Queda nas bolsas não é início de grande correção, diz Figueiredo, da Mauá
Para ex-diretor do BC, eventos como eleição nos EUA e segunda onda da pandemia não vão causar paralisia global como visto em março
Marcelo Sakate
Publicado em 3 de novembro de 2020 às 06h30.
Última atualização em 3 de novembro de 2020 às 10h32.
As fortes quedas nas bolsas americanas e europeias nas últimas semanas, às vésperas das eleições nos Estados Unidos , não devem ser vistas como o início de um forte movimento de correção condizente com um novo mergulho da economia global rumo à recessão. Essa é a avaliação de Luiz Fernando Figueiredo, sócio-fundador e CEO da gestora Mauá Capital e ex-diretor do Banco Central.
O economista diz que a provável vitória -- de acordo com as pesquisas -- do democrata Joe Biden nas eleições desta terça-feira, 3, já está incorporada aos preços dos ativos nos Estados Unidos e que a atenção de investidores estará voltada para o controle do Senado, pois uma maioria democrata pode significar caminho aberto para a aprovação de aumento de impostos sobre as empresas.
Ainda assim, Figueiredo se mostra otimista quanto às perspectivas da economia global. "O mundo aprendeu a conviver com a pandemia, a tratar os doentes, e está se recuperando. O juro está baixíssimo e vai continuar assim até onde a vista alcança. E há a disposição dos países para apoiar suas economias com nova ajuda fiscal se necessário", enumera.
A visão positiva sobre a economia global cede lugar a um tom mais preocupado quando o assunto é Brasil. O experiente gestor diz que o governo não tem mais alternativa a não ser encarar a necessidade de adotar medidas para reduzir o gasto público dado o endividamento que deve bater em 100% do PIB ao fim deste ano, e isso não significa cortar gastos sociais.
A contrapartida para a agenda fiscal é a perspectiva de recuperação de valor dos ativos brasileiros, que ele descreve como "muito baratos" diante da forte depreciação nos últimos meses. Leia abaixo a entrevista de Figueiredo à EXAME:
Qual o impacto que o senhor espera das eleições americanas para os mercados?
As chances do (Joe) Biden são maiores e isso está precificado, mas a grande dúvida está no Senado, se será democrata ou republicano. O receio que o mercado tem é que, se for democrata, pode vir uma agenda com muito aumento de imposto e isso pode machucar a economia. Por outro lado, como os democratas virão com um pacote de estímulos adicional grande, superior a 2 trilhões de dólares, o mercado não está tão negativo. Temos que ver quais serão as políticas ao longo do tempo para medir os impactos.
A agenda do Biden prevê mais impostos, mas é uma agenda mais racional. Além disso, o (Donald) Trump conseguiu isolar os Estados Unidos, o que foi benéfico para a China, que conseguiu ampliar o espaço que ela ocupa no mundo. O Biden provavalmente vai conseguir compor com outros países muito mais do que o Trump fez até aqui.
Como o senhor avalia os riscos para a economia global e a brasileira?
Este ano está sendo maluco. Mas como estamos encerrando o ano? Com o mundo em recuperação em forma de V (uma queda abrupta seguida de uma forte retomada). A doença está sendo menos nociva para a economia do que se imaginava. E a resposta econômica dos países foi muito forte, tanto do ponto de vista fiscal como monetário. Não é por outra razão que a recuperação está tão forte, até no caso do brasileiro. A construção civil é um exemplo.
Apesar de ainda não haver uma vacina que possa acabar com a pandemia, o mundo aprendeu a conviver com a doença. Há a segunda onda, mas, como aprendemos a tratar os pacientes com a doença, o impacto do ponto de vista sistêmico é menor. Não é como aconteceu em março, em que tudo foi paralisado, com impacto gigante sobre as economias. Esse é o primeiro ponto.
O mundo está mais endividado, mas está conseguindo ir para a frente. Continua a existir uma liquidez muito grande. E continua a haver uma disposição dos países de continuar a apoiar suas economias se for necessário.
E como fica o Brasil nesse ambiente?
