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Luta deve ser diária, pessoas não se matam só em setembro, diz psiquiatra

Para Victor Bigelli, sócio fundador da Herah, "não há máscara que evite a contaminação psicológica durante a pandemia"

Saúde mental: para professor de curso da EXAME Academy, problema da saúde mental pode ser ainda maior que uma pandemia (Pikisuperstar/Freepik/Divulgação)

Saúde mental: para professor de curso da EXAME Academy, problema da saúde mental pode ser ainda maior que uma pandemia (Pikisuperstar/Freepik/Divulgação)

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Da Redação

Publicado em 28 de setembro de 2020 às 19h06.

Última atualização em 7 de outubro de 2020 às 14h17.

Há dez anos me tornei psiquiatra e já se projetava que, em 2020, a depressão seria a primeira causa de perda de produtividade e qualidade de vida no mundo. O que aconteceu neste ano? Tenho quase certeza que você pensou na pandemia e ainda que ela superou a depressão, mas não é bem assim.

Pandemias sempre aconteceram na história da humanidade e são um fenômeno natural. Como seres reflexivos, ao longo do tempo nos tornamos capazes de enfrentá-las, seja produzindo vacinas para prevenção ou melhorando as formas de tratamento. Assim foi com a gripe espanhola, assim é com o HIV e assim será com a covid-19.

Em paralelo à pandemia infecciosa, noticiada incansavelmente em diversas mídias, enfrentamos uma crise global de saúde mental. Esta, em contraste, não tem merecido o destaque proporcional nos meios de comunicação. Depressão, insônia, ansiedade patológica, abuso de substâncias e, agora, estresse pós-traumático multiplicam-se em maior velocidade que a do SARS-CoV-2.

O mundo atual propaga e multiplica o sofrimento mental em forma de solidão — embora esta ainda não seja classificada como doença nos manuais diagnósticos de psiquiatria, já sabemos que aumenta a mortalidade de diversas doenças físicas crônicas.

O fato é que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 25% a 30% da população no mundo possui um transtorno mental. Ampliando o conceito de bem estar, podemos imaginar que o sofrimento mental é ainda maior. Você se sentiu sozinho ou muito preocupado durante essa pandemia? Mesmo tendo contato por meio da tecnologia com sua família, amigos próximos ou colegas de trabalho, sentiu uma sensação de estranheza no ar? Reparou que é difícil o “olho no olho” na videoconferência?

Na minha opinião não há máscara que evite essa contaminação psicológica, inclusive a própria máscara propaga a sensação de estranheza e ativa uma região do cérebro [amígdala] responsável pela percepção de perigo. Já são sete meses de estresse constante! E quando o estresse é constante, os níveis de cortisol e adrenalina aumentam na corrente sanguínea, piorando nossa saúde física e mental.

A pandemia é um fato natural que surpreendeu e vem causando estresse diário, mas, antes da possibilidade de infecção pelo SARS-CoV-2, temos sido submetidos a uma carga cognitiva sobre-humana que provoca a intensificação e disseminação do sofrimento mental.

Felizmente, devido à covid-19 e ao isolamento social, o tema saúde mental entrou em pauta, inclusive surgiu como a segunda grande preocupação da OMS. Porém, é uma pena que ainda se fale de saúde mental sem a seriedade e o olhar médico necessários. Se a pandemia trouxe à tona a importância do método científico para o bom cuidado de saúde, abriu espaço para o que chamo de clorocologia e terraplanismo em saúde mental.

Sobre a primeira, multiplicaram-se empresas que “uberizam” a saúde mental na mão de profissionais, em sua maioria não médicos e por vezes nem psicólogos, que se submetem a tratar o sofrimento humano por 15 minutos em troca de poucos reais. Com base na minha prática clínica e na ciência, é impossível fazer um bom diagnóstico, implementar um tratamento adequado e estabelecer um bom vínculo terapêutico nesse contexto — estão vendendo “cloroquina” para resolver os problemas de saúde mental.

