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Brasil não tem uma agenda estratégica com a maior economia do mundo, diz Marcos Troyjo

Em entrevista à EXAME, ex-presidente do NDB, banco de fomento dos Brics, analisa o impacto de uma nova gestão Trump para o comércio com o Brasil, China e para o tabuleiro geopolítico

Marcos Troyjo, ex-presidente do NDB, banco dos Brics: planos de Trump podem diminuir a atratividade de outros países que também estão buscando sua revitalização industrial, como é o caso do Brasil (Um Brasil/Divulgação)

Marcos Troyjo, ex-presidente do NDB, banco dos Brics: planos de Trump podem diminuir a atratividade de outros países que também estão buscando sua revitalização industrial, como é o caso do Brasil (Um Brasil/Divulgação)

Luciano Pádua
Luciano Pádua

Editor de Macroeconomia

Publicado em 10 de novembro de 2024 às 14h07.

Última atualização em 10 de novembro de 2024 às 15h02.

O economista e diplomata Marcos Troyjo, ex-secretário especial de Comércio Exterior durante o governo de Jair Bolsonaro e ex-presidente do New Development Bank, o banco de desenvolvimento dos Brics, é enfático: mais importante do que as medidas de uma nova administração de Donald Trump nos Estados Unidos é saber como o governo brasileiro se comportará diante da certeza de que ele ocupará a Casa Branca pelos próximos anos.

"É como na Fórmula 1, que aconteceu em São Paulo. Mais importante do que saber se vai chover ou não é estar preparado caso chova", diz em entrevista à EXAME. E, nesse aspecto, o Brasil parece pouco posicionado, em sua visão. "Não temos hoje uma agenda estratégica com maior a economia do mundo", afirma.

Em longa conversa com a EXAME diretamente de Pequim, na China, onde participou de um evento de geopolítica com Daron Acemoglu,um dos vencedores do prêmio Nobel de economia, Troyjo analisa o que esperar do impacto de uma nova gestão Trump para o comércio global e sua relação com a China, para os conflitos entre Ucrânia e Rússia e no Oriente Médio, além de  destrinchar o papel do Brasil no tabuleiro de interesses globais e o futuro dos BRICs.

Leia a entrevista na íntegra.

Qual sua avaliação sobre a eleição de Trump em 2016 e as mudanças na política externa americana?

Em 2016, quando terminou a apuração, alguns estavam mencionando uma canção do R.E.M., cujo refrão é "It's the end of the world as we know it". Se prenunciava uma mudança na tradição da política externa americana que vinha desde 1947 quando George Frost Kennan, o ministro-conselheiro da embaixada dos EUA em Moscou, mandou para o Departamento de Estado um texto chamado "O Longo Telegrama". Nele, dizia que a tendência da União Soviética era de uma expansão contínua e que, portanto, o caminho dos Estados Unidos seria erguer um "cordão sanitário". Era um dos substratos que dão a matéria-prima para uma primeira guerra fria. Aparentemente, a eleição de Trump em 2016 mudava essa história de engajamento dos Estados Unidos no mundo no que aparentemente seria uma volta ao isolacionismo.

E isso aconteceu?

Em alguma medida aconteceu, em outra, não. Parte disso talvez tenha sido o resultado também de uma conjuntura de que o Trump não esperava ganhar em 2016.

Como assim?

Como ele não esperava ganhar, rapidamente teve de improvisar em ações específicas do governo, teve que improvisar a entrevista de pessoas para cargos de absoluta importância. A máquina governamental dos EUA tem muitos cargos que são preenchidos diretamente pela escolha do titular da Casa Branca. Nesse aspecto, essa eleição é muito diferente da de oito anos atrás. Esses postos de liderança estão todos mapeados agora por essa campanha. E não apenas ele sabe quem será, mas também tem um plano de voo para cada uma delas. É uma música que será orquestrada com partitura, ao contrário daquele momento, que foi mais uma jam session. Provavelmente teremos mais consistência dessa vez.

E o que podemos esperar internacionalmente desse Trump 2.0?

Uma palavra que talvez marque o que se pronuncia, é a palavra política externa transacional. Aliás, está ganhando força a expressão transacionalismo, em que ideologia, valores, uma visão mais de conjunto é menos importante e ganhos pontuais contam mais. Curiosamente, quando alguns fazem uma leitura da política externa ou da política econômica chinesa também se diz que eles são muito transacionais. Mas há alguns pontos de interrogação sobre a maneira pela qual isso vai se implementar.

