumento de US$ 133 milhões nos gastos deste ano, afirmam funcionários da empresa.

O plano de reforma econômica do príncipe Mohammed gerou um enorme desconforto entre os cidadãos, que há muito tempo têm uma parte de sua vida financiada pelo Estado.

“O governo está sendo muito rápido na adoção de mudanças na Arábia Saudita e o povo está se sentindo deixado de lado”, afirmou a empresária Lama Alsulaiman, que é membro da diretoria da Câmera de Comércio e Indústria de Jiddah. “A vida e os negócios vão ter que mudar”.

Reescrever o contrato social representa um risco enorme para o príncipe herdeiro substituto, de 31 anos, que apostou sua reputação na transformação da economia.

“As pessoas querem saber se ele será capaz de fazer isso. Se for bem sucedido, ele se tornará rei. Caso contrário, estará perdido”, afirmou Ibrahim Alnahas, professor de Ciências Políticas na Universidade Rei Saud, em Riad, a capital do país.

As vastas reservas subterrâneas de petróleo do país alimentaram a maior parte da economia saudita. O petróleo bruto faz mais do que apenas dar bilhões de dólares em lucro para a Saudi Aramco, a petrolífera estatal, e a Sabic, a gigante química; ele também fornece energia para setores de alto consumo energético, como a produção de cimento e alumínio.

O déficit orçamentário do país foi de quase US$ 100 bilhões no ano passado. As reservas em moeda estrangeira do país caíram 25 por cento desde que o preço do petróleo despencou em 2014. O governo já emprestou dinheiro de bancos estrangeiros e tentará conseguir mais no mercado de títulos globais.

Fundos hedge preveem que o banco central saudita será forçado a rever o valor da moeda nacional, o rial saudita. Zach Schreiber, diretor do PointState Capital, que faturou US$ 1 bilhão apostando que o preço do petróleo iria cair, afirmou aos investidores em maio que o rial está “extremamente sobrevalorizado” e que o país tem “reservas para mais dois ou três anos, antes de chegar ao fundo do poço”.

O governo cortou repentinamente projetos de construção, forçando empreiteiras a dispensar trabalhadores. Este ano, trabalhadores estrangeiros atearam fogo em ônibus durante protestos em que exigiam meses de salários atrasados. O aumento drástico no valor das contas de água levou a tantos protestos nas mídias sociais que o ministro de Água e Eletricidade foi exonerado do cargo depois de dizer aos consumidores que eles deveriam cavar os próprios poços se estavam descontentes com os preços.

“Se você é saudita, certamente cresceu com essa expectativa de uma generosidade econômica que está chegando ao fim. As coisas provavelmente vão ficar mais difíceis para o governo na gestão das frustrações das pessoas comuns”, afirmou Adel Hamaizia, vice-diretor do Fórum de Estudos do Golfo e da Península Arábica da Universidade de Oxford.

Apesar da imagem da Arábia Saudita como um paraíso para xeques em suas Ferraris e estábulos repletos de cavalos de corrida, o faturamento per capita com o petróleo é muito menor do que em países pequenos como Qatar ou Kuwait. Existe pobreza no reino, assim como uma classe média cada vez mais ansiosa.

Mohammed, o príncipe herdeiro substituto, reuniu empresários, autoridades do governo e até mesmo atletas e artistas no Ritz-Carlton de Riad no fim do ano passado para conversar sobre os objetivos econômicos que sua equipe estava desenvolvendo. Consultores munidos com tablets viajaram por todo o país, conversando com os sauditas para determinar até onde o governo poderia cortar subsídios sem gerar protestos.

Depois de décadas de reinado do monarca octogenário, alguns jovens sauditas afirmam em entrevistas que se sentem animados com o papel desempenhado por um príncipe de sua geração.

“Os subsídios deveriam ter sido cortados há muito tempo. As coisas ainda são baratas demais. Esta garrafa de água é mais cara que a mesma quantidade de gasolina”, afirmou Salman M. Al Suhaibaney, empreendedor saudita.

