O tsunami e os fantasmas políticos no Japão
Ao se concentrar numa escola que foi devastada pelo tsunami de 2011, jornalista mostra aspectos da sociedade japonesa que raramente são apresentados
Da Redação
Publicado em 10 de fevereiro de 2018 às 07h48.
Última atualização em 10 de fevereiro de 2018 às 09h43.
Ghosts of the Tsunami: Death and Life in Japan’s Disaster Zone (“Os fantasmas do tsunami: morte e vida na zona de desastre no Japão”, numa tradução livre)
Autor: Richard Lloyd Parry
Editora MCD
320 páginas
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Entre 1830 e 1832, o artista japonês Katsushika Hokusai criou uma série de gravuras chamada “Trinta e seis vistas do Monte Fuji”. A montanha era frequente objeto de suas peças. Mais tarde, Hokusai compilou “Cem vistas do Monte Fuji”, com mais de uma centena de desenhos.
O fascínio é explicado por duas das principais religiões do país (budismo e taoísmo), que acreditam estar guardado no Fuji o segredo para a imortalidade. Nas “Trinta e seis vistas do Monte Fuji” está a peça conhecida como “A grande onda”, sua obra mais famosa. Ao fundo, vê-se a imponente montanha em tamanho reduzido. Em primeiro plano estão ondas sinuosas e ameaçadoras, uma referência ao ameaçador mar do Japão .
A obra de Hokusai fez muito sucesso em seu país natal e em todo o mundo. No entanto, demorou décadas para que ele fosse reconhecido individualmente no chamado mundo ocidental. O problema, aponta Jonathan Jones, colunista do jornal The Guardian, foi a generalização da arte japonesa feita pelos europeus, categorizando toda a produção nipônica sob a etiqueta japonaiserie (estilo de decoração e arte japonês).
Mas esta falha vem sendo corrigida. Entre maio e agosto de 2017, o British Museum recebeu a mostra “Beyond the wave” (“Para além da onda”), com uma significativa amostra da carreira de Hokusai. Sua produção não se resume à famosa gravura do revolto mar japonês e inclui desenhos de criaturas fantásticas, animais e outras paisagens. Ainda leva tempo para que os outros feitos do artista sejam reconhecidos, porém. Por enquanto, “A grande onda” continuará a ser um símbolo de seu país. Não é apenas o mundo ocidental, no entanto, que vê na fúria das ondas algo constitutivo da terra do sol nascente.
“Vulcão, terremoto, tsunami e tufão – eles são nossa cultura, são tão parte do Japão quanto as ricas colheitas no campo. Tudo que foi construído ao longo de cem anos foi destruído pelo tsunami. Mas, com o tempo, será construído novamente.” Esse é o veredito do Reverendo Kaneta, um dos personagens principais de Ghosts of the Tsunami: Death and Life in Japan’s Disaster Zone (“Os fantasmas do tsunami: morte e vida na zona de desastre no Japão”, numa tradução livre), do jornalista Richard Lloyd Parry.
Em de março de 2011, um terremoto atingiu a costa do Japão, o mais forte a atingir o país e o quarto na história do mundo – atingiu 9,1 na escala Richter, medida de intensidade para tremores de terra. Ele deslocou o eixo da Terra em 10 centímetros. Seguiu-se ao terremoto um tsunami que chegou a ter 40 metros de altura e que avançou 10 quilômetros costa adentro. Entre os que morreram afogados, queimados ou soterrados, as vítimas chegaram a 18.500. A tragédia ainda deixou 500.000 pessoas desabrigadas, causou um grave acidente na usina nuclear de Fukushima e 210 bilhões de dólares em prejuízos. Segundo Parry, o evento precipitou “a maior crise [política] do Japão após a Segunda Guerra Mundial”. “[Ele] acabou com a carreira de um primeiro-ministro e contribuiu para o desaparecimento de outro.”
“Nenhuma fotografia poderia descrever o espetáculo. Mesmo as imagens de televisão não conseguiram abranger a qualidade panorâmica do desastre, o significado do plano de destruição, de estar cercado por ele em todos os lados, às vezes até onde os olhos podiam ver”, explica Parry. “As cenas ao longo de quatrocentos quilômetros de costa naquela manhã lembravam as de Hiroshima e Nagasaki em agosto de 1945, mas com água substituída por fogo, lama por cinzas, o cheiro de peixe e lodo pelo de madeira queimada e fumaça.”
