Ano da incerteza na Argentina: Previsões de acirramento da crise econômica inquietam 'hermanos'
Classe média enfrentará um novo processo de empobrecimento, e a moeda nacional, o peso, sofrerá permanentes desvalorizações
Agência de notícias
Publicado em 27 de dezembro de 2023 às 08h38.
Em sua última reunião anual de diretoria, autoridades do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet) argentino, referência regional e global, comunicaram que o orçamento previsto para 2024 será o mesmo de 2023, num país que fechará o ano com inflação mensal de dois dígitos e caminha para ter uma das taxas de inflação anuais mais altas do mundo — este ano chegará a quase 200%. Isso significa, esclareceram os gerentes do Conicet, que o conselho só conta com recursos para pagar os salários de seus pesquisadores até junho do ano que vem. A segunda metade do ano é incerta.
“Incerteza” será uma das palavras que marcarão o próximo ano dos argentinos. Outras duas serão “sufoco” e “medo”. As projeções econômicas do país são todas negativas: a Argentina terá recessão — economistas estimam queda do PIB em torno de 3%; a inflação deve disparar, provocando, inevitavelmente, um aumento da pobreza, atualmente de 41% da população; e trabalhadores perderão poder aquisitivo, porque os salários não serão reajustados na mesma velocidade. A classe média argentina enfrentará um novo processo de empobrecimento, e a moeda nacional, o peso, sofrerá permanentes desvalorizações.
O recém-empossado presidente Javier Milei anunciou o panorama para 2024 antes mesmo de assumir o poder, em 10 de dezembro. Usando um termo econômico que muitos não conheciam, estagflação — combo de recessão junto com inflação — o chefe de Estado deixou bem claro que seu primeiro ano de governo seria uma montanha-russa.
Uma das estratégias comunicacionais de Milei é antecipar tempos sombrios, e culpar a herança recebida pelo desastre em que continua — e ainda continuará, pelo menos por algum tempo — mergulhado o país. Nas ruas de Buenos Aires, essa estratégia causou dois sentimentos: pânico e empatia com o presidente.
— Continuar com o peronismo não dava, era preciso uma mudança. Milei está fazendo o trabalho sujo que outros governos não fizeram, e ele avisou o que faria. Agora temos de atravessar a crise para iniciar a recuperação — comenta Gerardo Hernández, de 48 anos, gerente de uma empresa de logística.
Ele está preocupado com a forma de governo de Milei, mas concorda com o conteúdo de suas medidas.
— Enviar um megadecreto ao Parlamento para reformar mais de 300 leis me parece que não é a melhor maneira de fazer o que Milei quer fazer, concordo com o conteúdo, mas não com a forma — acrescenta Hernández,
Tensão política
De acordo com pesquisa realizada pela empresa de consultoria Taquion, 56% dos argentinos desaprovaram o decretaço do presidente, principalmente por considerá-lo um atropelo do Congresso. Os eleitores que não apoiam Milei o acusam de autoritarismo e estão apavorados com situação do país.
— Cada semana que vou ao supermercado, os preços aumentam 20% ou até 40%. O plano de saúde aumentou 40%, a gasolina também. O decretaço de Milei é um absurdo e vai criar, além do caos econômico, tensões políticas. Os próximos meses serão tenebrosos — prevê a professora
Em 2024, o novo governo argentino não terá apenas desafios econômicos, mas, também, enormes desafios políticos. O futuro do chamado decretaço do presidente é um deles, talvez o mais importante. O partido do chefe de Estado, A Liberdade Avança, tem a terceira minoria no Parlamento, e precisará articular com outros partidos para evitar que o megadecreto seja derrubado no Legislativo.
O governo convocou sessões extraordinárias no Congresso, que deverá se reunir excepcionalmente em janeiro. Na Argentina, os presidentes podem aprovar medidas por decreto de necessidade e urgência, como fez Milei, mas esse decreto, que já entrou em vigência, deve ser analisado por uma comissão parlamentar de oito senadores e oito deputados. A comissão dará um parecer, e se ele for positivo, o decreto já está aprovado, sem precisar ir para plenário; se for negativo, no entanto, o decreto deverá ser votado em ambas as Casas. Se a Câmara ou o Senado votarem contra, o decreto é anulado.
— Os principais constitucionalistas da Argentina rejeitaram o procedimento de mudar dezenas de regulações [mais de 300 leis] através de um decreto de necessidade e urgência — diz o analista Carlos Fara, diretor da Fara e Associados.
Para Fara, “o que Milei está fazendo é se mostrar proativo e fazendo seu esforço para implementar as mudanças que prometeu”. Se der errado, ele dirá que foi obrigado a recuar por culpa de seus opositores.
— Muitos se perguntam por que Milei abre tantas frentes de conflito sem ter a força política necessária para enfrentá-las. Basicamente, o presidente faz isso sabendo que não ganhará todas as batalhas, mas ganhará algumas — aponta o analista, que, como muitos outros, prevê uma enxurrada de recursos judiciais contra as medidas de Milei em 2024.
Fara acredita que muitos tentarão chegar rapidamente à Corte Suprema de Justiça, para que haja logo uma definição sobre o tema.
— O mais provável é que a Corte concorde com a maioria dos constitucionalistas, mas fará o possível para prolongar os processos e, assim, não provocar o desgaste de um governo que está começando. Ou seja, o tempo está a favor do presidente — diz.
Em 2024, a tensão política estará no Congresso e nas ruas. Panelaços e marchas devem ser frequentes, como já se vê no final de 2023. A mesma pesquisa da Taquion mostrou que 72% dos entrevistados disseram crer que o anunciado ajuste de Milei será pago pela sociedade, e não pela casta política — o contrário do mote de campanha do presidente. Outros 47,4% afirmaram estar dispostos a fazer os sacrifícios que ele pediu, para que a economia possa se recuperar.
Guerra cultural
O governo Milei deverá, ainda, iniciar uma batalha cultural em defesa de bandeiras que, em alguns casos, vão na contramão de leis que a Argentina aprovou nos últimos anos. Uma delas legalizou o aborto, a que o presidente e seus principais colaboradores se opõem.
Outro assunto sensível para a sociedade é a discussão sobre a última ditadura militar (1976-1983). Na campanha, Milei disse que se tratou de uma guerra, na qual houve excessos por parte do Estado. Sua vice-presidente, Victoria Villarruel, é advogada, filha de um militar, e foi defensora de militares envolvidos em crimes da ditadura. A expectativa no país é de que o governo busque instalar um debate sobre os anos de chumbo, promovendo a visão de que um lado da História — o mesmo que há 40 anos defendem os militares — nunca foi contado.