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O novo tabuleiro de Putin

Lourival Sant’Anna  Ainda que se aplique um desconto de 50% sobre tudo o que Donald Trump disse, sua política externa já representará um reposicionamento radical dos Estados Unidos, com vastas consequências sobre o mundo. Tanto assim que, dois meses antes de ele assumir a Casa Branca, o que só ocorrerá no dia 20 de janeiro, […]

TRUMP E PUTIN, NUM OUTDOOR EM MONTENEGRO: a Europa se mobiliza para investir mais em sua própria segurança  / Stevo Vasiljevic/ Reuters

TRUMP E PUTIN, NUM OUTDOOR EM MONTENEGRO: a Europa se mobiliza para investir mais em sua própria segurança / Stevo Vasiljevic/ Reuters

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Da Redação

Publicado em 19 de novembro de 2016 às 05h52.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h24.

Lourival Sant’Anna 

Ainda que se aplique um desconto de 50% sobre tudo o que Donald Trump disse, sua política externa já representará um reposicionamento radical dos Estados Unidos, com vastas consequências sobre o mundo. Tanto assim que, dois meses antes de ele assumir a Casa Branca, o que só ocorrerá no dia 20 de janeiro, a Europa já está se preparando para se defender, sem a ajuda de seu grande aliado e protetor desde a 2.ª Guerra Mundial, enquanto a Rússia se adianta para terminar o serviço na Síria: aniquilar os últimos focos da insurgência e restaurar o domínio de Bashar Assad sobre seu país — ou o que restou dele.

A União Europeia aprovou na segunda-feira 14 uma nova política de defesa, que prevê pela primeira vez o emprego de forças de pronta resposta, para estabilizar crises antes da chegada de uma missão de paz da ONU. Para isso, serão mobilizados batalhões de 1.500 soldados, que estão operacionais desde 2007, mas nunca foram empregados. A decisão reflete uma preocupação dos governos europeus de se colocar em prontidão para eventuais crises, sem contar com a participação dos Estados Unidos, que sob Trump deverão ficar menos dispostos a se engajar em operações que não envolvam uma ameaça imediata ao país.

Durante a campanha, o então candidato republicano afirmou que seu governo não iria ao socorro de aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) em caso de ameaça da Rússia se eles não arcassem com o custo financeiro da operação militar. Essa declaração deixou em estado de alerta os países do Mar Báltico e do Leste Europeu, que, com a dissolução da União Soviética, no início dos anos 90, saíram de sua esfera de influência e se tornaram membros da Otan.

A Otan decidiu em junho despachar quatro batalhões blindados para a Polônia e as ex-repúblicas soviéticas do Báltico — Lituânia, Estônia e Letônia — para reforçar suas defesas contra a Rússia. O governo russo reagiu deslocando, em outubro, mísseis para o seu território de Kaliningrado, localizado entre a Polônia e a Lituânia. A chegada de Trump à Casa Branca, em janeiro, coincidirá com o envio dos quatro batalhões da Otan, comandados pelos EUA, Canadá, Alemanha e Reino Unido, e com efetivos de muitos países da aliança. Os batalhões serão apoiados por tanques e veículos blindados, e representam uma escalada na presença da Otan no Leste Europeu.

No quintal de Putin

O ingresso dos países do Leste Europeu e do Báltico na Otan foi um motivos que levaram a Rússia a se sentir ameaçada pela aliança ocidental — sentimento usado pelo presidente Vladimir Putin para justificar seus investimentos em defesa e sua postura geral de confronto. Na visão de Putin e dos que o apoiam, foi o Ocidente que botou lenha nessas tensões, ao invadir esse tradicional “quintal” da Rússia.

