Mariel, entre o sonho e a realidade
Lourival Sant’Anna, de Mariel (Cuba) Os 25 km da velha Estrada Panamericana que ligam Havana a Mariel são ao mesmo tempo uma viagem no tempo e uma amostra do incrível potencial econômico represado na Ilha de Cuba. Entre a estrada e o belo mar azul do Caribe, campos de tiro do Exército se alternam com […]
Da Redação
Publicado em 3 de dezembro de 2016 às 06h38.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h07.
Lourival Sant’Anna, de Mariel (Cuba)
Os 25 km da velha Estrada Panamericana que ligam Havana a Mariel são ao mesmo tempo uma viagem no tempo e uma amostra do incrível potencial econômico represado na Ilha de Cuba. Entre a estrada e o belo mar azul do Caribe, campos de tiro do Exército se alternam com verdejantes pastos sem gado e balneários abandonados. Para o governo cubano, no entanto, a nova rodovia asfaltada e duplicada de 45 km, mais longa porém mais adequada para o tráfico pesado, correndo paralela com uma ferrovia, deve conduzir a um futuro de prosperidade.
Passando o acanhado povoado de 7.000 habitantes, numa área de 430 hectares contígua ao novo terminal de contêineres, grandes empresas erguem seus empreendimentos, no que se tornará a Zona Especial de Desenvolvimento (ZED), destinada a transformar Cuba em uma plataforma de exportações. A Souza Cruz é a primeira brasileira a entrar no negócio. Instalada desde 1996 em Havana, a empresa criou uma joint venture chamada Brascuba com a parceira local Tabacuba. Cada uma vai investir 58 milhões de dólares, em uma fábrica que a partir de 2018 deve operar com a capacidade de fabricar 15 bilhões de cigarros por ano.
Hoje, a Souza Cruz fabrica 4 bilhões de cigarros ao ano, 90% consumidos no mercado cubano, e o restante exportado para Brasil, Espanha, Japão, outros países asiáticos e do Oriente Médio. De acordo com Alexandre Campos, co-presidente brasileiro, a nova fábrica permitirá produzir a um custo mais baixo, incorporar produtos e embalagens inovadoras, e com isso abrir outros mercados. Campos, que cuidava do portfólio das marcas da Souza Cruz no Rio, e antes foi diretor comercial durante quatro anos na Itália, mudou-se com a mulher e as três filhas para Havana, e diz que a família está bem adaptada, apesar da falta de shopping centers e cinemas. No total, são 15 funcionários brasileiros em Cuba, e a empresa deverá empregar cerca de 600 cubanos.
Outras companhias brasileiras, como a Ambev, negociam a vinda para Mariel. As mexicanas Devox Logística e Eletrônica e Richmeat, de carne, as holandesas Unilever e Womy, de aluguel de equipamentos, a construtora francesa Bouygues, a fabricante de fraldas descartáveis vietnamita Tha Vin e a Biocuba Farma, associada aos chineses, também estudam ou já decidiram se instalar na ZED.
Construído pela Odebrecht, o terminal de contêineres custou 957 milhões de dólares, dos quais 682 milhões de dólares financiados pelo BNDES, o banco de fomento brasileiro. A Justiça brasileira investiga se houve tráfico de influência e desvio de dinheiro envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no negócio. Mas a polêmica parece distante, em Mariel, onde as empresas contabilizam os benefícios oferecidos pelo governo, como isenção fiscal por dois anos e trâmites burocráticos mais ágeis, enquanto os trabalhadores locais, assim como de Havana e de outras partes do país, deparam com salários nunca antes sonhados em Cuba.
É o caso do mestre de obra Cecilio Guiñones, de 58 anos, que trabalha na construtora cubana Dinvai, substituta da Odebrecht nas obras de infra-estrutura. Há três meses, Guiñones passou a receber 7.800 pesos, o equivalente a 312 dólares, astronômicos para a realidade cubana. Para se ter uma ideia, depois de aumentos recentes, os médicos passaram a ganhar entre 1.000 e 2.000 pesos (40 e 80 dólares), e o salário médio no país é de 25 dólares. Guiñones trabalha há mais de 4 anos em Mariel, e antes era funcionário da AEI, a representante local da Odebrecht. Antes, ele recebia entre 80 e 100 dólares, o que já era um salário acima da realidade cubana. O salto na sua remuneração foi resultado de uma nova regra do governo cubano para a paridade entre o dólar e o peso no cálculo dos salários na ZED. A medida criou um alvoroço nos trabalhadores do povoado de Mariel, que agora só têm um objetivo: trabalhar na ZED.