O Brasil, do ponto de vista econômico, teve uma boa performance. Deve encolher 4,5%, o que é muito bom dada a situação, mas ele tem um déficit fiscal muito relevante, equivalente a 10% do PIB. E o país saiu de uma quadro em que já tinha um endividamento muito grande para um emergente. A resposta econômica à crise foi muito contundente, ajudando quem está em situação mais frágil. Mas o legado é muito pesado. Um país como o Brasil com endividamento equivalente a 100% do PIB não é algo trivial. O país perdeu completamente a capacidade de manobra daqui para a frente. Não temos espaço para acomodar mais gastos, pelo contrário.
A chance de haver uma segunda onda no Brasil é muito baixa, por várias razões, como o fato de que as pessoas no Brasil usam muito a máscara etc. Mas, se houver uma segunda onda, o país não tem capacidade fiscal para ajudar as pessoas. E a discussão sobre o teto de gastos é a pior possível. O país chegou a um grau de endividamento que não dá mais para crescer. E está discutindo se vai se endividar mais. A discussão deveria ser sobre como reduzir o gasto público, é algo inescapável. Não estou falando em gasto social na pandemia, precisa cortar outras despesas. E não dá para ficar acrescentando.
Não parece que o diagnóstico de necessidade de corte de gastos seja tão consensual em Brasília. Qual a conta se o governo e o Congresso decidirem ignorar esse enfrentamento da questão fiscal?
Não dá para saber o tamanho da conta. É grande demais. Mas tenho convicção de que o governo entendeu. Quando o ministro da Economia diz que, para furar o teto de gastos tem que ser outra pessoa no cargo, ele não está brincando. O presidente endossou, o presidente da Câmara também disse que não vai fazer. Ainda há muita cacofonia no governo. E é claro que existem pessoas dentro do governo que querem furar o teto. Mas se houve um momento para que isso acontecesse, já passou.
Os prêmios sobre os títulos públicos cresceram muito. A sinalização é a pior possível. Você está falando em aumentar o gasto público quando está com dificuldade de rolar a dívida. É um absurdo. Mas, ainda que existam no Congresso pessoas que falem em aumentar os gastos, que isso exista dentro do governo também, tenho convicção de que para os tomadores de decisão isso está claro.
Com qual cenário-base o senhor trabalha com a questão fiscal para 2021?
A incerteza ainda vai ficar presente porque a aprovação do Orçamento (da União) provavelmente vai ficar para janeiro ou março. É por isso que os mercados estão ainda tão nervosos a esse respeito. Dito isso, eu não acredito que o país vai estourar o teto. A barra subiu demais. Quando se fala de prêmio da dívida pública, o programa muda completamente de categoria.
O cenário-base assume que o país não vai estourar o teto e cresce em torno de 3,5% no ano que vem. Parece um número alto, mas não é. O PIB vai recuar 4,5% neste ano e só então crescer 3,5%. Há países com melhor recuperação.
E como reage a economia sem o gasto com o auxílio-emergencial?
Vai ser gradual. O governo segura os gastos e faz um phasing out (uma saída gradual). A economia já está perto dos 90% da normalidade. E vamos ter que conviver com o desemprego mais alto por um tempo, embora ele já esteja reduzindo.
As bolsas no mundo e no Brasil se recuperaram muito rapidamente, de março a julho, mas daí se estabilizaram ou passaram por correções. O que se pode esperar de agora em diante?
No mundo, os preços dos ativos já se normalizaram. De agora em diante, vai ser ao sabor do que acontecer, como o lockdown na França. São flutuações normais nos ativos. A disposição dos governos para que esse processo de retomada se dê da melhor maneira possível continua e não vejo uma reversão. Eu diria até que os ativos estão mais para caros do que para baratos.
Os ativos brasileiros é que estão muito baratos. A bolsa brasileira em dólar caiu 40%. A curva de juros no Brasil embute um prêmio de risco gigante. Poucas vezes na história vimos um prêmio tão elevado na curva. A taxa de câmbio brasileira está completamente fora do equilíbrio dela, o que tem a ver com o prêmio de risco. A explicação é 90% fiscal. É percepção sobre o risco fiscal, medo de que o futuro será pior do que a presente.
