A Waterloo dos vinhos
O mercado nunca mais foi o mesmo depois da batalha de degustação em que os franceses foram derrotados pelos americanos
Da Redação
Publicado em 12 de outubro de 2010 às 18h10.
Há exatos 30 anos, os franceses começaram a perder a hegemonia no mercado de vinhos de qualidade, numa prova de degustação que ficou conhecida como O Julgamento de Paris. O evento mudou completamente a história da bebida, mostrando que produtores de novas regiões poderiam competir em pé de igualdade com as tradicionais. O estopim da revolução foi um evento realizado em 24 de maio de 1976 no Hotel Intercontinental, nas redondezas da Champs-Elysées. Na ocasião, depois de um teste realizado às cegas por nove respeitados enólogos (todos franceses), exemplares de Bordeaux e Borgonha sofreram uma derrota fragorosa. Para a auto-estima nacional, o resultado foi o equivalente ao da Batalha de Waterloo. No lugar dos ingleses que humilharam Napoleão, encontravam-se agora os americanos, representados por jovens rótulos de tintos e brancos californianos. Até então eles eram conhecidos apenas por fabricar garrafões de bebida barata, cuja única utilidade recomendada pelos especialistas era servir de tempero para comida. Daí o espanto de todos quando saíram vitoriosos no teste de degustação. "A prova de Paris destruiu o mito da supremacia francesa e marcou a democratização do mundo do vinho", afirma o crítico americano Robert Parker, um dos mais respeitados do mercado internacional.
O julgamento que mudou a história da bebida foi planejado de forma absolutamente despretensiosa por um inglês e uma americana, sócios de uma loja de vinhos na capital francesa. A pretexto de comemorar de um jeito original e simpático o aniversário da independência americana, eles trouxeram para a prova de degustação várias garrafas de brancos e tintos produzidos no Vale do Napa, na Califórnia. Quando a degustação às cegas teve início no Hotel Intercontinental com a abertura dos brancos, os nove jurados ficaram perplexos por não saber distinguir a nacionalidade do que estavam bebendo. Os que tentaram emitir alguma opinião durante o teste erraram feio. "Ah, de volta à França", afirmou um deles, erguen do a taça, sem saber que havia acabado de entornar um Chardonnay californiano. Para surpresa de todos, os rótulos americanos ocuparam três das quatro primeiras posições, incluindo o campeão da rodada (Chateau Montelena, 1973). No teste dos tintos, deu novamente um californiano na primeira posição, mas com equilíbrio maior entre as demais garrafas avaliadas (veja quadro).
O teste ficou conhecido mundialmente graças ao trabalho de George M. Taber, que trabalhava na época como correspondente em Paris da revista americana Time. Ele foi o único jornalista que se interessou pela cobertura da prova de degustação. Quando as notas dos juízes revelaram a derrota surpreendente dos franceses, Taber achou que tinha uma boa história para enviar a seus editores nos Estados Unidos. Complementou o artigo com entrevistas realizadas com alguns dos vinicultores californianos envolvidos na disputa, como o advogado Jim Barret, responsável pelo Chateau Montelena. "Nada mal para um grupo de meninos da roça", afirmou ele ao saber do resultado de Paris.
TROCA DE ACUSAÇÕES
Enquanto os americanos faziam festa com o resultado, os franceses iniciaram uma verdadeira caça às bruxas quando ficou claro o tremendo estrago que o julgamento traria a seus produtos. Revivendo a secular rivalidade entre os vizinhos do Canal da Mancha, não faltou gente que se lembrasse da nacionalidade de um dos mentores do evento, Steven Spurrier -- a lógica era que a prova só poderia fazer parte de um complô inglês para prejudicar os franceses. Outra grande saia-justa foi enfrentada por Pierre Bréjoux, que chefiava o órgão de controle da produção dos melhores vinhos da França e estava entre os nove jurados do Hotel Intercontinental. Quando veio a público o saldo da degustação, os vinicultores iniciaram uma campanha exigindo sua renúncia ao cargo. Muitos dos enólogos que participaram da prova até hoje não falam publicamente sobre o assunto, tamanho o trauma desencadeado pelo resultado, conforme conta o jornalista Taber no livro que publicou em 2005 (O Julgamento de Paris).
Ao longo das últimas décadas surgiram também vários especialistas tentando desqualificar a degustação. Segundo Taber, a metodologia utilizada deturpou o resultado, e as garrafas francesas escolhidas não haviam ainda atingido todo o seu potencial, pois eram de safras muito jovens. Essa teoria conspiratória, porém, não resistiu a provas posteriores que colocaram novamente, lado a lado, os mesmos rótulos franceses e californianos. Numa das mais recentes delas, realizada para comemorar os 30 anos do Julgamento de Paris, foram as mesmas safras do evento original reunidas-- ou seja, todos os vinhos estavam envelhecidos por três décadas. Para não haver dúvida a respeito da índole dos juízes, foram convocados dois grupos de nove avaliadores, um deles composto de europeus, outro de americanos. O resultado do tira-teima? Nova vitória dos Estados Unidos.
