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Da Redação
Publicado em 15 de outubro de 2020 às 00h10.
Última atualização em 19 de outubro de 2020 às 19h05.
A criação do bitcoin e da maioria das criptomoedas tinha como objetivo substituir, ou até mesmo subverter, o sistema atual e buscar novos espaços para negociar e trocar produtos, serviços e informação. Uma economia digital transformaria totalmente a sociedade e a forma como fazemos e pensamos as transações financeiras e comerciais.
Tecnologias descentralizadas dariam poder ao povo para decidir como usar o próprio dinheiro, sem intermediários e sem bancos centrais assumindo um papel de regulador destas moedas digitais.
Mas, recentemente, governos de vários países, entre eles China e Estados Unidos, anunciaram planos para digitalizar suas moedas nacionais. É o que especialistas do setor e membros da comunidade de criptomoedas estão chamando de Central Bank Digital Currency (daí a sigla CBDC).
Mu Changchun, vice-chefe da divisão de pagamento e liquidação do Banco Popular da China, afirmou recentemente que a CBDC da China está praticamente pronta para ser operacionalizada.
Mas o que isso representa para a economia global? Como isso muda o cenário das criptomoedas, das tecnologias descentralizadas e da economia digital como um todo?
O dinheiro por si só é apenas uma representação. É por isso que ele assumiu diversas formas diferentes ao longo da história: conchas, metais preciosos, um pedaço de papel. O valor do dinheiro não tem a ver com o material do qual ele é feito, mas sim com o valor que as pessoas depositam nele.
O valor do dinheiro surge do fato dele ser um meio de troca, uma unidade de medida e uma reserva de riqueza. O dinheiro permite a troca de bens e serviços indiretamente e a identificação de preços de forma rápida, além de gerar a possibilidade para que façamos economias para o futuro.
O dinheiro só é valioso quando sabemos que ele será aceito para adquirir bens necessários para o nosso dia a dia. A qualquer momento, hoje e no futuro. Mas o dinheiro físico possui entraves geográficos como diferentes tipos de moedas fiduciárias, que respeitam regras e valores designados pelos Bancos Centrais de seus países.
Foi nesse cenário que surgiram dois novos modelos de moedas: pagamentos móveis e as moedas digitais. Os pagamentos móveis são os feitos por serviços como o Facebook Pay, Apple Pay, entre outros, e as moedas digitais são as criptomoedas que já falamos aqui e que estão começando a ser utilizadas também para negociações comerciais diárias de menor valor e eventualmente grandes transações.
Uma central bank digital currency, ou moeda digital emitida por banco central, é como uma versão digital de uma moeda nacional emitida por um banco central, possuindo as mesmas características de uma moeda fiduciária – meio de pagamento, unidade de medida e reserva de valor.
Como as CBDCs são centralizadas, emitidas por um banco central, elas deverão ser mais estáveis do que as criptomoedas quanto à volatilidade em relação às outras moedas emitidas por bancos centrais, as moedas tradicionais que já conhecemos, conhecidas também como moedas fiat. Neste cenário, a central bank digital currency é parte da oferta monetária base do país, junto de outras moedas em outros formatos.
Assim como não precisamos de banco para pagar a conta de um restaurante em dinheiro vivo, no caso das CBDCs, é como se cada pessoa no país tivesse acesso a uma conta bancária com ela o tempo todo, que permitisse fazer transações financeiras entre duas partes em lugares distantes em segundos, sem necessariamente precisar ter um banco como intermediário. Tudo viablockchain.
Sim. Bastante diferentes, em essência. As moedas digitais emitidas por bancos centrais, ou CBDCs, são dinheiro tradicional – mas em formato digital -, emitido e administrado pelo banco central de um país. Por outro lado, criptomoedas como bitcoin são emitidas de forma distribuída diretamente pelo código que a governa, em vez de uma instituição centralizando sua gestão.
O denominador comum é que tanto as CBDCs quanto as criptomoedas funcionam com base em tecnologias blockchain, um ledger digital que permite que as transações possam ser registradas e verificadas em tempo real por múltiplos usuários ao mesmo tempo.