A onda de destruição atingiu inúmeras cidades e vilarejos do país. Mas o foco de Ghosts of the Tsunami é em uma tragédia particular. Na escola de ensino fundamental Okawa, localizada em Ishinomaki, cidade com 146.000 habitantes, 74 estudantes (de um total de 108) morreram no tsunami. Dos onze professores, dez morreram. O prédio onde mestres e pupilos se reuniam diariamente foi quase varrido do mapa. Restou a estrutura de aço e pistas do que antes eram salas de aula. “Ao invés de compreender uma única onda, o tsunami consistiu de pulsos repetidos de água”, descreve o autor. “Alguns dos objetos que caíram em seu abraço foram levantados e depositados perto de seu ponto de origem; mas muitos haviam sido sugados e jogados, puxados de volta e avançaram novamente, em uma operação irremediavelmente complexa de correntes internas e redemoinhos.”
Frente a tanta violência, podemos nos perguntar: O que havia de especial na tragédia de Okawa? Qual a justificativa de contar essa história? Obviamente, um tsunami dessa escala, com tantas mortes e destruição, se tornou um evento tanto histórico quanto capaz de definir a história de um país. O que choca e justifica o foco na morte das 74 crianças de Okawa é que, no tsunami, a morte de crianças foi uma exceção. “Quanto mais jovem você fosse, mais provável que você fosse sobreviver – e o número de crianças que foram mortas foi surpreendentemente pequeno”, revela Parry. “O tsunami”, completa, “foi um desastre que atingiu sobretudo os mais velhos. Cinquenta e quatro por cento daqueles que morreram tinham sessenta e cinco anos ou mais, e quanto mais velho você fosse, piores suas chances”.
O alto número de vítimas na escola foi um ponto fora da curva. Assolado por tremores há décadas, o país acumula “experiência tecnológica” para criar as construções mais resilientes no mundo. Por que, então, aquela escola específica viu tantas perdas? Essa é uma das perguntas centrais do livro.
Mesmo um país conhecido por sua eficiência, organização e estrito cumprimento das regras tem zonas cinzentas e falhas. Talvez seja essa a principal constatação de Richard Lloyd Parry. Os pais dos alunos levados pelo tsunami começaram em 2011 uma busca por respostas. O que deu errado em Okawa? Havia algum culpado? Por que as autoridades locais (e as nacionais) pareciam querer fugir de suas responsabilidades? A tragédia se transformou uma questão judicial, algo inédito em um país em que manifestar-se contra o governo e visto com maus olhos. “O caso”, resume o autor, “se centrou em duas questões”. “Os professores poderiam ter previsto a chegada do tsunami? E, em caso afirmativo, poderiam ter salvado as crianças?” Segundo relata o autor, as autoridades pareciam não estar preocupadas com o bem-estar das famílias. “A insensibilidade dos funcionários municipais, sua recusa em oferecer uma resposta humana ao sofrimento das famílias parecia inicialmente ser uma falha coletiva de caráter e de liderança.”
Se milhares morreram no tsunami, mais pessoas ainda sofreram as consequências da tragédia em vida. Relatos da aparição de fantasmas se proliferaram. Em alguns casos, pessoas se viam possuídas por espíritos perdidos, roubados repentinamente da vida pela água impiedosa: “Tsunamis em qualquer lugar destroem a propriedade e matam os vivos, mas no Japão eles infligem um terceiro tipo de ferimento, único e invisível, aos mortos”, diz o jornalista. Dos danos materiais cuidou-se rápido. Mas outros prejuízos foram ignorados pelo governo japonês.
Em Ghosts of the Tsunami, vemos aspectos da sociedade japonesa que raramente são apresentados. Ainda nos alimentamos dos clichês a respeito do país e nos iludimos a respeito das diferenças que o Brasil e o Japão têm. O livro, no entanto, mostra que as crises podem escancarar o que há de pior em qualquer povo. No caso da escola primária de Okawa, Parry detalha o que deu errado por culpa das omissões dos responsáveis pela segurança dos alunos. A proliferação de fantasmas revela a profunda solidão do luto nipônico e o desinteresse do país em enfrentar o fato de que cidades e comunidades inteiras se desestabilizaram e deixaram de existir. Os tais fantasmas do Tsunami são menos sobrenaturais e mais sociais e políticos. Mas isso não os torna menos difíceis de ver.