Quais?

Em áreas como o futuro da OTAN. O presidente Trump tem muitas críticas sobre o que considera como sobrepeso orçamentário dos EUA. Há dúvidas sobre a Europa como aliada ou como competidora. O que talvez tenhamos menos surpresas é nas relações com a China. Aliás, não apenas menos surpresas, como também talvez menos diferenças do que será a segunda presidência dele para que foi essa administração democrata que se encerra.

Porque a gestão Biden manteve uma linha de engajamento com a China semelhante à de Trump?

Você sabe que os chineses não acham isso? Porque em um determinado momento, ali na virada da primeira administração Trump para a de Biden, criou-se uma frase que para pautar as relações econômicas com Pequim:  small yards, high fences (quintal pequeno e cercas altas, em tradução livre).

E qual a importância?

Trata-se de um quintal pequeno, mas com uma cerca muito alta. Ou seja, você tem um número restrito de produtos, de tecnologias sensíveis, que ficam fora do comércio bilateral. Não apenas você tem tarifas intransponíveis, mas em alguns casos você tem a ilegalidade na transação. Ou seja, são tecnologias que não cabem ao comércio bilateral. Mas se supunha que seriam poucas. Durante a presidência Biden, não apenas as cercas não abaixaram, como o quintal aumentou de tamanho. Mais produtos, mais tecnologias foram inseridas nessas listas sujeitas a sobrepreço ou a não comporem o comércio bilateral. Acho que isso vai se manter e veremos mais sobretaxas.

Vai aumentar o "quintal", então?

Vai aumentar o quintal e pelo que ouvimos vai aumentar também a cerca. Se há uma tarifa de 150% sobre veículos elétricos chineses, então, aumentaram as tarifas. Se aumentaram restrições, por exemplo, ao comércio de componentes plásticos para a indústria de brinquedos, aumentou o quintal, porque não é necessariamente tecnologia sensível. Isso também é um pouco estilo de negociação: você morde para eventualmente continuar mordendo ou para assoprar um pouco, para tirar benefício ou acesso ao mercado chinês ou outros mercados do mundo a produtos e serviços americanos.

Para além de China, como uma nova administração Trump, que prometeu tarifas de importação pesadas, pode afetar o comércio global?

No primeiro momento aumenta a atratividade daqueles mercados com os quais os EUA mantém acordos de livre comércio, como México e Canadá. No entanto, há também a dúvida de que esses próprios acordos podem passar por renegociações. Dependendo de como essas tarifas forem implementadas, significa maiores custos de produção no mundo, o que leva a inflação, aumento de custos e de preço para os consumidores americanos. Por outro lado, pode levar a uma especulação, ainda que no curto prazo, de fortalecimento da volta de elos nas cadeias de produção das multinacionais americanas para produzir em território doméstico. Tudo isso não é simples e não é do dia para a noite.

Qual o desafio prático?

Isso exige um esforço de Capex [investimento] muito grande. Se levarmos em consideração que a maioria das empresas americanas tem ações em bolsa e apresentam resultados regulares sazonais, esses esforços de Capex machucam a performance dessas empresas.

Para circundar isso, só com dinheiro do governo?

O que não é simples. Nos últimos anos, foi implementado o Inflaction Reduction Act, de nome eufemístico mas que é um grande programa de reindustrialização. Em alguns casos foi de volta de atividade de manufaturas aos EUA e em outros de criação de capacidade endógena para semicondutores, chips, robótica e novos materiais. Já tem um esforço muito grande, a dívida americana está no maior patamar da história. Portanto, o governo já se encontra sobrecarregado com isso.

Podemos esperar que a realidade fique "no meio do caminho" do que Trump prometeu?

Sim, mas acho que ele vai tentar muito entregar em outra frente, que, aliás, é a frente que mais impacta o Brasil. Vivemos, nesses últimos oito anos, uma tentativa por parte de vários países de diminuir a sua exposição de risco relativo à China. A China, que nos últimos 40 anos foi crescentemente se tornando na fábrica do mundo, durante a Covid-19 se mostrou arriscada. Uma espécie de hiperdependência da China para a cadeia de produção se mostrou uma aposta arriscada se você quer mais previsibilidade dessas cadeias. Essa tentativa de diminuir a exposição a risco na China, levou a fenômenos interessantes.

Quais?