Como reverter esse quadro?
Quando o governo fica discutindo o teto, as pessoas passam a duvidar. Perde-se a credibilidade. E quando isso acontece, o governo toma as atitudes e as coisas não reagem da maneira como gostaria. Agora o governo vai ter que entregar (resultados) para que as coisas se acalmem. Não adianta mais falar 'faremos isso ou aquilo'. Se tiver alguma reforma no ano que vem, ajuda. Mas, de novo, a reforma inescapável é a que permite a redução de gastos. A tributária, por exemplo, deve gerar aumento de arrecadação. É outra questão.
O custo de não voltar a essa agenda já ficou grande demais. Se o país continuar com esse ambiente nervoso e estressado como estamos agora, a chance de crescer 3,5% no ano que vem é muito baixa. Essa piora do mercado tem um efeito muito contracionista sobre as condições financeiras, por mais que o juro esteja baixo. E atrapalha a confiança.
Falando em juro, o senhor avalia que a taxa básica precisará subir nos próximos meses ou em 2021?
A taxa de juros olha para o processo inflacionário. Nós temos um regime que funciona muito bem há mais de 20 anos, enfrentando vários desafios. Nós tivemos um choque muito grande de preços, principalmente no atacado, com efeito de câmbio, commodities etc. Mas, mesmo com essa alta, a inflação vai fechar em 3% e pouco neste ano, abaixo da meta. E isso porque há uma ociosidade muito grande na economia, principalmente no setor de serviços, que representa mais de dois terços do nosso PIB.
Essa "corcunda" na inflação deve durar mais um tempo, um ou dois meses, até que comece a ceder. A inflação do ano que vem deve ficar em torno de 3%, abaixo novamente do centro da meta. A inflação e as expectativas estão em situação tranquila.
Sabemos, é claro, que o juro hoje é bastante estimulativo. E que, na medida em que essa ociosidade for reduzida, o Banco Central terá que normalizar a política monetária. Normal. Deve acontecer a partir do segundo semestre do ano que vem.
O senhor mencionou que a bolsa está barata em dólar. Como estão posicionados na Mauá para tomar proveito dessa avaliação?
Vemos hoje os ativos brasileiros com preços bastante descontados. Ou seja, o Brasil está barato, carregando um prêmio de risco muito elevado, dada a situação. Se o país cumprir o teto dos gastos e acalmar essa agenda de expansão fiscal, todos os ativos brasileiros têm muito a recuperar.
No caso da bolsa, alguns setores vão muito bem. E as empresas também, estão passando muito melhor do que se imaginava por esse processo todo. Gostamos de ações, mas não estamos com nível de risco alto no nosso portfólio. Gostamos de ações no Brasil, gostamos da parte da curva de juros principalmente da parte mais curta, que embute uma alta dos juros que muito provavelmente não vai acontecer.
Dentro da bolsa, quais são os setores que oferecem boas oportunidades?
As empresas de varejo estão indo bem, hoje estão todas online, achamos que os bancos estão descontados, algumas empresas de saúde, algumas de infraestrutura, porque é um setor que terá que crescer.
E fundos imobiliários?
Primeiro vamos falar do mercado imobiliário. O setor que mais se beneficia do juro baixo é o imobiliário. É o setor que mais tende a se mover e a melhorar com essa perspectiva de o país ter juros baixos por mais tempo. O juro baixo ampliou muito a capacidade de as pessoas comprarem imóvel. Nós gostamos muito do setor residencial, está todo mundo querendo melhorar a sua casa. E gostamos muito de logística também, a necessidade cresceu muito com essa onda de compras online.
A turbulência nos mercados em setembro e outubro não deve ser encarada como o início de uma grande correção?
Não, pelo contrário. De novo, vamos olhar os fundamentos. Estamos convivendo com uma pandemia. As economias têm que se acomodar a ela, algumas atividades vão ter que parar. O mundo está se recuperando, o juro está baixíssimo e vai continuar assim até onde a vista alcança. E a disposição dos países com mais ajuda fiscal é enorme. Tudo isso não é compatível com grandes problemas nos mercados.