Há exatos 30 anos, os franceses começaram a perder a hegemonia no mercado de vinhos de qualidade, numa prova de degustação que ficou conhecida como O Julgamento de Paris. O evento mudou completamente a história da bebida, mostrando que produtores de novas regiões poderiam competir em pé de igualdade com as tradicionais. O estopim da revolução foi um evento realizado em 24 de maio de 1976 no Hotel Intercontinental, nas redondezas da Champs-Elysées. Na ocasião, depois de um teste realizado às cegas por nove respeitados enólogos (todos franceses), exemplares de Bordeaux e Borgonha sofreram uma derrota fragorosa. Para a auto-estima nacional, o resultado foi o equivalente ao da Batalha de Waterloo. No lugar dos ingleses que humilharam Napoleão, encontravam-se agora os americanos, representados por jovens rótulos de tintos e brancos californianos. Até então eles eram conhecidos apenas por fabricar garrafões de bebida barata, cuja única utilidade recomendada pelos especialistas era servir de tempero para comida. Daí o espanto de todos quando saíram vitoriosos no teste de degustação. "A prova de Paris destruiu o mito da supremacia francesa e marcou a democratização do mundo do vinho", afirma o crítico americano Robert Parker, um dos mais respeitados do mercado internacional.
O julgamento que mudou a história da bebida foi planejado de forma absolutamente despretensiosa por um inglês e uma americana, sócios de uma loja de vinhos na capital francesa. A pretexto de comemorar de um jeito original e simpático o aniversário da independência americana, eles trouxeram para a prova de degustação várias garrafas de brancos e tintos produzidos no Vale do Napa, na Califórnia. Quando a degustação às cegas teve início no Hotel Intercontinental com a abertura dos brancos, os nove jurados ficaram perplexos por não saber distinguir a nacionalidade do que estavam bebendo. Os que tentaram emitir alguma opinião durante o teste erraram feio. "Ah, de volta à França", afirmou um deles, erguen do a taça, sem saber que havia acabado de entornar um Chardonnay californiano. Para surpresa de todos, os rótulos americanos ocuparam três das quatro primeiras posições, incluindo o campeão da rodada (Chateau Montelena, 1973). No teste dos tintos, deu novamente um californiano na primeira posição, mas com equilíbrio maior entre as demais garrafas avaliadas (veja quadro).
O teste ficou conhecido mundialmente graças ao trabalho de George M. Taber, que trabalhava na época como correspondente em Paris da revista americana Time. Ele foi o único jornalista que se interessou pela cobertura da prova de degustação. Quando as notas dos juízes revelaram a derrota surpreendente dos franceses, Taber achou que tinha uma boa história para enviar a seus editores nos Estados Unidos. Complementou o artigo com entrevistas realizadas com alguns dos vinicultores californianos envolvidos na disputa, como o advogado Jim Barret, responsável pelo Chateau Montelena. "Nada mal para um grupo de meninos da roça", afirmou ele ao saber do resultado de Paris.
TROCA DE ACUSAÇÕES
Enquanto os americanos faziam festa com o resultado, os franceses iniciaram uma verdadeira caça às bruxas quando ficou claro o tremendo estrago que o julgamento traria a seus produtos. Revivendo a secular rivalidade entre os vizinhos do Canal da Mancha, não faltou gente que se lembrasse da nacionalidade de um dos mentores do evento, Steven Spurrier -- a lógica era que a prova só poderia fazer parte de um complô inglês para prejudicar os franceses. Outra grande saia-justa foi enfrentada por Pierre Bréjoux, que chefiava o órgão de controle da produção dos melhores vinhos da França e estava entre os nove jurados do Hotel Intercontinental. Quando veio a público o saldo da degustação, os vinicultores iniciaram uma campanha exigindo sua renúncia ao cargo. Muitos dos enólogos que participaram da prova até hoje não falam publicamente sobre o assunto, tamanho o trauma desencadeado pelo resultado, conforme conta o jornalista Taber no livro que publicou em 2005 (O Julgamento de Paris).
Ao longo das últimas décadas surgiram também vários especialistas tentando desqualificar a degustação. Segundo Taber, a metodologia utilizada deturpou o resultado, e as garrafas francesas escolhidas não haviam ainda atingido todo o seu potencial, pois eram de safras muito jovens. Essa teoria conspiratória, porém, não resistiu a provas posteriores que colocaram novamente, lado a lado, os mesmos rótulos franceses e californianos. Numa das mais recentes delas, realizada para comemorar os 30 anos do Julgamento de Paris, foram as mesmas safras do evento original reunidas-- ou seja, todos os vinhos estavam envelhecidos por três décadas. Para não haver dúvida a respeito da índole dos juízes, foram convocados dois grupos de nove avaliadores, um deles composto de europeus, outro de americanos. O resultado do tira-teima? Nova vitória dos Estados Unidos.
Os campeões de Paris | ||
As notas concedidas pelos juízes aos rótulos testados na prova de 1976 | ||
TINTOS | pontos | |
1 | Stag';s Leap Wine Cellars, 1973 (EUA) | 127,5 |
2 | Château Mouton-Rothschild, 1970 (França) | 126,0 |
3 | Château Haut-Brion, 1970 (França) | 125,5 |
4 | Château Montrose, 1970 (França) | 122,0 |
5 | Ridge Monte Bello, 1971 (EUA) | 103,5 |
BRANCOS | pontos | |
1 | Chateau Montelena, 1973 (EUA) | 132,0 |
2 | Mersault-Charmes, 1973 (França) | 126,5 |
3 | Chalone Vineyard, 1974 (EUA) | 121,0 |
4 | Spring Mountain, 1973 (EUA) | 104,0 |
5 | Beaune Clos des Mouches, 1973 (França) | 101,0 |