Um é o fenômeno do nearshoring (diminuir a exposição relativa nas cadeias chinesas, trazendo essas atividades para mais próximo do mercado de destino). Quem ganha nesse jogo? México e Canadá. Por outro lado, há a ideia do friendshoring (reposicionar parte do seu parque produtivo em países mais amistosos). O que é diferente agora dessa presidência de Trump: eles entendem que se desregulamentar, desburocratizar a atividade econômica dos EUA, associando isso a um corte de impostos, essas atividades de nearshoring ou friendshoring que estavam indo para a Índia, México, Tanzânia ou Vietnã, podem, na realidade, voltar para os EUA.

E qual o impacto para o Brasil?

Isso vai potencialmente diminuir a atratividade de outros países que também estão buscando sua revitalização industrial, como é o caso do Brasil.

Em que medida?

Se você está em uma determinada indústria, digamos uma indústria de plásticos, e quer diminuir a sua exposição ao mercado chinês, para onde você vai? Vai para o México, com uma carga tributária de 19% do PIB, para a Índia, onde a carga tributária 20% do PIB, para os EUA, onde a carga tributária é 27% do PIB e com tendência a cair, diminuir a burocracia, regulamentação e impostos, ou você vai para o Brasil, onde a carga tributária é 33% do PIB, e onde não se está fazendo os esforços fiscais com reformas estruturais necessárias para deixar o país mais leve a tarifas?

Como acha que vai ser uma relação agora Brasil-Trump?

O presidente Trump tem predileções pessoais. Ele, por exemplo, tem uma excelente relação com o ex-presidente Bolsonaro. Ele tem uma excelente relação com o atual presidente da Argentina, Javier Milei, e boa relação com o presidente da França, Emmanuel Macron. Para ele, as relações pessoais são muito importantes. E tem também a questão de agendas comuns. Por exemplo, Trump e o ex-presidente Bolsonaro têm uma agenda semelhante do ponto de vista da agenda de valores. Têm uma visão semelhante do ponto de vista da diminuição do papel do Estado na economia.

O governo Lula fica em desvantagem?

O Brasil fica com menor importância relativa do que outros países onde há uma coincidência, seja de afeição pessoal, seja de agenda de valores. No entanto, mais importante do que o que Trump vai fazer na presidência é o que o Brasil vai fazer baseado na certeza de que teremos quatros anos de uma presidência Trump na Casa Branca. É como na Fórmula 1, que aconteceu em São Paulo. Mais importante do que saber se vai chover ou não é estar preparado caso chova.

Vimos um aumento recente da exportação de produtos industrializados brasileiros para os Estados Unidos. Esse fluxo de comércio vai ser afetado?

Há algo inercial, que é o movimento natural das economias. Mas o principal desafio é ver como voamos abaixo do que poderíamos. EUA e Brasil são as duas maiores economias do continente americano e as duas maiores democracias do Ocidente. Têm sociedades civis com excelentes relações. Por outro lado, hoje não há nenhum grande projeto estratégico entre os EUA e o Brasil, seja na logística, na irrigação ou no desenvolvimento de novas energias. Ainda não conseguimos superar o tema da bitributação entre os dois países, não conseguimos fazer avançar uma agenda que permitisse negociar acordos de comércio. Não temos um grupo mais seleto dos países do continente reunindo as suas principais economias, como EUA, Brasil, Canadá e México, para discutir de maneira mais fluida do que a OEA.

É só culpa do Brasil, nesse caso?

Não, os Estados Unidos também não estão pensando muito na gente. A última vez que se fez algo bem estruturado da parte dos americanos foi o Council of Foreign Relations [o Conselho de Relações Exteriores], em 2001. Perdemos a oportunidade de ser co-arquitetos da área de livre comércio das Américas. Acabamos desperdiçando a primeira presidência de Trump. Durante algum tempo, ele tinha o Trade Promotion Authority. A gente não conseguiu avançar. Agora que o Brasil está na presidência do G20, desperdiçamos muito tempo com agendas que não vão sair do papel, como aquela de taxar supericos. Então, não temos hoje uma agenda estratégica com a maior economia do mundo.

Ao mesmo tempo, temos uma agenda bem forte, inclusive bilateral, com a China, né?

Sim. Temos uma agenda forte com a China, e talvez seja porque os chineses sabem exatamente o que querem: segurança alimentar e diversificar a alocação internacional de investimentos. Os chineses têm uma predileção pelo crescimento mediante o investimento de infraestrutura. Essa não é apenas a lição de casa que se mostrou verdadeira para eles domesticamente, mas eles abriram um compasso e fazem mais isso no mundo.

