Mundo

A Abenomics luta pelo ouro

Lourival Sant’Anna, de Tóquio* A rejeição de Donald Trump à Parceria do Transpacífico (TPP) puxa o tapete de toda uma estratégia cuidadosamente desenhada pelo Japão (e pelos EUA de Barack Obama) para fazer frente à ascensão da China e obter o máximo de proveito do espetacular potencial dos mercados da Ásia e Oceania. Mais que […]

SHINZO ABE: sem a TPP, todas as políticas monetárias e fiscais não devem ter grandes impactos econômicos / Toru Hanai/ Reuters

SHINZO ABE: sem a TPP, todas as políticas monetárias e fiscais não devem ter grandes impactos econômicos / Toru Hanai/ Reuters

DR

Da Redação

Publicado em 11 de março de 2017 às 08h09.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h22.

Lourival Sant’Anna, de Tóquio*

A rejeição de Donald Trump à Parceria do Transpacífico (TPP) puxa o tapete de toda uma estratégia cuidadosamente desenhada pelo Japão (e pelos EUA de Barack Obama) para fazer frente à ascensão da China e obter o máximo de proveito do espetacular potencial dos mercados da Ásia e Oceania. Mais que isso, rouba um dos dois motivos para os japoneses sonharem com uma saída de sua estagnação econômica. O outro é a Olimpíada de Tóquio em 2020.

Como em todo trauma, os japoneses entraram no modo negação. Vários diplomatas e analistas em Tóquio consideram que a TPP não está morta — ainda que tenham de mudar seu nome, como saída honrosa para Trump.

“Não tenho certeza de que os EUA saíram completamente da TPP”, ponderou a EXAME Hoje Shingo Yamagami, diretor do Instituto de Assuntos Internacionais do Japão. “Quando (Bill) Clinton chegou à Casa Branca, era contra o Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte), mas depois o aprovou. Quando (Barack) Obama assumiu, era contra o acordo de livre comércio com a Coreia do Sul e depois mudou de opinião. Temos de distinguir o que foi dito na campanha do que será implementado na Casa Branca. Não excluo a possibilidade de os EUA reverterem para algo semelhante ao TPP.”

O primeiro-ministro Shinzo Abe, o único governante que já se reuniu duas vezes com Trump desde sua eleição, está trabalhando intensamente nisso. “Abe mencionou várias vezes no Parlamento que está tentando convencer os Estados Unidos a voltar”, observa Yorizumi Watanabe, professor de economia política internacional da Universidade Keio. “Mas a retirada da TPP foi um tema importante desde o início da campanha de Trump, e ele não está pronto para mudar de ideia.”

“Lamentamos muito a saída de Trump da TPP”, afirma Heizo Takenaka, ex-ministro da Economia e ex-colega de Abe no gabinete de Junichiro Koizumi (2001-2006). “Trump quer negociações bilaterais, mas não temos certeza de que o governo japonês aceitará isso. A TPP é um acordo histórico. Abe será muito paciente em tentar convencer Trump a aceitá-lo.”

O Chile convidou os outros 11 países signatários da TPP (Austrália, Brunei, Canadá, Japão, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Cingapura e Estados Unidos, além do próprio Chile), e mais a China, a Coreia do Sul e a Colômbia para uma reunião de cúpula sobre comércio nos dias 14 e 15. A Colômbia participa com o Chile, México e Peru da Aliança do Pacífico, e era também candidata a entrar na TPP. Os membros da TPP, com exceção dos EUA, realizarão uma reunião paralela. Eles vão para discutir a viabilidade da fórmula “TPP menos 1”, ou seja, como seguir adiante sem os EUA.

O acordo não pode entrar em vigor com os outros 11 participantes por causa de uma cláusula segundo a qual ele só é válido com a participação de no mínimo 85% do PIB de seus membros fundadores. Sem os EUA (ou sem o Japão), é impossível atingir essa marca.

“Os outros 11 até poderiam criar um acordo idêntico, sem a cláusula dos 85%, mas na prática sem os EUA o impacto é muito menor”, avalia o economista Kenichi Kawasaki, do Instituto Nacional de Pós-Graduação em Estudos de Políticas (Grips), de Tóquio. “A TPP não está morta, mas é improvável que os EUA participem com Trump. Precisaremos esperar quatro anos. Ou oito”, completa ele sorrindo, numa referência à possibilidade de Trump se reeleger.

A expectativa de Kawasaki é que EUA e Japão avancem em negociações bilaterais, como quer Trump, e depois esses acordos “se espalhem” gradualmente para outros países da TPP, começando pelos mais avançados: Austrália, Nova Zelândia e Cingapura. Kawasaki e sua equipe se dedicam a estimar o impacto econômico da entrada dos países na TPP. Como exercício de simulação, eles calcularam, por exemplo, que a Grã-Bretanha — que não banha o Pacífico — teria mais vantagens na TPP do que na União Europeia. Toda essa atratividade se deve ao fato de que a TPP é muito mais do que um acordo de livre comércio, apontam os especialistas: envolve também a liberalização de serviços, incluindo os financeiros, harmoniza as leis sobre investimentos e, ainda mais importante, abre os contratos governamentais à concorrência de todos os países membros. Além disso, nivela as regras trabalhistas, retirando muito da vantagem que a China e os países emergentes do Sudeste Asiático têm com relação aos encargos sociais.