“Pelo menos mal não faz” é o que nós, psiquiatras, ouvimos com desgosto sobre a palavra terapia. Em medicina, não se pula a etapa do diagnóstico, porque na psiquiatria ou em saúde mental seria diferente. Como em qualquer outra profissão, se não há diagnóstico do problema, não há caminho para solução. Para terem uma dimensão melhor da situação, durante a pandemia ouvi pedidos para que parássemos de avaliar o estado mental de colaboradores de determinada empresa porque estávamos encontrando “muitos problemas”.

Com relação ao terraplanismo, há ainda quem não acredite na existência do cérebro e de neurotransmissores. Assim como há um movimento contra a ciência, há um bizarro comportamento antipsiquiátrico que nega a existência de transtornos mentais moderados e graves que, sem medicamentos, não vão melhorar.

Segundo uma das revistas médicas de melhor reputação na comunidade científica, a The Lancet, neste momento 50% das pessoas com depressão maior não foram diagnosticadas e, das que foram, menos de 75% recebe o tratamento correto! Destaco que a depressão provoca tristeza, tira a capacidade de sentir prazer, diminui a energia vital, a motivação e a concentração, ou seja, diminuiu muito a produtividade de uma pessoa.

Além disso, a depressão é considerada uma doença inflamatória que aumenta a morbidade e mortalidade de muitas doenças físicas. Em depressões mais graves, as pessoas acometidas podem até perder o desejo de viver — esta é uma das grandes preocupações de nossa época, o suicídio. Esse cenário já é motivo suficiente para termos mais cuidado com a saúde mental de todos. O primeiro passo para isso é combatermos a pandemia do estigma, da desinformação e do preconceito em relação aos problemas de saúde mental. Essa luta deve ser diária e perene, pois as pessoas não se matam só em setembro.

Mesmo em meio à covid-19, a depressão ainda é a primeira causa de perda de produtividade e qualidade de vida no mundo. Explico. Com boa saúde mental, é possível se isolar em casa, trabalhar mais e melhor e organizar as contas, e ainda assim, ter criatividade para curtir a vida. Deprimido, é difícil produzir, participar de uma live, se distrair com uma série ou, até mesmo dormir e comer adequadamente, funções tão básicas e importantes ao organismo que, se não satisfeitas, em médio-longo prazo levam a problemas cardiovasculares, diabetes, câncer e até ao desequilíbrio de seu sistema imunológico.

Reflitam comigo, a covid-19 colocou todos nós num lugar muito semelhante ao de pessoas com depressão — isoladas, distantes e sem o total controle de sua vida. Contudo, há diferenças importantes entre quem está deprimido ou não. Na pandemia, tivemos de aprender a lidar com nós mesmo e a ter esperança por uma vacina. Aprendemos a cuidar de nós próprios, lavando as mãos, usando máscaras e nos distanciando. Aprendemos que fazer isso também é cuidar do outro.

Com ou sem pandemia, o mundo de quem está deprimido é sempre mais difícil. Não é fácil lidar com os próprios pensamentos negativos, não é claro como se cuidar, lhe forçam uma máscara de felicidade.  E o mais complicado de tudo, na maioria das vezes não somos cuidados. Dizem que é preguiça, falta de força de vontade ou do que fazer.

Não sabemos quanto vai durar a covid-19, mas pandemias são passageiras. A vacina está próxima e boa parte, se não todos, ficará imune ao vírus. Em paralelo, até 2030 teremos de enfrentar uma crise maior e mais duradoura, embora não menos importante. Teremos de enfrentar a grande crise de saúde mental que se ainda não afetou você, afetará alguém próximo por quem tem muita estima.

Como psiquiatra, não quero ver se repetir a história que acompanhei na última década. No ritmo de nossas ações e com a falta de seriedade científica e humana diante da saúde mental das pessoas, a depressão continuará sendo a primeira causa de perda de produtividade e qualidade de vida no mundo, além de agravar diversas outras condições de saúde. Não há vacina para os transtornos mentais, mas há um bom trabalho médico, psicológico e científico a ser feito em cima das diversas “pragas” que causam o sofrimento mental.

 

 

Dr. Victor Bigelli é professor do curso Mente em Foco: investindo na sua saúde mental para alcançar seu potencial, da EXAME Academy.

 

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