E isso foi consistente nos últimos anos...

Mesmo durante a presidência Bolsonaro, quando houve muitas críticas de parte a parte entre Brasil e China, em 2021 o Brasil se tornou o principal destino de investimento estrangeiro direto chinês e a complementaridade das economias fez com que o nosso fluxo comercial atingisse níveis recordes. Para se ter uma ideia do que significa Brasil e China: em 2001, o comércio Brasil-China era de 1 bilhão de dólares por ano. Hoje, é de 1 bilhão de dólares a cada 55 horas. Agora, se você olhar para a pauta comercial Brasil-Estados Unidos, a evolução nem de perto teve a mesma progressão.

Uma maneira de pensar isso é que o Brasil vai ficar "escanteado"?

Quando estávamos na equipe econômica do Paulo Guedes, a gente entendia que um dos nossos itens fundamentais na relação com os Estados Unidos é conseguir um endosso para nos tornarmos membros da OCDE. No momento que você se torna membro da OCDE, passa a ter acesso a determinados capitais e fundos que utilizam as regras de governança sujeitos à OCDE. Então, abrem-se novas chaves para fontes de liquidez muito importantes. Se nos tornássemos membros da OCDE, o Brasil seria o único país do mundo membro da OCDE, do G20 e dos BRICS. Seria uma posição única.

E qual seria a vantagem dessa posição?

Em relações econômicas internacionais, você fortalece a sua atração em relação à China se tem boas perspectivas com os EUA. Você fortalece a sua posição relativa com os EUA se tem fortes relações com a Europa. Ou seja, é um jogo em que, na medida em que você consegue distribuir estrategicamente as suas parcerias econômicas, você fica mais forte em cada uma das relações bilaterais.

Temos boa relação diplomática global, mas a China tem sido muito preponderante...

Por causa da complementariedade, que é muito grande. Num mundo em que há uma competição cada vez mais acirrada, não podemos fazer uma escolha entre esse ou aquele parceiro. Precisamos atuar de acordo com os nossos interesses nos diferentes tabuleiros. Agora, em uma economia como a americana, que caminha para um PIB nominal de 27 trilhões de dólares, teríamos de estar mais vinculados a essa expansão americana do que estamos.

Você vê risco de escalada na relação entre China e Estados Unidos, especialmente com a questão de Taiwan?

Taiwan e o mar da China meridional são uma área de tensão, mas não entendo que haverá um primeiro movimento no curto prazo da parte dos chineses. Eles têm muita coisa em jogo. O comércio bilateral deles com Taiwan, por exemplo, é muito intenso. E em Taiwan fica a sede da TSMC, a principal fábrica de semicondutores do mundo. Se numa conflagração convencional você atingir aquelas instalações, a humanidade volta atrás 25 anos. Há quem compare o que a Rússia fez em relação à Ucrânia ao que a China poderia fazer com Taiwan. Para mim, não há paralelo.

Mas, na retórica, podemos ver um tensionamento?

Sim, a política americana para a China -- que é o resultado de uma mudança de conversa sugerida e implementada pelo presidente Trump -- não apenas continuou durante a presidência Biden, mas ganhou ares supra-partidários. Na Casa Branca, seja republicano ou democrata, vai continuar com essa visão em relação à China. E muito dessa posição foi captada em um texto publicado pelo atual conselheiro da Segurança Nacional, Jake Sullivan, chamado "As fontes do poder americano".

O que seria esse entendimento?

Nada mais é do que uma espécie de certidão de nascimento de uma nova guerra fria e que ele chama, de uma maneira muito elegante, de uma era de tensão e interdependência. Agora, há o nível do discurso de política externa e econômica, mas tem a realidade concreta. Vemos os europeus e os japoneses disputando cada milímetro do mercado chinês. E a China ainda como grande destino da exportação de serviços dos EUA. Vemos uma tentativa de diminuição da exposição à China, mas quando você olhamos para custos relativos e o potencial de produtividade de outros mercados, essa velocidade de saída da China fica mais desacelerada.

E há também um forte comércio bilateral...

O Xi Jinping esteve na reunião do Fórum Econômico da Ásia e do Pacífico (Apec), nos EUA no ano passado. A Katherine Tai, a czarina do comércio bilateral entre EUA e China, falou sobre os quase de 800 bilhões de dólares de comércio entre os países. Brasil e a China têm um comércio bilateral de 150 bilhões de dólares. O grau de interdependência ainda é gigantesco. Apesar de desacelerar nos últimos anos, no século XXI o principal destino do investimento estrangeiro direto chinês foi os EUA, e o principal destino do investimento direto americano foi a China. Há um estoque de investimento acumulado muito grande.

