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Livro conta sobre a amizade que fundou a economia moderna

Os filósofos David Hume e Adam Smith, da época de ouro do pensamento escocês, no final do século 18, mudaram o modo como os ocidentais pensam o mundo

DAVID HUME E ADAM SMITH: unidos pela crença de que o livre comércio é o melhor caminho para a civilização e o progresso / Hulton Archive/ Getty Images
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EXAME Hoje

Publicado em 23 de setembro de 2017 às 07h10.

Última atualização em 24 de setembro de 2017 às 11h46.

 

Segundo Aristóteles, existem três tipos de amizade: as motivadas por considerações práticas, de utilidade; as que conferem prazer; e um terceiro tipo, mais nobre, mais elevado, que consiste na união de almas em busca da excelência. São noções que ainda fazem sentido 2.400 anos depois. Amizades motivadas por utilidade são o que, no mundo do trabalho, se chama hoje de networking. As por prazer são o happy hour. E há o terceiro tipo…

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Para Adam Smith, que antes de assentar as bases da economia moderna era conhecido como um mestre da filosofia moral, apenas este último tipo “merece o sagrado e venerado nome de amizade”, conforme escreveu em seu primeiro livro, Teoria dos Sentimentos Morais. Essa amizade tem a ver com admiração intelectual, influência mútua, estímulo para se tornar melhor, ajuda desinteressada.

Costumamos prestar mais atenção aos esforços individuais, mas no mundo dos negócios há vários exemplos de amizades com essas características: Warren Buffett e Charles Munger, Steve Jobs e Steve Wozniak, Bill Gates e Paul Allen, Bill Hewlett e David Packard, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira.

Na esfera do pensamento, isso é ainda mais patente: é da natureza das ideias se alimentar de outras ideias, e muitos dos grandes pensadores formaram duplas geniais: Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, Montaigne e Étienne de La Boétie, Hegel e Schelling, Marx e Engels…

As histórias dessas amizades costumam ficar em segundo plano, como notas de rodapé nas histórias individuais. Recentemente, isso vem mudando. No final do ano passado, o escritor Michael Lewis contou a história da amizade entre os psicólogos israelenses Daniel Kahneman e Amos Tversky, que ajudaram a fundar o campo da economia comportamental, no livro O Projeto Desfazer (resenhado por EXAME Hoje).

Agora é a vez de uma amizade ainda mais produtiva. Possivelmente a mais produtiva de todas. Os filósofos David Hume e Adam Smith, frutos da época de ouro do pensamento escocês, no final do século 18, mudaram o modo como os ocidentais pensam o mundo, formulando conceitos como a separação entre Igreja e Estado, a importância do comércio para o progresso humano, a redefinição de riqueza (não o acúmulo de ouro ou prata, mas o que se produz e usa).

Hume passou para a história como o formulador de uma doutrina de ceticismo e empirismo, que influenciou todo o pensamento científico moderno. É tido por muitos como o mais importante filósofo em língua inglesa. E Smith passou para a história como o autor de A Riqueza das Nações e uma espécie de pai do capitalismo, numa época em que ansiar riquezas era considerado um pecado. Suas ideias foram tão influentes que mudaram toda a política econômica britânica e, pouco tempo depois, do mundo.

Mas isso é apenas como nós escolhemos classificá-los. Em sua época, não havia muita distinção entre áreas do conhecimento, e ambos fizeram de um tudo. Esse tudo é o objeto do livro The Infidel and the Professor: David Hume, Adam Smith, and the Friendship That Shaped Modern Thought (“O infiel e o professor: David Hume, Adam Smith e a amizade que moldou o pensamento moderno” numa tradução livre), do professor de ciência política Dennis C. Rasmussen, da Universidade Tufts, nos Estados Unidos.

A revolução da moral

Não é novidade que Hume, 12 anos mais velho que Smith, exerceu influência sobre o pensamento deste. Como diz o acadêmico Samuel Fleischacker, especialista em Adam Smith, todo o pensamento de Smith gira em torno de Hume: “não há virtualmente nada na Teoria dos Sentimentos Morais ou em A Riqueza das Nações que não tenha algum tipo de fonte ou antecipação nos escritos de Hume – embora não haja praticamente nada em que Smith concorde inteiramente com Hume.”

Mas é opinião comum que os dois eram muito diferentes, principalmente em relação à religião. Hume, com sua visão cética, era considerado um herege (a ponto de o maior filósofo de sua época jamais ter sido escolhido para lecionar filosofia), um infiel, como diz o título do livro; enquanto Smith foi professor de filosofia moral, um cargo que nunca teria ocupado se pairasse qualquer dúvida sobre sua adesão à fé cristã.