Al Suhaibaney criou um aplicativo para caminhões de reboque chamado Morni, uma espécie de Uber para assistência na estrada, incluindo troca de pneus, entrega de gasolina e baterias descarregadas. A empresa faz parte de uma incubadora de startups financiada pelo governo em um prédio de escritórios de Riad. Com uma equipe de 20 jovens sauditas, a Morni é exatamente o tipo de empresa que o governo – em especial, o tecnológico príncipe herdeiro – espera que possa acomodar a mão-de-obra do país.

Contudo, mais dinheiro público é necessário neste momento para fechar o rombo no orçamento. O governo anunciou planos para mais que triplicar o faturamento do país com setores sem envolvimento com o petróleo até 2020, a começar pelo aumento do preço de vistos, multas mais altas para violações de trânsito e um imposto de pecado sobre bebidas açucaradas.

As autoridades aproveitaram todas as oportunidades de diminuir custos. Depois de cortar o salário de ministros, impedir novas contratações e eliminar os bônus e as horas-extras de todos os funcionários públicos, o governo anunciou recentemente que os trabalhadores seriam pagos de acordo com o calendário gregoriano (como no ocidente), ao invés do calendário islâmico, que é ligeiramente mais curto, cortando assim cerca de um dia por mês da folha de pagamentos.

“Se os salários diminuem e os custos aumentam, alguma coisa vai acabar dando errado”, afirmou Hamaizia.

Cortes de gastos do governo e das empresas, além de consumidores cada vez mais pressionados levam a um menor crescimento e aumento do desemprego. A única forma de criar empregos para os sauditas em um ambiente assim é se livrando de trabalhadores estrangeiros e substituindo-os por cidadãos sauditas. Essa política, conhecida como sauditização, já tentou ser colocada em prática nos anos 1980, mas não obteve sucesso e o número de trabalhadores estrangeiros saltou de um para 10 milhões desde então.

Agora o governo está pressionando mais as empresas. Trabalhadores estrangeiros são mais baratos, mas o governo aplica multas e se nega a renovar os vistos de quem vem de fora, caso o percentual de funcionários sauditas da empresa esteja abaixo do determinado. O reino deseja criar mais de 450 mil novas vagas de emprego no setor privado até 2020.

A Almarai emprega oito mil sauditas entre seus mais de 40 mil funcionários. Em uma manhã recente, 150 vacas Holsteins eram levadas à área de ordenha, onde trabalhadores do Quênia, das Filipinas e de outros países operavam as bombas automáticas. A empresa – que também produz iogurte e queijo, e conta com uma padaria – possui um centro de formação para sauditas que recebe 15 mil candidaturas para apenas 400 vagas.

Apesar do ambiente árido, a Arábia Saudita já contou com grandes fazendas e até exportava trigo antes de interromper a produção para poupar água. A Almarai comprou terras na Argentina, na Califórnia e no Arizona para produzir alfafa para suas vacas.

Ainda assim, é difícil lucrar. Apesar do aumento do preço de serviços e da ração, a empresa não obteve permissão para aumentar o preço do leite.

“Já tentamos no passado, mas o rei só nos deu um tapinha no ombro e perguntou o que estávamos fazendo”, afirmou Stuart Gouk, gerente de produção da fábrica. Aumentar o preço do leite poderia trazer repercussões políticas.

O reino deve cortar ainda mais subsídios. Pode ser que em algum momento os decisores políticos concluam que, assim como no caso do trigo, também não faz sentido produzir leite no deserto.

 

Acompanhe tudo sobre:Exame Hoje

Mais de Mundo

Venezuela: presidente do Parlamento diz que observadores internacionais "nunca mais" voltam ao país

Biden visita áreas devastadas pelo furacão Helene nos estados da Flórida e Geórgia

Milei veta lei de financiamento a universidades públicas mesmo após grande protesto em Buenos Aires

Trabalhadores portuários dos EUA concordam em suspender greve até 15 de janeiro