Embora alguns varejistas aceitem o bitcoin como forma de pagamento, por exemplo, as criptomoedas não são reconhecidas – pelos governos dos países – como moeda legal, o que as CBDCs, por definição, seriam.
O setor privado tem trabalhado de maneira bastante intensa no lançamento de tokens e moedas digitais para o público em geral e isso levantou o debate sobre os bancos centrais começarem a emitir suas próprias moedas digitais.
A própria diretora administrativa do FMI, Christine Lagarde, pediu para que os bancos centrais considerassem as CBDCs já que elas poderiam atender metas de políticas públicas, incluindo a inclusão financeira, segurança/proteção ao consumidor e privacidade nos pagamentos.
Mas quais são os tipos de central bank digital currencies que podem ser criados pelos bancos centrais?
Esse tipo de CBDC é disponibilizado apenas para bancos comerciais e câmaras de compensação para uso no mercado interbancário de atacado. O principal objetivo seria aumentar a eficiência nos pagamentos interbancários nacionais ou internacionais, que hoje podem ser bastante ineficientes, demorados e caros para os bancos.
No entanto, a maioria dos testes com esse tipo de CBDC foram feitos com foco no uso doméstico da moeda digital. Ao usar esse tipo de moeda digital, os bancos centrais esperam obter maior eficiência nos pagamentos interbancários e na negociação e liquidação de títulos interbancários.
Bancos centrais de vários países estão experimentando esta versão do CBDC: Japão, Tailândia, Canadá, Arábia Saudita e até Cingapura.
O foco desse tipo de CBDC é o de potencialmente aumentar a inclusão financeira da sociedade, ou servir como uma alternativa estratégica ao dinheiro físico em economias onde o dinheiro está perdendo força. A CBDC, neste caso, atua como uma substituta ou complemento da moeda fiduciária e uma alternativa aos depósitos de banco tradicionais.
Para alguns países, essa forma de moeda digital tem o potencial de incentivar a participação comercial e financeira de pessoas desbancarizadas, melhorar as ferramentas de pagamentos internacionais e potencialmente restringir atividades ilícitas.
Como toda novidade tecnológica que gera grandes transformações na sociedade e na economia, existem pontos positivos e negativos com relação à criação de uma central bank digital currency.
Uma CBDC agiria como um meio de troca praticamente sem custo, o que ajudaria a aumentar a eficiência do sistema de pagamentos e facilitaria a liquidação mais rápida e segura das transações financeiras internacionais.
Essa moeda digital nacional seria particularmente útil para cidadãos de classes mais baixas que – atualmente – dependem bastante do dinheiro físico. Micro e pequenos negócios também se beneficiariam com a diminuição de custos de transações tanto com o dinheiro físico quanto com pagamentos em cartões de débito e crédito.
Em um âmbito macroeconômico, dois benefícios ficam muito claros para os países que pensam em adotar as moedas digitais emitidas por bancos centrais: maior estabilidade da moeda, por conta dos ajustes das taxas de juros sendo feitos de maneira diferente da moeda fiduciária.
Existe a possibilidade de termos um efeito negativo inesperado com relação às limitações geográficas de uma CBDC, caso elas sejam aceitas apenas no país que as emitiu.
Custos extras com compliance podem surgir a partir de uma necessidade de monitoramento adicional de políticas de combate à lavagem de dinheiro e combate ao financiamento do terrorismo.
Problemas com infraestrutura também podem ocorrer, caso haja quedas de energia elétrica ou problemas com a conexão de internet.
Além desses três pontos negativos, uma outra preocupação surge com a criação de uma CBDC pelos bancos centrais: menores taxas de crescimento econômico. À medida que eles se tornam competidores diretos de provedores de serviços de pagamento, os bancos podem perder receita e reduzir o número de empréstimos disponíveis, reduzindo assim o crescimento econômico também, pelo menos em certo nível.
Quais as razões para os bancos centrais acharem importante a criação de uma central bank digital currency? Vamos enumerá-las:
1- Com o aumento de compras feitas por cartões e pagamentos digitais, os bancos centrais enxergam como um ponto necessário fornecer formas de pagamento mais seguras ao público em geral.
