Há exageros nas ações de tecnologia e comércio digital, afirma Constância
Em entrevista à Exame, Cassiano Leme compara momento atual ao da bolha da internet e diz que alta das varejistas é passageiro
Guilherme Guilherme
Publicado em 11 de outubro de 2020 às 10h46.
Última atualização em 11 de outubro de 2020 às 16h57.
Pioneiros no Brasil em aliar gestão tradicional com análise de dados automatizadas, os fundos da Constância Investimentos aplicam em mais de 100 ações ao mesmo tempo. Mas, por mais que as ações de empresas ligadas à tecnologia e ao comércio eletrônico estejam entre as maiores altas da bolsa no ano, dificilmente elas terão espaço relevante nos fundos da gestora. Isso porque para Cassiano Leme, presidente da Constância e Julio Erse, diretor de gestão, há “exageros” na avaliação desses ativos.
“O mercado internacional em 1998, 1999, tinha uma situação parecida com a de hoje. Tinham expectativas de crescimento muito otimistas em relação a certas empresas. O que aconteceu naquela época é que esses crescimentos não se materializaram e, em algum momento, os preços caíram”, afirma Leme em entrevista exclusiva à Exame.
Para Leme, a força do varejo, que, em agosto, bateu nível recorde de atividade, também não deve perdurar por muito tempo. “É lógico que vai haver uma acomodação disso num futuro próximo. Com os comércios reabrindo, essa dinâmica tende a reverter, mesmo que parcialmente”, comenta.
Embora vejam o cenário interno deteriorado pela questão fiscal, os maiores temores da casa, no curto prazo, são as eleições americanas , que veem como “muito incertas”. "A capacidade de previsão das pesquisas americanas ainda não é muito boa. Em 2016, foi uma enorme surpresa”, diz Leme.
Mas além de uma possível vitória do candidato democrata Joe Biden , que deve aumentar os impostos corporativos, a Constância vê como risco adicional a possibilidade de os resultados serem contestados devido ao maior número de votos por correios. “Não é difícil construir um caso de que houve fraude eleitoral. Há uma probabilidade muita alta disso ocorrer.”
Confira a entrevista com Cassiano Leme e Julio Erse:
Exame: Como surgiu a ideia de aliar processamento de dados por meio de computadores com a abordagem tradicional?
Cassiano Leme: A gente reparou que essas estratégias de análise de dados por meio de computadores ainda não tinha chegado ao Brasil. Começamos a implementar isso nos fundos em 2015 e acabou tendo um resultado bacana. Com isso, o conceito pegou corpo. Ele é baseado no sistema fundamentalista tradicional, mas em vez de analistas, computadores fazem tudo de forma automatizada. São robôs de análise. Eles vão buscar a mesma informação que um analista buscaria em balanços, mas fazem isso com muita informação e muito rápido. É um monitoramento de todas as ações do mercado. Se tivessem 2.000 ações, o sistema rodaria igual.
E onde entra a parte humana?
CL: A turma que trabalha aqui implementa isso no mercado com alguma discricionariedade, com outras informações captadas de forma mais tradicional. Tem gente de pesquisa quantitativa, com doutorado em economia, matemática, física. São pessoas com formação bem pesada para implementar a desenvolver essa área de análise. E tem a turma da área de gestão, com formação mais tradicional, que tenta conjugar experiência de mercado com o poder de análise mais teórico [automatizado]. Esse arcabouço que a gente usa permite ficar de olho em todas as oportunidades de mercado por menores que sejam, por mais escondidinhas.
Isso permite uma maior diversificação?
CL: Nossa filosofia é muito voltada para diversificação. Nossas posições são relativamente pequenas. Muito difícil alguma ação ocupar mais de 5% da carteira. Na grande maioria, elas representam 1,5%, 0,8%, 2% do portfólio. São mais de 100 ações na carteira. A gente não vai a campo para matar leão, que é arriscado, mas vai a campo para matar passarinho. Mas tenta matar muito passarinho. Faz muitos investimentos e quer ter um índice de acerto alto e com isso os retornos que a gente gera retornos são frutos de muitos retornos diferentes.
O Ibovespa vem de duas quedas mensais consecutivas e muito devido à questão fiscal. Como vocês têm visto esse cenário?
