A capilarização da Odebrecht
Carol Oliveira Quase três anos depois de ter começado a chacoalhar o cenário político brasileiro, a Operação Lava-Jato expande suas fronteiras. Um relatório do Departamento de Justiça dos Estados Unidos divulgado em dezembro mostrou que a Odebrecht, uma das principais empreiteiras brasileiras, pagou 788 milhões de dólares de propina em 12 dos 28 países em que […]
Da Redação
Publicado em 24 de fevereiro de 2017 às 11h15.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h34.
Carol Oliveira
Quase três anos depois de ter começado a chacoalhar o cenário político brasileiro, a Operação Lava-Jato expande suas fronteiras. Um relatório do Departamento de Justiça dos Estados Unidos divulgado em dezembro mostrou que a Odebrecht, uma das principais empreiteiras brasileiras, pagou 788 milhões de dólares de propina em 12 dos 28 países em que opera. Os pagamentos aconteceram entre 2001 e 2016, no que foi classificado pela Justiça americana como “o maior caso de suborno internacional da história”.
A maioria dos países envolvidos é da América Latina, com exceção dos africanos Angola e Moçambique. Além do Brasil, são citados Argentina, Colômbia, Equador, Peru, Panamá, República Dominicana, Venezuela e México. Embora investigações já ocorressem de forma independente em muitos desses países, com maior ou menor intensidade, o relatório da Justiça americana oficializou a internacionalização da corrupção brasileira.
Por conta das investigações americanas, a Odebrecht e a Braskem, braço petroquímico da empresa, admitiram o esquema e fizeram um acordo de leniência com a Justiça dos Estados Unidos. A leniência é uma espécie de delação premiada para empresas e, assim, ficou acertado que elas devem fornecer informações para a investigação e pagar 6,9 bilhões de dólares em multas para Brasil, Estados Unidos e Suíça.
Ao que tudo indica, isso é só o começo. Nos dias 16 e 17 de fevereiro, procuradores de dez países vieram a Brasília para uma reunião com o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot. O objetivo é alavancar a cooperação entre as justiças dos países envolvidos, para impedir a capilarização dos esquemas de corrupção.
Corrupção como negócio
Assim como no Brasil, as práticas da Odebrecht pela América se baseiam em esquemas de pagamento de propina para favorecimento em licitações e obras superfaturadas. A empreiteira brasileira financiava campanhas políticas e pagava subornos para funcionários públicos.“Na Odebrecht, parece que as obras só existiam para proporcionar corrupção. Chegou a um ponto em que o negócio não era construir, era fazer corrupção”, diz o economista Paulo Arvate, professor da FGV que desenvolve um estudo sobre os esquemas do setor privado. A empresatinha até um departamento específico para organizar as fraudes, o chamado “Setor de Operações Estruturadas”.
Outras empreiteiras também estariam envolvidas em esquemas do tipo no exterior, como a OAS, a Camargo Corrêa, a Andrade Gutierrez e a Queiroz Galvão. A propina era paga por meio de intermediários, e incluía a abertura de contas falsas e empresas-fantasma para operar o dinheiro — foi assim que o esquema foi descoberto nos Estados Unidos e na Suíça, onde contas eram abertas puramente para comportar o dinheiro ilícito.
Para o cientista social mexicano Oscar Diego Bautista, professor da Universidade Autônoma do Estado do México, é uma prova do que ele chama de “globalização da corrupção”. “É comum pensar que a corrupção é apenas pública, que as empresas privadas são mais transparentes. Mas isso é falso. Muitas grandes empresas transnacionais só entram nos governos graças à corrupção”, diz.
Políticos na berlinda
Como a participação dos governos locais era fundamental nesse modus operandi, não é surpresa que a elite política latino-americana esteja encrencada até os dentes. Na Colômbia, o presidente Juan Manuel Santos — recém condecorado Nobel da Paz — é acusado de ter recebido 1 milhão de dólares para sua campanha à presidência, em 2014. Também entra na roda o candidato da oposição derrotado em 2014, Óscar Zuluaga, a quem o publicitário Duda Mendonça diz ter prestado serviços de 4,3 milhões de dólares, com a conta paga pela Odebrecht. Mendonça diz ainda ter recebido de outra empreiteira, a OAS, para trabalhar na campanha da presidente do Chile, Michele Bachelet.