2- Algumas economias – especialmente as de países emergentes – desejam reduzir o custo com a impressão e gerenciamento de dinheiro a fim de conter os crimes associados a essa atividade, promovendo ferramentas de pagamentos digitais.
Com CBDCs, é possível diminuir ou praticamente acabar com o dinheiro usado para imprimir dinheiro e em políticas de redução de falsificação de notas e moedas, além do custo com equipes e logística de distribuição.
Neste caso, as DLTs (Distributed Ledger Technology, como é chamada a tecnologia blockchain quando aplicada de forma centralizada) têm um potencial grande de reduzir os custos com transação, já que elas serão feitas usando a representação digital do dinheiro daquele país.
Uma mudança do banco central de dinheiro (dinheiro físico) para moeda digital é uma maneira de mudar a economia de uma base informal para uma formal. Isso ajuda na gestão de impostos, na transparência e na eficiência de uma economia digital. As DLTs permitem o anonimato, mas as CBDCs podem reduzir a possibilidade de transações criminosas.
3- A inclusão financeira é outra motivação importante para algumas economias emergentes em relação às propostas de varejo do CBDC baseadas nas DLTs. Ainda existe um grande número de pessoas de baixa renda ou pessoas que vivem em áreas rurais sem banco e sem acesso a bancos comerciais e à internet. As moedas digitais emitidas por bancos centrais podem promover a criação definitiva de uma economia digital e, portanto, o desenvolvimento econômico e social.
4- O uso de DLTs pode promover o ambiente tecnológico e incentivar o setor das fintechs. Muitas economias emergentes estão interessadas no desenvolvimento de centros financeiros globais em suas cidades e consideram o fomento do setor de tecnologia financeira uma das rotas mais promissoras para alcançar esse objetivo.
5- Mudar do dinheiro para uma moeda digital através da emissão de CBDC pode melhorar a eficácia da política monetária (como uma política de taxa de juros negativa sob o limite inferior efetivo).
6- Os ganhos de eficiência e estabilidade financeira são possíveis. A CBDC tem o potencial de melhorar os sistemas financeiros existentes, incluindo sistemas interbancários de pagamentos e liquidação, sistemas de pagamentos e acordos transfronteiriços, por meio da aceleração e organização dos processos de compensação e liquidação, bem como a redução do custo associado de transações e custo de desenvolvimento/atualização de sistemas de tecnologia.
De acordo com um estudo recente do Bank of International Settlements, 70% dos 63 bancos centrais entrevistados estudam as central bank digital currencies, apesar de a maioria estar em um estágio inicial de desenvolvimento.
A maior parte dos bancos centrais ainda não está pronta para lançar uma CBDC no curto prazo, talvez com exceção do Banco Popular da China que vem estudando e desenvolvendo o projeto de sua CBDC desde 2014, ou talvez o Banco Central da Suécia, que também está bastante avançado.
As criptomoedas já evoluíram bastante de 2009 até hoje. Até pouco tempo, instituições bancárias e grandes nomes do mercado financeiro como o CEO do J.P. Morgan, Jamie Dimon, comentavam que moedas digitais eram uma fraude prestes a dar errado.
No entanto, os governos passaram a olhar para as criptomoedas com novos olhos. Uma série de empresas também estão fazendo testes com o uso de tecnologias de blockchain ou DLT. Isso tudo mostra que o cenário está bastante favorável para a criação de central bank digital currencies para o uso diário por parte da população.
O fato é que com a implementação de CBDCs no mundo todo, os setores bancário e financeiro como os conhecemos podem mudar fundamentalmente, com bancos comerciais desempenhando um papel muito menor, principalmente nos depósitos à vista de cidadãos e empresas.
Dado o ritmo acelerado das inovações na tecnologia de pagamentos e a proliferação de criptomoedas como o bitcoin e o ether, pode não ser prudente para os bancos centrais esperar mais para planejar e elaborar uma central bank digital currency.
Caso o banco central não produza nenhuma forma de moeda digital útil para sua população, existe o risco da instituição simplesmente perder o controle monetário, com maior potencial de graves crises econômicas no país. Exatamente por isso, os governos e bancos centrais estão acelerando os estudos e desenvolvimentos de suas CBDCs.