O senhor citou a Ucrânia como uma má comparação. Em relação aos dois grandes conflitos que acontecem hoje, a guerra da Ucrânia e a situação do Oriente Médio, como podemos entender um governo Trump?

Em relação ao Oriente Médio, como o governo Biden, o primeiro aliado é Israel. O governo Trump vai ter muita sensibilidade e muita atenção com as posições da Arábia Saudita, sabendo que é um parceiro fundamental naquela região. A Arábia Saudita estava prestes a formalizar um acordo de normalização de relações com Israel antes dos atentados de outubro do ano passado. então terá muito apoio a Israel, mas muitas consultas e interações com os sauditas.

E a Ucrânia?

Em relação à Ucrânia: todo mundo trabalha com a ideia de que a presidência do Trump seria mais simpática ao Kremlin. Não coloco apostas nisso. Assisti nesses tempos declarações de Mike Pompeo, que foi secretário de Estado do Trump e pode vir a ter uma nova posição nessa administração, sempre muito adverso à invasão russa da Ucrânia. A força também da estrutura de política americana do Departamento de Estado vai ter um peso muito grande.

A vitória do Trump permite pensar que a esquerda global estaria nas cordas?

Está aumentando no mundo um núcleo de ideias e valores que tem que ver com um cansaço da agenda woke, um questionamento à agenda ESG, com a ideia de que países dinâmicos, como é o caso da China e Arábia Saudita, estão focados naquilo que realmente importa. E que, portanto, esses outros temas de wokeismo ou da agenda ESG são obstáculos à competitividade americana. Sem dúvida alguma, há uma grande crítica que leva a uma resposta à parcialidade da chamada mídia tradicional. Há uma resistência a políticos tradicionais e ao modo de fazer política tradicional. Tudo isso junto produz um movimento que encontra expressão, por exemplo, na eleição do presidente Trump e na eleição do presidente Milei, na Argentina.

Como é que você vê agora o papel do BRICS com essa mudança nos Estados Unidos?

O BRICS no começo era uma espécie de resultado da evolução de economias emergentes. No sentido de que elas iam ocupar uma fatia cada vez maior do PIB global. Ou seja, o BRICS ele surge como uma ideia do futuro da economia global, de onde virá o crescimento e a formação da demanda no mundo. No final da década retrasada, começou um movimento para que Brasil, Rússia e China trocassem ideias, fizessem encontros regulares e eventualmente até criassem instituições comuns, como é o caso do Banco de Desenvolvimento, o NDB. Era uma plataforma para trocar impressões e construir interesses comuns, como acessar capitais de longo prazo para resolver problemas de insuficiência de infraestrutura. Essa agenda era o que estava em voga e que também marcou muito a minha presidência do banco. Mobilizar recursos para projetos de saneamento básico, energia solar, combate a enchentes, ferrovias.

E o que mudou?

Da reunião da África do Sul do ano passado para cá, houve a inclusão de países muito díspares. A Etiópia, por exemplo, que entrou nos BRICS, tem uma renda per capita pouco superior a mil dólares. Não é necessariamente uma economia de grande peso relativo muito grande. O Irã é um dos países mais sancionados do mundo. Houve uma mudança daquilo que eram as duas primeiras manifestações de BRICS. Uma era: são quatro nações que vão ocupar uma parcela cada vez mais importante da economia mundial. E depois, países que se reúnem e eventualmente e até criam as instituições para promover interesses comuns, como facilitar acesso a capitais para o desenvolvimento sustentável e infraestrutura. Esse BRICS agora tem um ponto de interrogação.

Qual?

Muita gente gosta de vê-los como uma aliança anti-ocidental, mas, por exemplo, a Arábia Saudita, que foi convidada para participar, e pelo que me consta ela não aceitou formalmente, tem muitas relações com o Ocidente, tem excelente parceria com os EUA. O Brasil tem muito interesse no Ocidente. O Brasil, no limite, é um país ocidental. A Índia faz parte do Quad, que é aquela agremiação para temas de segurança que envolve o Japão, a Austrália e os Estados Unidos, além dela. Essa nova fase dos BRICS ainda é uma incógnita.

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