Julio Erse: Tem o desafio fiscal porque o governo gastou em uma série de medidas para minimizar os efeitos da pandemia. O Brasil optou por resposta agressiva. De um lado, a gente teve uma queda do PIB bem abaixo dos países emergentes. Em abril, tinha perspectiva de queda de PIB de 9% e hoje a expectativa é de 5,5% de queda e para o ano que vem de 3,5% de alta e tem alguns setores que já estão acima de pré-pandemia. Tudo efeito dessa resposta. Mas o mercado vem pedindo prêmio porque tem uma incerteza muito grande e vai continuar pedindo enquanto a agenda de reformas não fica clara. Não é difícil evitar bater o teto em 2021. Mas a questão segue para 2022 e adiante. Tudo vai depender da agenda de reformas. Não está claro qual é a reforma e quando elas vão ser aprovadas. Parece que houve alguma acomodação entre Congresso, governo e até Ministério da Economia, que vinha sendo muito criticado.
O avanço das reformas poderia ser um novo gatilho para o mercado brasileiro?
JE: Tem um espaço para reprecificação das ações no Brasil, só que isso depende muito de um pouco mais de visibilidade dessa questão doméstica. Na bolsa, o múltiplo que negociava as bolsas globais subiu. Então, as ações estão historicamente mais caras, mas no Brasil está no mesmo nível e, em alguns grupos, até abaixo dos níveis pré-pandemia. Por várias métricas também dá para dizer que o real está barato. O Brasil só depende dele mesmo. Depende de retomar a caminhada que já vinha desde o governo Temer, com convergência dos gastos, aprovação de reformas.
Em setembro, o varejo bateu o maior nível de atividade desde o início da série histórica, em 2003. Como o auxílio contribuiu?
JE: Tem empresa que não tem varejo eletrônico e sofreu mais. O varejo eletrônico se beneficiou muito. Não só porque teve uma mudança de hábito de consumo, mas teve uma questão importante com relação ao auxílio, porque ele foi distribuído para 66 milhões de pessoas. Você não tem isso de desempregado no país. Então isso levou a um aumento de renda. Isso justamente nas mãos de famílias mais pobres é um aumento de consumo importante. Alguns foram muito prejudicados pela pandemia, outros foram beneficiados.
Esse efeito é sustentável?
CL: É lógico que vai haver uma acomodação disso num futuro próximo. Com os comércios reabrindo, essa dinâmica tende a reverter, mesmo que parcialmente. Algum padrão de consumo certamente deve ter sido alterado, mas tanto o estímulo não vai seguir na mesma intensidade, como as lojas estão reabrindo. Então faz sentido esperar alguma normalização, alguma reversão para padrões anteriores. Mas seu eu fosse varejista, estaria extremamente preocupado em como conjugar uma estratégia eletrônica com uma de loja física.
Até por esses motivos houve um rali para as ações de varejistas mais digitais, como Magazine Luiza, Via Varejo e B2W. Elas foram sobrevalorizadas?
CL: Há várias indicações nesse sentido. A gente viu isso não só no Brasil, mas no mercado internacional também. Ações com algumas narrativas que ganharam força com a pandemia, como o comercio eletrônico, passaram a negociar com avaliações que tem pouco precedente histórico. Igualmente, podemos argumentar que varejistas mais tradicionais ficaram relativamente muito baratas. A gente vê uma clara possibilidade de exagero nessas avaliações. Existem alguns sinais claros de superavaliação desses papéis de narrativa. Para pegar um exemplo estrangeiro, dá para perceber esses sinais em empresas como Tesla. E parte disso foi refletido aqui. Tem um pouco de correspondência, quase uma tradução, daquelas narrativas do mercado internacional, principalmente dos EUA com contexto brasileiro. A Amazon é a Magazine Luiza. A Telsa é a Weg, e por aí vai.
Esse exagero ocorreu em ações de tecnologia do Brasil, como da Locaweb, que entrou na bolsa neste ano, disparou e já é tem um dos maiores múltiplos da Bolsa?
CL: Não sei comentar Locaweb individualmente, mas acredito que no segmento de tecnologia em geral, sim. Você vê uma certa exuberância. O mercado internacional em 1998, 1999, tinha uma situação parecida com a de hoje. Tinham expectativas de crescimento muito otimistas em relação a certas empresas. O que aconteceu naquela época é que esses crescimentos não se materializaram e em algum momento os preços caíram. Vamos ver se esse ciclo é diferente. A perspectiva econômica de crescimento no Brasil e no resto do mundo não é otimista por conta da pandemia e outros problemas. Eu sou um pouco cético a respeito de hipóteses de crescimento vertiginoso por muito tempo nesse contexto econômico. A tendência do comercio eletrônico existe, isso são realidades econômicas. O que se discute é se o otimismo embutido no preço dessas ações é realista ou se a gente está falando de coisas um pouco mais moderadas que a expectativa.
O preço está alto?