A China foi excluída da TPP como parte de uma estratégia declarada de Obama na qual os Estados Unidos desenhariam as regras do comércio no Pacífico, e só depois os chineses embarcariam, com o bonde andando. Com a China, os países do Pacífico negociam paralelamente desde março de 2013 a Parceria Regional Econômica Ampla (RCEP), que inclui também o Japão, Austrália, Nova Zelândia, Índia, Coreia do Sul, Cingapura, Malásia, Tailândia, Filipinas, Vietnã, Mianmar, Indonésia, Laos, Camboja e Brunei. Esse acordo, no entanto, alcança apenas 80% dos produtos desses países, enquanto a TPP chega a quase 100%, observa Kawasaki.

O Japão, por exemplo, ofereceu tarifa zero para 95% de seus produtos, e manteve as altas tarifas para as suas commodities consideradas “sagradas” — arroz, trigo, carne bovina e suína, laticínios e açúcar — que no entanto em valor representam entre 50% e 60% de seu mercado de produtos agrícolas. Segundo Kawasaki, o Japão não avançaria mais que isso em nenhum acordo, hoje. “Esses 95% representam uma mudança drástica com relação às ofertas anteriores do Japão, que eram de 90%”, analisa o especialista. Os 5% acrescentados se referem a verduras frescas e frutas. “Tudo, com exceção das cinco sagradas. Seria muito difícil avançar, e dizemos isso porque somos educados. Na verdade, é impossível.”

A estratégia japonesa era usar a TPP para pressionar a China a avançar nas negociações da RCEP. Agora, com a saída de Trump, esse incentivo deixa de existir, reconhece o especialista. A questão é de saber se a RCEP poderia passar a exercer o papel inverso: de pressionar os EUA a reavaliar sua saída da TPP. Mas esse cenário no momento é improvável.
“Logo depois da conclusão da TPP (fevereiro de 2016), participei de uma conferência na China, em que havia um pessoal do governo chinês muito nervoso com o acordo”, recorda Kawasaki. “Entre os economistas chineses, metade apoia a entrada do país na TPP e a outra metade, não. Eu digo aos chineses que eles não precisam ter medo, podem entrar.” Já na RCEP, a China participou da criação. “De acordo com a minha simulação, a China seria o grande beneficiário da RCEP, por ser a maior economia do bloco”, afirma Kawasaki.

O peso da política  

Com a eleição de Trump em novembro, começaram a circular interpretações de que a Austrália tentaria substituir os EUA pela China na TPP. “Acho muito estranha essa ideia, porque já temos as negociações da RCEP”, analisa Watanabe. “Talvez a intenção da Austrália seja não perder os países latino-americanos”, continua ele, referindo-se ao México, Chile e Peru, que estão na TPP mas não na RCEP. “Mas continuaremos a integração. A China está interessada na RCEP. Esperamos que o Japão e a China trabalhem juntos para fazer a RCEP avançar.”

Essa possível cooperação é o aspecto mais estratégico da RCEP. China e Japão vivem sob constante tensão por causa da disputa sobre as ilhas Senkaku, administradas pelos japoneses e reivindicadas pelos chineses. Um pouco como aconteceu nos anos 80 com o Mercosul, cujo objetivo principal foi distender as relações entre Brasil e Argentina, a aproximação comercial é vista por todos os analistas como um meio de evitar a deterioração nas relações das duas maiores economias asiáticas.

Numa amostra da relação entre grau de desenvolvimento e de concessão em negociações de acordos amplos como a TPP, Kawasaki diz que o Japão precisaria emendar apenas cinco leis sobre extensão de direitos de propriedade para se ajustar aos termos da parceria. Nas áreas de investimento direto, contratos governamentais, regras sanitárias e trabalhistas, nada precisa mudar no Japão, afirma o especialista. Já na Malásia, 20 leis trabalhistas precisariam ser alteradas. “A Malásia participa sem problemas.”

Com relação aos países latino-americanos, Kawasaki observa que o Japão tem “ótimas relações de longo prazo”, e um acordo bilateral já firmado com o Chile e outro em negociação com a Colômbia. “Estive duas vezes em Santiago”, conta o especialista. “Mas, nas relações econômicas, a distância importa. Por isso, priorizamos os mercados vizinhos.”
“A Ásia é muito promissora para as companhias japonesas”, concorda Osamu Katano, economista-sênior da trading Mitsui. “Independentemente da TPP, as pessoas acham que é o melhor lugar para investir.”

Kawasaki chama a atenção para o fato de que nem tudo são cortes de tarifas nas relações comerciais. “Tenho muita expectativa em negociações bilaterais sobre questões financeiras”, diz ele. “Repare que a Organização Mundial do Comércio e o Fundo Monetário Internacional sempre se reúnem separadamente. Por que não se juntarem? Uma mudança de 5% nas tarifas importam, mas uma depreciação de 10% na moeda também importa para o comércio.”

Ainda assim, Kawasaki vê a TPP como a “medalha de ouro” da Abenomics, a estratégia do primeiro-ministro Shinzo Abe de tirar o Japão da estagnação com o tripé juro baixo, gasto público e reformas estruturais. “Todas as medidas macroeconômicas, monetárias, financeiras e fiscais já foram tomadas”, observa o economista. “O impacto disso é limitado. Se não tivéssemos a TPP e a Olimpíada, por que os japoneses acreditariam no futuro?”

* O repórter viajou a convite do governo japonês.

Acompanhe tudo sobre:Exame Hoje

Mais de Mundo

Há chance real de guerra da Ucrânia acabar em 2025, diz líder da Conferência de Segurança de Munique

Trump escolhe bilionário Scott Bessent para secretário do Tesouro

Partiu, Europa: qual é o país mais barato para visitar no continente

Sem escala 6x1: os países onde as pessoas trabalham apenas 4 dias por semana