As guerras abertas da América Latina
Lourival Sant`Anna O acordo entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), se aprovado no plebiscito do dia 2 de outubro, vai pôr fim ao conflito armado mais duradouro da América Latina, mas não ao único. A fórmula da guerrilha colombiana, de misturar ideologia com crime organizado, seguida desde o fim da […]
Da Redação
Publicado em 2 de setembro de 2016 às 17h27.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 17h58.
Lourival Sant`Anna
O acordo entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), se aprovado no plebiscito do dia 2 de outubro, vai pôr fim ao conflito armado mais duradouro da América Latina, mas não ao único. A fórmula da guerrilha colombiana, de misturar ideologia com crime organizado, seguida desde o fim da Guerra Fria, quando secaram as fontes de financiamento da União Soviética e de Cuba, tem sido copiada no Peru e no Paraguai, enquanto o México e a América Central desenvolveram a própria versão de banditismo sem doutrina, mas que também desafia o Estado.
Na própria Colômbia, ainda falta negociar com o Exército de Libertação Nacional (ELN), um grupo guerrilheiro menor do que as Farc. O ELN afirma que quer firmar a paz. Mas continua realizando sequestros e ações de sabotagens contra os oleodutos. Além disso, tem assumido o controle de áreas abandonadas pelas Farc, que se preparam para se desmobilizar. Essas áreas incluem cultivos de maconha e coca. Uma parte das Farc certamente não deporá armas, e assumirá sua real identidade de criminosos comuns, como ocorreu com as gangues remanescentes dos paramilitares das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), formadas para combater a guerrilha, com patrocínio de fazendeiros e empresários, e que se desmobilizaram em meados da década passada.
No Paraguai, uma emboscada matou, no sábado 27 de agosto, oito soldados da Força Tarefa Conjunta, unidade especial do Exército e da polícia formada para combater o Exército do Povo Paraguaio (EPP), grupo guerrilheiro inspirado nas Farc. Os soldados faziam uma patrulha de rotina no município de Arroyito, no norte do país, quando foram alvo de explosivos e disparos. O ataque teve as digitais do EPP, que aciona explosivos por controle remoto nas estradas quando passam veículos militares. Foi o ataque mais contundente do EPP, que matou apenas 50 pessoas desde que entrou em atividade, no fim da década passada, e conta com um efetivo de apenas 30 a 150 pessoas, segundo diferentes estimativas.
O grupo, que se declara marxista, financia-se com sequestros de empresários, venda de proteção para narcotraficantes, incluindo brasileiros, e contrabando de armas para o Brasil, mantendo ligações com o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho, que atuam nos presídios de São Paulo e do Rio. O EPP cobrou resgate de 500.000 dólares de um adolescente em abril de 2014 e mantém pelo menos três reféns. O grupo é beneficiado pela corrupção das forças de segurança paraguaias. O porta-voz da Força Tarefa Conjunta, Alfredo Jonás Ramírez, denunciou no ano passado que membros da própria unidade haviam vendido para a guerrilha informações antecipadas sobre suas operações. Ramírez foi demitido.
A Venezuela também tem servido de território para uma série de organizações armadas. Os primeiros grupos paramilitares surgiram em 2001, quando cartéis da droga dos estados do sul se aliaram às Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), formadas para combater as Farc, com patrocínio de fazendeiros e empresários. Esses grupos receberam na Venezuela o nome de Bacrim (Bandos Criminosos) e são financiados por tráfico de cocaína, sequestros e extorsões de empresários e fazendeiros, além de contrabando de gasolina. Nas grandes cidades, os paramilitares atacam policiais e seguranças e roubam suas armas, e estão também envolvidos na criminalidade comum. Por último, há ainda os matones (matadores), ligados a células chavistas, que fazem o trabalho sujo de atacar manifestantes da oposição, jornalistas e outros desafetos do regime. As AUC desmobilizaram-se em meados da década passada, mas os Bacrim continuam ativos.