Lázaro Rodríguez, de 25 anos, trabalhou como motorista na construção do terminal de contêineres durante um ano, entre 2014 e 2015. Na época, ele recebia 26 dólares por mês. Insatisfeito, pediu demissão para dirigir um táxi em Mariel. Com sua nova atividade, passou a ganhar entre 30 e 40 dólares por mês. O problema foi que o dono do táxi decidiu vendê-lo. Hoje, Rodríguez trabalha como ajudante de mecânico na fábrica de cimento de Mariel, e ganha 10,56 dólares por mês. “Anote aí meu nome, e tire uma foto”, pede ao repórter, “para ver se me recontratam. Quero voltar para Mariel.”
Joan Luis Duarte, de 27 anos, que tem o ensino médio completo e trabalha como faturador na fábrica de cimento, conta que entregou seu currículo em 2011, quando o ex-presidente Lula visitou o empreendimento, junto com o líder cubano, Raúl Castro, e até hoje não foi chamado. “No noticiário, disseram que vão fazer muita coisa”, diz ele.
“O povo de Mariel gostaria de ter oportunidade de trabalhar lá, mas estão trazendo gente de Havana”, queixa-se uma mulher de 38 anos, que pede para não publicar seu nome, e como Duarte espera o ônibus para a fábrica de cimento, onde trabalha como supervisora de transporte.
“Até agora a ZED gerou bastante trabalho”, discorda uma técnica em informática, que trabalha como secretária na Dinvai, e ganha em torno de 120 dólares por mês — o salário varia, de acordo com os resultados da empresa. “Está sendo bastante bom.”
O peso do embargo
O terminal de cargas já está funcionando, com a transferência para Mariel das operações do Porto de Havana, que passou a se dedicar ao turismo. Com a normalização de relações com os Estados Unidos, vários cruzeiros passaram a aportar em Havana, e a baía está sendo despoluída.
Entretanto, algumas empresas têm receio de se instalar em Cuba, por causa do embargo americano — ainda em vigor, embora o presidente Barack Obama tenha revogado por decreto todas as restrições que podia sem aprovação do Congresso, dominado pelos republicanos, favoráveis às sanções. Pelas leis americanas, empresas estrangeiras que operam nos Estados Unidos podem ser multadas por fazer negócios com Cuba.
Países como Brasil e Canadá sempre denunciaram que esse tipo de sanções impostas pelos Estados Unidos — não só contra Cuba, mas também Irã e Rússia, por exemplo — ferem o direito internacional. Só com aprovação da ONU um país pode impor sanções comerciais a outro. Muitas das empresas brasileiras que exportam para Cuba também têm negócios com os Estados Unidos, mas nunca foram objeto de penalidade.
De acordo com um diplomata que acompanha o tema, o critério usado pelos Estados Unidos para punir ou não uma empresa estrangeira é o interesse de proteger ou não um setor da própria economia americana. “As sanções são uma ferramenta do protecionismo”, diz o diplomata, que pede para não ser identificado. Cuba importa 85% dos alimentos que consome, e o Brasil é um de seus principais fornecedores, exportando cerca de 500 milhões de dólares para a ilha por ano. O frango e o arroz que os cubanos compram a preços subsidiados — e segundo rações mensais designadas para cada família — nos armazéns estatais vêm em grande parte do Brasil.
A eleição de Donald Trump, um crítico da normalização com Cuba, coloca um freio nas expectativas de crescimento de Mariel. Os cubanos reagem a isso com um misto de orgulho ferido e de esperança. “Os gringos serão mais prejudicados do que nós se não levantarem o embargo”, esnoba o ex-vice-ministro do Açúcar Jorge Reyes, de 74 anos. “Obama é um presidente inteligente. Viu que o povo cubano não se dobrou nesses 50 anos. Trump parece que está querendo retomar. Vai se equivocar, como se equivocaram os presidentes anteriores.” Outros esperam que o pragmatismo de empresário de Trump o leve a concluir que o fim do embargo será proveitoso para os EUA. Enquanto isso, os moradores de Mariel sonham.