Mazat, da UFRJ: a Síria é o jogo da Rússia
Camila Almeida Durante toda a campanha, o presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, demonstrou interesse em se aproximar de um inimigo histórico americano: a Rússia. A inquietante aliança começa a se delinear com a formação de sua equipe, e pode redesenhar toda a geopolítica mundial. Para o economista Numa Mazat, professor da Universidade Federal do […]
Da Redação
Publicado em 16 de dezembro de 2016 às 14h41.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h49.
Camila Almeida
Durante toda a campanha, o presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, demonstrou interesse em se aproximar de um inimigo histórico americano: a Rússia. A inquietante aliança começa a se delinear com a formação de sua equipe, e pode redesenhar toda a geopolítica mundial. Para o economista Numa Mazat, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e PhD em economia política internacional, com mestrado e doutorado focados na Rússia, também interessa a Vladimir Putin costurar essa aproximação, numa oportunidade para alavancar a economia. Em entrevista a EXAME Hoje, Mazat falou sobre o poder de articulação do presidente russo, os interesses dos países europeus nessa aliança e o quanto a atuação dos russos na Síria tem sido crucial para colocar a Rússia em destaque.
O que justifica o interesse de Donald Trump em se aproximar da Rússia?
Em várias oportunidades, Trump falou que admirava a figura de Vladimir Putin, que se identificava com os interesses russos. Em linhas gerais, Trump tem assinalado uma vontade de se afastar das pendências globalizantes que molestaram os Estados Unidos durante os governos de George Bush e Barack Obama. Então, durante o governo de Obama, a luta contra o terrorismo virou uma questão de segunda ordem. E, sem dúvidas, em se tratando de terrorismo, melhor criar uma aliança com os russos do que lutar contra eles. Mas ainda não se sabe o que Trump deve fazer, há muita incerteza. Há uma antipatia muito enraizada nos Estados Unidos, proveniente das administrações anteriores, que provavelmente vão tornar isso difícil. É uma mudança muito brusca de retórica. Ele provavelmente vai ser enquadrado por representantes técnicos do Estado e do Pentágono. Desde 1980, no governo de Ronald Reagan, que o país tem seguido esse caminho, que se tornou central para a economia americana.
Por que a antipatia com a Rússia se tornou central para a economia dos Estados Unidos?
Depois da deflagração da guerra ao terror com o atentado de 11 de setembro, a Rússia tem cada vez mais sido designada como um inimiga. Nos Estados Unidos, o complexo militar industrial é crucial e extremamente inovador. Dizer que vai se aproximar da Rússia não se configura exatamente um perigo, uma vez que o motivo principal para a aproximação tem sido o de manter uma força de defesa. Porém, a justificativa histórica para novos projetos, como os escudos antimísseis, por exemplo, sempre estiveram relacionados ao perigo russo. Ter a Rússia como inimiga foi o que deu a essa indústria capacidade de projeção. O que poderia ser interesssante: durante a campanha, Trump reforçou uma hostilidade em relacão à China e sua concorrência mundial. Então, com uma série de posições estranhas adotadas com a China, mesmo com forte estreitamento das relações econômicas, pode ser que ele volte a definir a China como inimigo para substituir a Rússia.
E qual seria o interesse da Rússia nessa aproximação com os Estados Unidos?
Desde que Putin virou presidente, ele focou em reconstruiu a economia do país. O PIB russo, entre 1991 e 1998, caiu pela metade, caso único na história econômica moderna. E, desde sempre, Putin alimentou um desejo particular de colaborar com os Estados Unidos e com o Ocidente. Então, poderia, sim, haver uma reaproximação da Rússia, porque o país tem interesse em desfazer impasses econômicos.
A Rússia tem comprado briga com os países da Europa, especialmente por causa do apoio à guerra na Síria, que tem provocado um forte fluxo de migração. O fato de os Estados Unidos se aproximarem da Rússia não os afasta do mundo ocidental?
Acho que a atitude negativa europeia é também ligada à atual atitude dos Estados Unidos. Do ponto de vista econômico, eles têm interesse nessa aproximação, até porque quem pagou a conta do esfriamento das relações foram os países europeus. A Alemanha, por exemplo, perde muito com energia, uma vez que 60% do gás consumido na Europa vem da Rússia. Os bancos franceses são extremamente presentes na Rússia, empresas multinacionais europeias, especialmente as montadoras, têm muito apelo na Rússia. Então, a Europa só tem a se beneficiar de uma melhora nas relações.
Qual o interesse da Rússia em apoiar a guerra na Síria?
São vários:
1 – A Rússia possui uma base de apoio operacional naval na Síria, em Tartus, desde 1970. Na época da URSS, os russos apoiavam o partido do pai de Bashar al-Assad.
2 – Há uma proximidade entre os regimes, e Putin valoriza isso.
3 – Boa parte dos equipamentos do exército sírio são russos.
4 – A Rússia considera que, caso haja uma desestabilização da Síria, o próximo a virar um caos seria o Irã. Isso poderia prejudicar a Rússia, que está logo ali do outro lado do mar Cáspio.
Além disso, a manutenção de al-Assad, ao contrário do que aconteceu na Líbia, onde o partido de Kadhafi caiu, diz muito sobre a força dele no país. Mas o que a gente percebe é que a Rússia tem usado esse conflito para mostrar que é um país capaz de se projetar longe do seu território, com potência de fogo e habilidade para mobilizar forças de uma forma que o mundo achava que só os Estados Unidos eram capazes. A Rússia passou a assustar.
Se os Estados Unidos se aproximarem da Rússia, como fica o jogo de forças no Oriente Médio?
O problema dos Estados Unidos é que eles entraram demais na política interna dos países do Oriente Médio. Eles têm usado países como a Arábia Saudita, o Kuwait, o Catar e sua poderosa aliança com Israel para desestabilizar os xiitas e os poderes mais secularizados da região. Na Síria, por exemplo, o nível de direitos das mulheres, o acesso à educação e outros direitos sociais é muito superior ao da Arábia Saudita, que vive uma verdadeira ditadura islâmica. Então, os Estados Unidos estão fazendo o jogo desses países, permitindo a grupos radicalizados chegar ao poder. Em algum momento, a influência que eles têm nessa região pode se reverter contra eles. De certa forma, a ideia de reaproximação com o Irã durante a gestão de Obama foi uma tentativa de reequilibrar isso, mas, depois, foi colocada entre parênteses pela posição do Irã na Síria. Se houvesse essa aproximação, uma normalização, poderia ser imaginada essa retomada. Para o Oriente Médio, seria positivo para criar um modelo demográfico, cultural e econômico forte.