Enquanto isso, no Peru, o ex-presidente Alejandro Toledo está foragido há semanas, após ser acusado de receber 20 milhões de dólares em propinas para favorecer a Odebrecht em licitações. Outro ex-presidente do país, Ollanta Humala, teria embolsado 3 milhões de dólares.
No Panamá, dois filhos do ex-presidente Ricardo Martinelli também estão foragidos. A Odebrecht admitiu pagar propina para sociedades dos quais eles faziam parte, e também é acusada de usar offshores — os famosos paraísos fiscais — para esconder dinheiro roubado, agindo junto com a Mossack Fonseca, companhia de advocacia responsável por abrir as contas para depósito de dinheiro ilícito que ficou conhecida pelo caso Panamá Papers, deflagrado em abril do ano passado.
Na Venezuela, a jornalista Mônica Santana, esposa do marqueteiro João Santana — responsável pelas campanhas petistas à Presidência —, disse ter recebido 55 milhões de dólares em caixa 2 pelos serviços nas campanhas do ex-presidente Hugo Chávez.
E a lista segue, com praticamente todos os líderes latino-americanos sendo citados, sejam do governo ou da oposição, da direita ou da esquerda.
Cooperação internacional
Já que os estragos da Odebrecht não ficaram só no Brasil, a ordem da vez é colaborar. Após a reunião entre os procuradores e Janot, foi anunciada a criação de uma força-tarefa entre os países para compartilhar informações sobre a investigação. No texto “Declaração de Brasíliasobre a cooperação jurídica internacional contra a corrupção”, o grupo se compromete a “promover a constituição de equipes conjuntas de investigação, bilaterais ou multilaterais, que permitam investigações coordenadas sobre o caso”.
A Procuradoria-Geral da República afirma que, de certa forma, essa cooperação já vinha acontecendo, com o Brasil tendo compartilhado alguns documentos da Lava-Jato com vizinhos, e vice-versa.
A medida foi elogiada pela Transparência Internacional, uma das organizações mais respeitadas do combate à corrupção pelo mundo e que vem acompanhando de perto o desenrolar da operação. Para Bruno Brandão, representante da instituição no Brasil, a reunião de Brasília pode criar “novos precedentes para a cooperação jurídica na região”. “Trabalhar em equipe pode ajudar não só nos casos de corrupção, mas em cooperação contra o narcotráfico, no crime organizado e na vigilância de fronteiras”, diz.
Mas essa ferramenta foi pouco usada na América Latina até hoje: o episódio mais concreto foi quandoBrasil e Argentinaformaram um grupo, nos últimos anos, para apurar crimes cometidos durante as ditaduras militares nos dois países.Para Fabrício Chagas-Bastos, professor da Universidade dos Andes e que vem acompanhando o caso Odebrecht na Colômbia, o Brasil pode ser um líder regional nesse processo. “A cooperação depende muito mais do Brasil do que da outra ponta, seja Colômbia, Peru, Venezuela ou qualquer outro país”, diz.
No caso da Lava-Jato, quem lidera a troca de informações com outros países é a Secretaria de Cooperação Internacional (SCI), vinculada à PGR. O Ministério Público Federal do Paraná, responsável pelas investigações, informou que qualquer pedido de troca de documentos ou de informações com investigadores de outros países deve passar pela SCI.
É claro que há limites. Os dados da delação premiada da Odebrecht, por exemplo — acordada com a Justiça brasileira em dezembro — só podem ser compartilhados com os vizinhos em julho de 2017, por conta de uma cláusula de sigilo. A Odebrecht também vem fechando acordos específicos em alguns países, e o que a Justiça de cada lugar pode divulgar vai depender das particularidades de cada acordo.
As instituições vão aguentar?
Dentro dessas especificidades, o Brasil é um ponto fora da curva, com a Lava-Jato acontecendo há três anos e investigações bastante avançadas — mesmo com todo o apocalipse político vivido aqui. Nos demais países, embora alguns inquéritos já acontecessem, o Caso Odebrecht só deslanchou após a publicação do relatório do Departamento de Justiça americano.