Igualmente, Putin deu sinal vermelho às negociações de seu aliado, o ex-presidente Viktor Yanukovich, para a entrada da Ucrânia na UE. O recuo de Yanukovich levou às ruas maifestantes que desejavam a aproximação com a Europa e a saída da órbita de influência da Russia, culminando na queda de Yanukovich e na eleição de um governo pró-ocidental, em 2014. Putin reagiu anexando a Península da Crimeia, que pertencia à Ucrânia, e apoiando um movimento separatista armado em áreas de maioria russa no leste do país. Essas ofensivas do Kremlin, por sua vez, levaram os EUA e a UE a congelar os depósitos bancários de pessoas próximas a Putin, e a bloquear transações com importantes empresas russas das áreas de defesa e energia.

A UE deve renovar essas sanções em dezembro, como tem feito de seis em seis meses, mas os EUA provavelmente seguirão outro caminho, com Trump. O então candidato republicano reiterou várias vezes sua admiração por Putin, como um governante que segundo ele sabe defender os interesses de seu país, en contraste com Obama. Ele apoiou a anexação da Crimeia, uma vez que foi aprovada em referendo pela maioria russa na península. Investigações do FBI e da CIA apontaram para a participação de hackers russos que costumam trabalhar para o Kremlin no vazamento dos emails da candidata democrata Hillary Clinton pelo Wikileaks. E um ex-coordenador da campanha de Trump, Paul Manafort, trabalhou para Yanukovich e fez lobby para empresas ucranianas nos EUA.

Na segunda-feira, Putin e Trump, que não se conhecem pessoalmente (apenas participaram uma vez de um programa de TV, mas de lugares diferentes), conversaram pela primeira vez pelo telefone depois da eleição americana. De acordo com um comunicado do Kremlin, ambos concordaram sobre a necessidade de “unir esforços na luta contra o inimigo comum número 1 — o terrorismo e o extremismo internacionais”, e de buscar saídas para o conflito na Síria.

A nota diz ainda que Trump está “muito ansioso em ter um relacionamento forte e duradouro com a Rússia”, e um diálogo baseado nos “princípios da igualdade, do respeito mútuo e da não-interferência”, tendo constatado que as relações entre os dois países estão num patamar “insatisfatório”. A assessoria de Trump foi mais econômica: confirmou que Putin telefonou para parabenizar o presidente eleito pela vitória e que eles discutiram ameaças e desafios em comum, “questões econômicas estratégicas” e o relacionamento de longo prazo entre os dois países.

De fato, ambos têm o Estado Islâmico (EI) como inimigo comum. Mas, até aqui, os EUA e seus aliados, de um lado, e os russos, de outro, têm perseguido objetivos políticos divergentes na Síria, onde realizam bombardeios aéreos. O governo de Obama considera que não há solução para a Síria sem a saída de Bashar Assad. Já a Rússia e o Irã são os principais protetores do ditador. A Síria é uma aliada estratégica para a Rússia, que mantém no porto sírio de Tartous sua única base naval no Mediterrâneo.

No campo de batalha

Essa discrepância de objetivos se reflete no terreno. Os aviões russos bombardeiam constantemente as áreas do norte da Síria ocupadas pelos rebeldes do Exército Sírio Livre (ESL), apoiado pelos Estados Unidos. Trump tem comprado a versão russa de que está na Síria para combater o radicalismo islâmico, e afirmou que pretende cooperar com Putin nessa campanha.

Os governos russo e sírio têm aproveitado o vácuo de poder nos EUA — e agora a perspectiva de um possível aliado na Casa Branca — para avançar o máximo possível no norte. A Rússia enviou um porta-aviões e submarinos para a região, que transformou em um teatro de guerra inteiramente assimétrico, já que os rebeldes seculares contam apenas com peças de artilharia e fuzis. Na parte leste de Alepo, maior cidade do país, as forças sírias mantêm sob cerco em torno de 250.000 a 300.000 pessoas, sem comida e sob bombardeio, enquanto o ESL e seus aliados islâmicos rivais ao EI se recusam a se render.

