Felippe Percigo: A tal da CBDC - o que são as moedas digitais de bancos centrais?
Criadas a partir do medo de ficar para trás dos governos depois do avanço dos criptoativos, as moedas digitais dos bancos centrais podem acabar sendo mais do mesmo
Da Redação
Publicado em 16 de junho de 2022 às 10h00.
Por Felippe Percigo*
As discussões acaloradas em torno das CBDCs, as moedas digitais dos bancos centrais, vão elevando sua temperatura à medida que os governos se sentem mais pressionados pelo vigor imparável dos ativos baseados em blockchain. Criptomoedas e CBDCs têm dividido a mesma frase com frequência demais, como se fossem farinha do mesmo saco ou separadas na maternidade. E isso, de forma eufemista, é meio perigoso. Além de incorreto. Arrisco até dizer que Satoshi Nakamoto consideraria uma afronta.
É fato que os governos, principalmente os de países emergentes como o Brasil, acionam a quinta marcha em uma espécie de corrida pela sobrevivência, para não serem atropelados pelo bonde cripto que vem em disparada. Muitas dessas nações em desenvolvimento enxergam na corrida pelas CBDCs uma oportunidade de atrair a atenção da comunidade internacional por seu “pioneirismo”, se posso dizer assim, e uma tábua de salvação para suas economias, vitimizadas por inflações galopantes e a drenagem do valor de suas moedas.
Outro argumento usado pelos governos é o de que as CBDCs vão colocar seus países de economias combalidas em sintonia com as tendências do sistema financeiro internacional e, juntamente com o esforço de regulamentação das criptomoedas, poderiam diminuir o atrito na transição para uma economia digital mais eficiente. Será que uma CBDC pode resolver isso? Tenho minhas dúvidas.
Na América Latina, o que se vê em lugares como a Venezuela, que lançou a sua versão no ano passado, é que essas motivações governamentais se esvaziam de sentido. Em outubro de 2021, entrou em circulação o Bolívar Digital, juntamente com mais cortes de zeros da moeda, que chegou em meio a uma hiperinflação de quase 700% e não impediu a população de se dolarizar e fugir para as stablecoins lastreadas em dólar.
Por lá, as moedas estáveis são recursos ordinários, do dia a dia, usadas para pagamentos e como proteção contra a desvalorização do dinheiro local, que acontece da noite para o dia. Nós, inclusive, já vimos esse filme. Hoje, a Venezuela, que mesmo com seu Bolívar Digital não conseguia ver uma saída, passou a adotar uma postura de maior flexibilidade em relação ao uso do dólar em transações comerciais e voltou atrás em algumas regulamentações que possibilitaram desacelerar o caos generalizado.
As stablecoins foram os instrumentos cripto que, de fato, geraram uma coceira nos bancos centrais para se movimentarem em torno das moedas digitais de estado. Eles vinham testemunhando a ascensão rápida de uma classe de criptomoedas de mais fácil compreensão, maior aderência, com volatilidade controlada e funcionalidades que resolviam questões financeiras de rotina normalmente dificultadas pelos processos bancários convencionais.
Como a blockchain foi criada para ser independente, a visão do crescimento de uma rede descentralizada e não regulamentada despertou o temor de que as stablecoins virassem uma ameaça à soberania da política monetária dos governos, já que sua emissão se mantém fora do controle dos bancos centrais, ainda que seus valores sejam atrelados a moedas fiduciárias.
A melhor solução parecia, portanto, criar uma ferramenta monetária que pudesse entregar utilidades semelhantes às das criptos lastreadas, mas que não fugisse ao controle dos BCs e, assim, assegurasse a centralização da oferta de dinheiro no órgão.
Ao encarar o gigante que se tornaram as stablecoins, hoje com um mercado de cerca de 160 bilhões de dólares (mesmo abatido com o colapso do TerraUSD), os países precisaram suavizar seus discursos para recuar na rivalidade e apostar em uma futura convivência harmoniosa das CBDCs com os ativos em blockchain atrelados a fiat.
De qualquer maneira, colocando cada moeda em seu devido lugar, a maneira com que os bancos centrais buscam desenvolver suas CBDCs nem de longe tem algum vínculo com o legado revolucionário das criptomoedas, ainda que as discussões sempre façam algum tipo de ligação entre elas.
A dinâmica de uma CBDC é muito diferente. Já ficou claro que a tecnologia blockchain será aplicada aos projetos dos governos de forma a excluir todas as bases conceituais que influenciaram o seu surgimento lá atrás, em 2008.
A rede tenderá a ser fechada, eliminando o acesso público aos dados das transações e, consequentemente, a transparência dos processos, um dos pilares das finanças descentralizadas e para onde eu acredito que o sistema financeiro deveria caminhar. Também não vejo como os BCs poderão assegurar aos usuários os mesmos benefícios à privacidade que as stablecoins oferecem, provavelmente outra pilastra a ser sacrificada. E essas são só algumas das questões.
Os casos de CBDCs no mundo ainda são rarefeitos. Há que se aguardar para ver se as mudanças terão algum efeito prático e, mais do que tudo, se terão competência para acompanhar o nível de mentalidade dos contemporâneos do bitcoin.
*Felippe Percigo é um investidor especializado na área de criptoativos, professor de MBA em Finanças Digitais e educa diariamente, por meio da sua plataforma e redes sociais, mais de 100.000 pessoas a investirem no universo cripto com segurança.
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