Essa fragilidade das instituições latino-americanas pode acabar prejudicando o andamento das investigações. Um exemplo é o Equador, onde a Procuradoria-Geral local decidiu devolver documentos compartilhados pela Justiça brasileira porque “não foi possível realizar a tradução” do português para o espanhol. A Odebrecht pagou mais de 30 milhões de dólares em propina no país, e opositores acusam o presidente Rafael Correa de estar tentando atrasar as investigações para não abalar seu candidato à Presidência, Lenín Moreno, que disputará o segundo turno da eleição presidencial em abril.
Outro caso é a Venezuela, onde dois repórteres da Rede Record de Televisão foram detidos pelo serviço de inteligência local quando tentavam visitar obras e buscar informações sobre as irregularidades da Odebrecht no país. O presidente Nicolás Maduro, por sua vez, nega estar barrando as operações, ainda que o caso envolva pagamento de propinas e financiamentos irregulares de campanha do ex-presidente Hugo Chávez, seu padrinho político. Maduro ordenou uma busca nos escritórios da Odebrecht e diz que quer ver os culpados “na cadeia”.
“O Brasil é um exemplo que ajuda outros poderes judiciais a começarem a operar com maiores níveis de independência”, diz o cientista político e especialista em políticas públicas Santiago Marini, professor da Universidade Antonio Ruiz de Montoya, no Peru. O especialista avalia que, no caso peruano, “a sociedade civil organizada e as instituições de controle são muito fracas”, e diz não acreditar que haja autonomia suficiente entre os poderes para que as investigações de corrupção avancem.
Leniência precoce
Nesse cenário escandaloso, a Transparência Internacional chama atenção para os acordos de leniência fechados precocemente. Brandão, representante da ONG, lembra que, no Brasil, os acordos só foram feitos mais de dois anos após o início das investigações, ao contrário do que vem acontecendo em outros países. No Peru, a Odebrecht vai pagar um adiantamento de 8,9 milhões de dólares (e novas multas serão discutidas no futuro); na Colômbia, 32 milhões; na República Dominicana, 184milhões. Quantia bem inferior aos 5,3 bilhões que a Odebrecht e a Braskem vão pagar ao Brasil.
O Panamá também trabalha num acordo de leniência, e a Odebrecht tem pressa: fontes ligadas à empreiteira revelaram à agência de notícias Reuters que o objetivo é negociar o máximo de acordos possíveis até junho, além de estar correndo para vender 6,5 bilhões de reais em patrimônio.
“Os países estão fazendo acordos sem terem uma dimensão completa dos crimes que foram cometidos, e isso deixa a empresa numa posição muito menos frágil”, diz Brandão. Ele lembra que o principal objetivo de um acordo de leniência, como em qualquer delação, não é obter dinheiro, mas informações que possam ajudar no prosseguimento das investigações. “Pelo grau de pouca independência desses países, nos preocupa que os acordos sejam somente uma maneira de acalmar a opinião pública e finalizar as investigações sem que os culpados tenham sido realmente identificados”, afirma. Uma forma de blindar as elites políticas desses países, altamente envolvidas no esquema.
A Transparência Internacional publicou cinco recomendações aos juristas e procuradores latino-americanos. Entre elas, a punição de organizações que auxiliaram nos esquemas fraudulentos — como o BNDES, banco brasileiro que financiou obras da Odebrecht.
“Os mecanismos para combater a corrupção existem. Não há uma solução mágica, é preciso um grupo de pessoas empenhadas, uma ação coletiva”, diz o professor Carlos Eduardo Vidigal, especialista em política internacional e América Latina da Universidade de Brasília.
Para Joseph Marques, co-presidente da Associação de Estudos Latino-Americanos e professor na Escola Diplomática de Genebra, o momento é “histórico” para a consolidação da democracia na região. “O mundo está de olho no Brasil. Todos estão acompanhando porque é um caso gigantesco que afeta muitos países”, afirma o pesquisador. Na Suíça, onde ele leciona, mais de 40 bancos estão sendo investigados por terem permitido que contas ilegais fossem abertas. “Por mais que uma ou outra força política tente atrapalhar as investigações, é um caso grande demais para que tudo acabe em pizza”, diz.
Em seminário no Peru, na quinta-feira 23, o juiz federal Sergio Moro, responsável pelas investigações da Lava-Jato em Curitiba, disse que ainda não sabe a extensão que as descobertas vão atingir. Tudo indica que serão anos de novos escândalos, processos e discussões. Quem sobreviver verá.