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O machismo em xeque, agora na política

A primeira ministra britânica Theresa May joga luz sobre o machismo renitente na política, numa cultura que encobre agressões e assédio

A premiê britânica Theresa May (Peter Nicholls/Reuters)
DR

Da Redação

Publicado em 25 de novembro de 2017 às 07h41.

Última atualização em 25 de novembro de 2017 às 16h00.

Os episódios de assédio sexual por poderosos, por sorte, têm saído das sombras. O ex-produtor de Hollywood Harvey Weinstein foi acusado por mais de 100 mulheres de assédio ou abuso sexual. O ator Kevin Spacey, da série House of Cards, caiu em desgraça. Charlie Rose, um dos principais âncoras da TV americana, foi demitido. Há alguns meses, o ex-presidente do Uber, Travis Kalanik, foi acusado de não investigar nem punir as mais de 215 denúncias de abuso sexual dentro da empresa. Perdeu o cargo. Os casos são tantos que executivos do Vale do Silício estão cancelando festas de fim de ano sem saber como os funcionários devem, afinal, se comportar.

Se as denúncias tomaram as empresas e a indústria do entretenimento, o universo da política , tradicionalmente machista, parecia mais refratário. Há pouco mais de um ano, nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump foi eleito mesmo após dezenas de mulheres o acusarem de assédio sexual. O ex-presidente George H. W. Bush também foi acusado, por sete mulheres, de abuso sexual. Outro ex-presidente, Bill Clinton, quase perdeu o cargo pelo episódio com a estagiária Monica Lewinsky, mas, como a economia ia bem, ele foi mantido pelo Congresso.

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Mas nos últimos dias o vento parece ter mudado de lado nos Estados Unidos e também do outro lado do Atlântico, no Reino Unido. Na semana passada, o senador democrata dos Estados Unidos Al Franken, uma das estrelas do partido, foi acusado de assediar a ex-colega de trabalho Leeann Tweeden, quando trabalhavam juntos, em 2006. Franken, que era até cotado para concorrer à presidência, parece carta fora do baralho.

No Reino Unido, o ministro de Defesa, Michael Fallon, foi acusado por duas mulheres de assédio sexual no início de novembro e acabou renunciando ao cargo. Depois desta denúncia, uma lista com cerca de 40 nomes de homens que teriam assediado sexualmente funcionárias rodou pelos escritórios do governo. O excesso de denúncias levou a primeira-ministra britânica Theresa May a se reunir com líderes dos partidos para criar ações para investigar os episódios. May afirmou que estas ações ajudariam a criar uma nova cultura de respeito no governo britânico. Sua atitude tem sido vista como uma importante mudança de postura contra o machismo renitente nas grandes esferas políticas globais.

Para a professora de representação política da Universidade de Birkbeck, na Inglaterra, Jovi Lovenduski, May é a primeira líder britânica a tomar uma iniciativa deste tipo. “A ação de May aconteceu porque ela se importa com isso”, afirma. Mas Lovenduski ressalta que a iniciativa tende a ir mais para a área jurídica do que a área legislativa, uma vez que May se encontra em uma situação política delicada e não pode perder mais aliados do que já perdeu. Principal nome do Brexit, o desembarque britânico da União Europeia, Theresa May tem perdido apoio de líderes políticos, que a acusam de retardar o processo de saída da União Europeia. Lovenduski ressalta ainda que se May não for lembrada pelo Brexit, ela com certeza será lembrada pelas ações contra o assédio sexual.

A dificuldade em combater condutas machistas na política reside justamente no fato de ser um ambiente majoritariamente masculino. “Áreas com mais homens tendem a ser mais ‘protegidas’ de acusações de assédio. Portanto, a mudança deste cenário está diretamente ligada ao aumento no número de mulheres em cargos mais elevados”.

Conscientes da necessidade, alguns países tomaram medidas para aumentar a presença de mulheres em cargos de decisões. Ruanda é o melhor exemplo de como políticas de incentivo e cotas para mulheres podem garantir que elas ocupem os cargos decisivos. Desde 2003, o país reserva 30% dos assentos parlamentares para mulheres. Segundo a ONU Mulheres, 61,3% dos cargos da Câmara no país são ocupados por mulheres. No Senado, elas ocupam 38,5%. Outros 23 países também possuem políticas de cotas nos Congressos e Senados, e garantem que 20,8% (média mundial) dos cargos legislativos sejam ocupados por mulheres. Segundo o Fórum Econômico Mundial, 55 de 146 países eram governados por mulheres, entre 2014 e 2016.

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E o Brasil?

O Brasil, apesar de ter eleito uma mulher para a presidência duas vezes, é grande deficitário neste quesito. A Câmara dos Deputados é ocupada somente por 11% de mulheres, e o Senado, por 14%. O país se encontra em 155º lugar no ranking de Mulheres no poder Legislativo, da ONU Mulheres.