No Peru está o segundo grupo guerrilheiro e terrorista mais antigo em atividade na região: o Sendero Luminoso, de inspiração maoísta, criado em 1980. O grupo cometeu uma série massacres contra moradores da zona rural peruana sob o pretexto de que teriam colaborado para as forças de segurança. Entre 1980 e 2000, o conflito causou 69.000 mortes. Em 1992, em meio à “guerra suja” do então presidente, Alberto Fujimori, contra o grupo, seu fundador, Abimael Guzmán, foi preso e condenado à prisão perpétua. Ex-professor de filosofia, Guzmán ordenou ao grupo que se desmobilizasse, mas só foi parcialmente atendido. Fujimori permitiu a formação de esquadrões da morte para dizimar os senderistas e acabou condenado por crimes contra a humanidade em 2008. Ele está preso desde 2005, por uma condenação anterior, de corrupção. Hoje muito reduzido, o Sendero não tem o poder de desestabilização que chegou a ter em seu auge, mas continua sendo motivo de preocupação.
O poder das drogas
No México, os grandes cartéis da droga fragmentaram-se nos últimos anos, mas, por conveniência, os pequenos grupos autônomos que se formaram a partir deles se mantêm filiados a seus nomes, como se fossem franquias. Os mais importantes são o Cartel de Jalisco Nova Geração e o de Sinaloa. Os dois operam em 15 dos 31 estados do país. Já o Los Zetas e o Cavalheiros Templários diminuíram de tamanho e hoje atuam em um estado cada um.
Os grupos perderam o poder vertical que possuíam em razão das baixas causadas pelas forças de segurança e das prisões de seus líderes, mas continuam representando um enorme desafio para a lei e a ordem. Aliás, sua fragmentação dificultou seu combate. Nas disputas entre eles e com a polícia, cometem massacres e assassinatos com crueldade destinada a servir de exemplo. Nos estados em que esses grupos mais atuam, os índices de homicídios são mais altos. No estado de Guerrero, onde desapareceram 43 estudantes em 2014, provavelmente por ação do narcotráfico, aliado à polícia e ao prefeito da cidade de Iguala, o índice é o mais alto do país, com 56 homicídios por 100.000 habitantes (no Brasil, a média é de 29 homicídios por 100.000 habitantes).
Em sua cruzada para defender o México das acusações feitas pelo candidato republicano Donald Trump, a chanceler mexicana, Claudia Ruiz Massieu, queixa-se de que a falta de controle da venda nos Estados Unidos “inunda” o país vizinho de armas ilegais, usadas na criminalidade. “Os esforços do México de restringir a venda e a posse de armas se veem limitados pelos milhares de armas ilegais que chegam a cada ano a nosso país, procedentes de nossa fronteira norte”, denunciou Ruiz na 2a Conferência de Estados-Parte do Tratado sobre o Comércio de Armas, no dia 24, em Genebra.
Segundo a ministra, 70% das armas de fogo confiscadas pela polícia no México têm como origem distribuidores americanos, sendo que 60% foram fabricadas nos Estados Unidos, 30% no México e 10% em outros países. Das 40.000 armas confiscadas entre dezembro de 2012 e julho de 2016, 23.000 eram fuzis de grosso calibre. “Isso proporciona às organizações criminosas transnacionais um enorme poder de fogo, que afeta tanto o México quando os Estados Unidos, e o torna um desafio binacional.”
E há a América Central, considerada pelo cientista político mexicano Rafael Fernández “a Síria das Américas”, e o México, “o Mediterrâneo”. O chamado “Triângulo do Norte”, formado por El Salvador, Guatemala e Honduras, é uma das regiões mais violentas do mundo, com 17.000 assassinatos no ano passado. Para uma população de 30 milhões, o índice de assassinatos é de 57 por 100.000 — o maior do mundo em países sem guerra declarada.
Guerrilha importada
El Salvador é o epicentro, com 104 homicídios por 100.000 habitantes. A situação se agravou depois que uma força de paz dos Estados Unidos se retirou do país em dezembro, segundo uma análise de cenário feita pela empresa americana Stratfor, especializada em segurança. A luta armada em El Salvador remonta a 1932, quando a repressão a uma revolta de camponeses contra o governo do general Maximiliano Hernández Martínez levou à morte de mais de 25.000 pessoas. Seguiu-se uma ditadura militar de 45 anos. Em 1980, quatro grupos guerrilheiros se uniram e formaram a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), que enfrentou o governo em uma guerra civil de 12 anos, terminada em 1992.