JL: O preço pago hoje é historicamente muito alto. É uma tendência onde você tem que pagar muito mais para participar. Mas, historicamente os investidores não se comprovaram bons em fazer esse tipo de extrapolação. No passado, quando havia algum desvio de avaliação, acabava muito mal, principalmente no coletivo, individualmente, às vezes não.
CL: Isso até lembra no ano 2000, quando a Cisco negociava com avaliação altíssima, de dez vezes receita, e o preço dessa ação caiu 90% apesar de a empresa não ter ido mal. O que aconteceu foi que as expectativas se frustraram.
JL: A Magazine [Luiza] não negocia nesse nível, mas já está em 7 vezes [receita] já.
CL: É um parâmetro interessante
O oposto também ocorreu? Empresas ligadas à economia tradicional, como grandes bancos, acabaram ficando baratos?
CL: Essa é mais difícil de responder. Os grandes bancos brasileiros têm desafios competitivos importantes. Historicamente, eles têm lucros muito altos. São parte de um oligopólio. De repente, entrou muita competição nova com as fintechs, que começou com a XP, mas todo o resto que veio por aí. A situação competitiva deles não é tão tranquila quanto já foi no passado. O juízo se os bancos estão baratos é um pouco mais difícil. Não estão, obviamente, fora de preço. Poderia estar um pouco para lá ou para cá, mas não é possível afirmar que estão baratíssimos. O ambiente competitivo está em transformação e o de expansão de crédito não está expansionista. Na casa, a gente tem um pouco de banco, mas muito menos do que já teve no passado. Não é um setor que a gente fica mais animado.
Nas últimas semanas, a gente viu uma série IPOs sendo cancelados ou adiados. Eles tendem a perder força?
CL: A gente está vendo um cenário novo no Brasil que é o de contração da taxa de juros e a expectativa de voltar a ser no curtíssimo prazo não está colocada. Então tem muita migração de renda fixa para ativos de risco, incluindo ações. Então tem uma demanda por ações que vai ser refletido em IPO, não só no preço. Essa é uma dinâmica extremamente saudável na nossa forma de ver. Quanto mais o mercado acionário for uma fonte de capital viável para as empresas, melhor. Alguns vão ser viáveis, outros não. Isso é absolutamente normal. É isso que se espera de economia aberta, onde investidores tomam decisões baseadas aos riscos específicos de cada operação. É assim que o mercado opera e chega à conclusão de quais empresas merecem estar na bolsa e quais não merecem. Então acho perfeitamente natural tudo isso e espero que continuem os IPOs.
Quem vence as eleições americanas e quais serão os efeitos no mercado?
CL: As eleições americanas ainda estão muito incertas. A capacidade de previsão das pesquisas americanas ainda não é muito boa. Em 2016, foi uma enorme surpresa. É uma dinâmica completamente diferente da nossa. O voto não é obrigatório e o comparecimento é extremamente decisivo e difícil de estimar. Então, não dou tanto crédito em Joe Biden ser eleito por conta das pesquisas. E eu imagino que a formação de preço no mercado reflita um pouco essa minha visão também. É evidente que Biden tem agenda econômica que inclui pesados aumentos de impostos, aumento de regulação. Então é toda uma agenda que não seria positiva para o mercado acionário. Mas é difícil visualizar qual vai ser a primeira reação do mercado se ele ganhar porque vai depender do que ocorrer nas eleições do Congresso também. Uma coisa é um presidente democrata com programa de alta tributação apoiado por Câmara e Senado, outra coisa é se o Senado estiver na mão dos republicanos. São cenários muito distintos.
Há expectativa de contestação de resultados?
JE: A gente vê isso quando se mede o preço da proteção do mercado para o período pós-eleitoral. Para novembro, dezembro e até janeiro tem um custo de proteção muito mais elevado que em outras eleições e não é tanto em relação a quem vai sair vitorioso, é mais se em cima de uma possível guerra judicial em relação ao processo eleitoral.
Uma vitória de Biden com uma margem maior poderia diminuir os temores sobre a contestação de resultado?
CL: Certamente. Se bem que nas últimas eleições os resultados foram apertados. Tem eleição decidida por milhares de votos. Tem toda questão de voto universal por correios. Não é difícil construir um caso de que houve fraude eleitoral. Se, em uma votação separada por 20.000 votos, encontrarem uma cédula na lata de lixo ou no riacho, isso pode ficar no tribunal por meses. Seria uma confusão. Mas se o resultado foi muito distanciado, essa coisa não se coloca tanto. Mas acho maior a probabilidade de as eleições serem apertadas e essas coisas serem colocadas. Há uma probabilidade muita alta disso ocorrer.