Em entrevista coletiva ao lado da chanceler alemã Angela Merkel, em Berlim, na quinta-feira, Obama reconheceu que seria proveitosa uma melhora nas relações entre os EUA e a Rússia, mas disse esperar que Trump seja também firme na defesa dos interesses americanos. Antes de iniciar seu último giro pela Europa como presidente, Obama havia relatado que, em sua reunião com Trump, o republicano tinha se mostrado interessado em “manter as relações estratégicas centrais” dos Estados Unidos. Ao lado de Obama, Merkel lembrou: “Por mais de 70 anos conseguimos usufruir da paz. Viver em paz depende muito do respeito à integridade e à soberania territoriais de cada país europeu”.

A Europa pela Europa 

O secretário-geral da Otan, o norueguês Jens Stoltenberg, qualificou a conversa entre Trump e Putin “algo muito normal”, e lembrou que a aliança vem enfatizando há meses seu desejo de diálogo com a Rússia. Mas também acrescentou que a Otan não aceita a anexação da Crimeia. “Não há contradição entre defesa forte e diálogo político”, sentenciou Stoltenberg. “Achamos importante respeitar a integridade territorial e a soberania de todas as nações, incluindo a Ucrânia.”

O secretário-geral da Otan disse esperar que os EUA continuem desempenhando seu papel na aliança, mas afirmou que concorda com Trump que a Europa precisa investir mais na defesa. Segundo dados do Banco Mundial, os EUA gastaram no ano passado 3,3% de seu PIB nessa área. A Otan colocou como meta que cada integrante invista no mínimo 2% de seu PIB em defesa. Mas, de seus 26 membros pertencentes à UE, apenas 5 atingiram esse patamar em 2015: Reino Unido, França (2,1%), Polônia (2,2%), Estônia (2,0%) e a endividada Grécia (2,6%). Na média da UE, o gasto foi de 1,5%. A Turquia, que não pertence à UE, destinou 2,1%. O Canadá, o outro membro não europeu, investiu apenas 1,0% em defesa. Para efeitos de comparação, fora da Otan, a Rússia destinou 5% de seu PIB à defesa; a Ucrânia, 4%; e o Brasil, 1,4%.

Antes da saída do Reino Unido, quando a UE caminhava para uma integração mais estreita, chegou-se a discutir a criação de um Exército europeu. Essa ideia foi recusada na reunião dos ministros da Defesa na segunda-feira, mesmo com a possível retirada do guarda-chuva americano. O ministro da Defesa britânico, Michael Fallon, disse aos jornalistas, durante a reunião em Bruxelas: “Em vez de sonhar com um Exército europeu, a melhor abordagem diante da presidência de Trump é os países europeus aumentarem seus próprios gastos com a defesa”.

O ministro da Defesa da França, Jean-Yves Le Drian, concorda: “A Europa tem de ser capaz de cuidar de sua própria segurança. Isso permitirá à Europa dar um passo em direção a sua autonomia estratégica”.

As vitórias dos dois candidatos pró-Rússia nas eleições presidenciais de domingo 13 na Bulgária e na Moldova serviram para reforçar a posição de força de Putin e os temores na Europa. A Bulgária é integrante da UE e da Otan. Os dois países são parlamentaristas, e o presidente tem poderes limitados. Mesmo assim, os resultados têm significado simbólico. A Bulgária era um dos países sob influência da URSS e a Moldova era uma de suas 15 repúblicas.

O ex-comandante da Força Aérea Rumen Radev, que venceu o segundo turno na Bulgária com 59,4% dos votos, defende o fim das sanções da UE contra a Rússia. Depois de sua vitória, o primeiro-ministro Boyko Borisov anunciou sua renúncia, o que pode precipitar eleições gerais.

Na Moldova, Igor Dodon, líder do Partido Socialista, pró-Rússia, obteve 52,2% no segundo turno, na primeira eleição presidencial direta no país desde 1997. O resultado representa uma mudança de humor no país, há sete anos governado por coalizões pró-ocidentais. Embora não chefie o governo, o presidente na Moldova pode, por exemplo, convocar plebiscitos, que têm força legal acima das votações do Parlamento, observa a empresa de consultoria de risco americana Stratfor.

Realmente, a maré virou, e Putin está surfando na onda.

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