Em 2003, o governo federal criou a  Secretaria de Políticas para as Mulheres, que tinha como objetivo ampliar a participação feminina em órgãos públicos. Mas neste ano a Secretaria perdeu o status de ministério e sofreu um corte de quase 60% do orçamento.

No Brasil, uma proposta de Emenda à Constituição (PEC 134/2015) pode ser votada neste ano, e prevê cotas (tímidas) para mulheres no Senado, na Câmara dos Deputados, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras municipais. A proposta prevê que 10% de vagas na primeira eleição após a criação das cotas sejam destinas à mulheres; depois, 12% das vagas seriam guardadas na segunda eleição, e 16% na terceira.

Não é somente no Legislativo que as diferenças entre homens e mulheres é expressiva. Michel Temer, não custa lembrar, montou um ministério sem nenhuma mulher. Foi somente depois de muita crítica e muitas trocas que o governo de Temer teve a presença de uma mulher. Uma só. Dos 22 ministérios, somente o de Direitos Humanos é administrado por uma mulher, Luislinda Valois, que assumiu neste ano.

Para a professora de Ciências Sociais e especialista em gêneros em instituições políticas da Universidade Federal de Viçosa (MG), Daniela Rezende, a mudança no poder Legislativo é apenas o primeiro passo para alterar a cultura machista das instituições. “Mesmo com um aumento da representatividade, as mulheres podem não conseguir superar a cultura institucional machista, e também enfrentar dificuldade para alterar propostas que dizem respeito diretamente a elas mesmas”, diz.

Neste mês tivemos um exemplo marcante. A Proposta de Emenda à Constituição 181/15, que altera a autorização de abortos, mesmo em casos de estupro, foi aprovado por uma comissão especial composta por 18 deputados homens, e uma mulher. Somente a deputada Érika Kokay (PT-DF) votou contra a mudança.

Isso é só o normal de Brasília. Mas há os casos mais extremos. Em 2014, o deputado federal e possível candidato à presidência, Jair Bolsonaro (PSC-RJ) afirmou que a deputada Maria do Rosário (PT-RS) não merecia ser estuprada porque era “muito feia”. Em 2015, o Tribunal de justiça do Distrito Federal condenou o deputado a pagar 10.000 reais a Maria do Rosário. Ele recorreu à condenação, mas o  Superior Tribunal de Justiça  manteve a punição.

Em agosto deste ano, a deputada Shéridan Oliveira (PSDB-RR) foi chamada de “gostosa” quando seu nome foi anunciado em uma votação na Câmara dos Deputados. Ela estava indo discursar sobre a denúncia contra o então presidente Michel Temer. Mesmo não sabendo quem foi que proferiu a ofensa, a deputada recorreu à Comissão de Ética para investigar e tomar providências sobre o ocorrido.

Ventos de mudança chegaram ao Itamaraty. Na semana passada, o embaixador que representa o Brasil na FAO (a Fundação das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), em Roma, João Carlos Souza-Gomes, foi denunciado por assédio sexual e moral. Ele foi afastado do cargo e pode ser punido com aposentadoria compulsória.

Uma Comissão criada pelo Ministério das Relações Exteriores, criado para investigar  e prevenir casos de abuso no Itamaraty realizou uma pesquisa, na mesma época da denúncia, em que 66% dos entrevistados afirmaram ter sido vítimas de abusos realizados por João Carlos. Em 2013, outro diplomata, Américo Fontenelle, também foi acusado de assédio sexual. O caso, na época, não foi investigado, e a única punição que o embaixador sofreu foi a de ser transferido de país.

Governar como um homem

No fim de 2016, o jornal inglês Financial Times premiou a ex-presidente Dilma Rousseff com o título de mulher do ano. Ao receber o prêmio, Dilma afirmou que o país era governado por homens brancos e ricos, e que quando uma mulher ocupava um cargo de autoridade, era conhecida como “uma pessoa dura”, diferente de um homem, que era conhecido como um governante “forte”.

“Dilma era criticada porque não tinha jogo de cintura, e era muito durona. Mas na Argentina, a ex-presidente Cristina Kirchner era criticada exatamente pelo oposto. Ou seja, se a presidente do país é muito vaidosa, ela é criticada, se é muito durona, também é criticada”, diz Daniela Rezende. Para a professora, essa incoerência nos padrões revela um ambiente em que só um candidato homem consegue se encaixar.

A boa notícia é que medidas como a criação de Comissões para investigar os casos de assédio, e a implementação de cotas para colocar mais mulheres no poder devem, pouco a pouco, modificar o cenário.  Como um ciclo que se retroalimenta, quanto mais participação política, mais combate ao assédio sexual, e mais mudanças na cultura machista.

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