O conflito levou à fuga de centenas de milhares de salvadorenhos para os Estados Unidos. Nos anos 90, eram 500.000, sobretudo na área de Los Angeles. Nos violentos bairros da cidade, onde já havia gangues de mexicanos e negros, criminosos salvadorenhos formaram as suas, para se defender e consolidar territórios: a Mara Salvatrucha (MS-13) e a Barrio 18. Ambas acabaram se tornando rivais. Com a violência crescente na comunidade, o governo americano começou a expulsar os criminosos. As duas gangues então se instalaram em El Salvador e, com o tempo, expandiram-se também para os vizinhos Honduras e Guatemala.
A taxa de homicídios começou a subir em El Salvador em 1999. Em resposta, o governo adotou em 2003 medidas repressivas, batizadas de Mão Dura, que levaram milhares de membros das gangues à prisão. A MS-13 e a Barrio 18 tomaram então o controle dos presídios, comandando de dentro das cadeias as atividades criminosas — como fazem o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho.
Diante disso, as autoridades mudaram de tática e, em 2012, mediaram uma trégua entre as duas gangues. O índice de homicídios caiu nessa época. Entretanto, em 2014, a trégua se rompeu, e a situação voltou a se agravar. O governo da FMLN, agora no poder, lançou uma nova campanha de repressão contra as gangues, passando a rotulá-las de “grupos terroristas”. Um novo imposto de 5% sobre os serviços de telecomunicações passou a financiar os programas de repressão, com a formação de unidades de elite da polícia. Mas a violência continua.
De acordo com um levantamento do Centro de Investigação do Crime Organizado, em parceria com a Associação para uma Sociedade mais Justa e com financiamento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), a Barrio 18 tem recorrido intensamente em Honduras à extorsão dos comerciantes e moradores em suas áreas de influência, o que está voltando contra ela a população local. Já a MS-13 não recorre à extorsão, ela se financia basicamente com o varejo das drogas. Entretanto, as disputas pelos pontos de venda têm provocado confrontos entre as duas gangues. E ambas extorquem os serviços de lotações e ônibus. Segundo o levantamento, só na capital, Tegucigalpa, a extorsão do transporte público rende até 2,5 milhões de dólares por ano.
As estatísticas de homicídios nas áreas controladas pelas duas gangues são parecidas, apesar de a Barrio 18 ter reputação de ser mais violenta. A gangue enfrenta a polícia quando entra em seu território, enquanto a MS-13 não opõe resistência. A hipótese dos estudiosos é que ela prefere recorrer ao suborno dos policiais.
Na Nicarágua, o governo do presidente Daniel Ortega, ele mesmo um ex-guerrilheiro, enfrenta agora grupos armados. Eles foram formados por ex-Contras, paramilitares de direita financiados pela CIA para lutar contra a Frente Sandinista de Libertação Nacional, de Ortega, nos anos 80. Em 2006, um grupo de ex-Contras sem-terra firmou um acordo com o governo nicaraguense, segundo o qual receberiam lotes de terras. Mas o acordo não foi cumprido pelo governo. Formou-se, então, uma frente chamada Coordenadora da Guerrilha Nicaraguense, que tem executado ataques contra militares e policiais, principalmente na região rural. Nos dias 17, 19 e 20 de julho, houve três ataques. A frente assumiu apenas o primeiro deles, em que homens pararam veículos que transitavam na Rodovia Pan-Americana, no Departamento de Esteli, e os picharam com a inscrição FDN 380, o nome de uma das organizações da frente. Já nos outros dois ataques homens armados de fuzis-metralhadoras AK-47 e espingardas fizeram emboscadas no Departamento de Matagalpa a um ônibus com militantes sandinistas que voltavam da celebração do aniversário da revolução de 1979. Quatro pessoas morreram na primeira emboscada e uma na segunda.
O governo nicaraguense não reconhece a existência da guerrilha e qualifica os grupos de assaltantes e narcotraficantes. Na nova configuração da luta armada na América Latina, já não é possível distinguir claramente ideário político de crime comum. Esses grupos desafiam o Estado não para tomar o poder e mudar o sistema, mas para enfraquecê-lo e, assim, consolidar seus negócios e territórios.