De acordo com Rasmussen, essas diferenças são mais aparentes que reais. Com base nas cartas que sobreviveram de ambos, ele estabelece a hipótese de uma ligação muito mais estreita do que em geral se supõe. Smith seria no mínimo um simpatizante do ceticismo de Hume – só que bem mais prudente e reservado.

O que a princípio parece ser um livro para iniciados em um ou ambos os pensadores revela-se, ao contrário, uma leitura amena, espirituosa e altamente educativa para leigos. Não substitui o estudo das ideias de nenhum dos dois, mas provê o contexto para entendê-las – e entender o quão revolucionárias eram.

De quebra, Rasmussen ainda conta histórias saborosas sobre personagens que andaram em contato com Hume e Smith, como Rousseau (que foi hóspede de Hume durante um mês, quando foi acusado de heresia na França, e depois paranoicamente achou que seu benfeitor queria destruí-lo), Benjamin Franklin, Voltaire, Diderot e vários outros.

A tarefa de Rasmussen é dificultada pelo fato de que os dois jamais produziram nada em conjunto. Sua tese, porém, é convincente.

Das 170 cartas que restam dos dois, 15 são de Smith para Hume e 41, de Hume para Smith. Nas primeiras, eles se tratam por “caro senhor”, depois passam para “caro Smith” e “caro Hume”, depois para “caro amigo” e, finalmente, “meu mais caro amigo”, um epíteto que nenhum dos dois usou com nenhum outro correspondente.

Hume, que era mais velho e começou a escrever muito e muito cedo, já era famoso quando Smith ainda era um estudante. E já era considerado uma leitura perigosa. Smith provavelmente o admirava profundamente. Em Oxford, bedéis entraram em seu quarto de surpresa e o encontraram – horror! – folheando obras de Hume.

O próprio título do primeiro livro de Smith revela o quanto ele foi influenciado por Hume: abraçava a tese de que a moral vem dos sentimentos, não da razão. Para Hume, todo o conhecimento vem da experiência. E a experiência pode ser enganosa (como já dizia Descartes, que por isso recorreu à única certeza que podia ter, a de que pensava).

Essas noções são extremamente modernas – estão na base, por exemplo, dos questionamentos à tese prevalente na economia de que os agentes econômicos tomam decisões racionais. Daí nasce seu ceticismo. Porém, duvidar de tudo não é um modo prático de levar a vida. Por isso, no dia a dia a razão perde terreno para hábitos, costumes, paixões e a imaginação.

Até aí, nada de tão perigoso. O problema é que Hume conseguia explicar várias facetas da natureza humana sem recorrer a nenhuma teoria metafísica – sugerindo que é possível entender o mundo sem recorrer à tese de que existe um Deus que desenhou o universo. Daí ser chamado de infiel.

Smith nunca foi explícito quanto a seu ceticismo. Mas em ambas as suas obras-primas, não há menção a fenômenos divinos nem recorrência a explicações religiosas, algo incomum na época. Smith foi, em muitos casos, mais fiel à essência de Hume do que ele próprio. Para Hume, o sentimento de justiça nasce de sua utilidade. Ansiamos pelo que é correto porque calculamos que é preciso preservar a sociedade. Smith argumenta que não recorremos à razão. A justiça, para ele, vem não de um cálculo utilitário dos interesses da sociedade, mas do sentimento de identificação com a vítima.

Bom humor a toda prova

Se foi contestado por Smith, Hume não parece ter ficado chateado. Ao contrário. Ele fez campanha pelo livro do amigo, enviando-o a vários conhecidos no país para ajudar na divulgação. Chegou até a escrever uma carta anônima, publicada como uma resenha da Teoria dos Sentimentos Morais, que se destaca pelo bom humor.

Na sua resenha, Hume (anonimamente) afirma que Smith “coleta muitos argumentos irrefutáveis, pelos quais refuta os sentimentos do Sr. Hume, que fundou uma grande parte de seu sistema moral pela consideração da utilidade pública”. Hume acrescentou uma alfinetada bem-humorada no amigo: ele elogia Smith pela “estrita observação com que ele preserva os princípios da religião”. Numa frase carregada de ironia, afirma que “um verdadeiro filósofo vai deliberadamente limitar suas questões a matérias que não posem nenhuma ameaça à fé cristã”, e congratula o autor por parecer ser “tão sensível a uma verdade tão fundamental”.

Quando Hume foi à França, como secretário particular do embaixador, teve de repente a experiência de ser uma celebridade. A família real, aristocratas, funcionários, recepcionistas, literatos, todos queriam estar com ele, falar com ele, e especialmente ser vistos com ele. Era o contrário do que vivia na Escócia. Em parte porque seu ceticismo podia ser radical na Grã-Bretanha, mas era tímido em relação ao ateísmo militante dos filósofos franceses.

Como sempre, Hume encarou a bajulação com bom humor (seu apelido, aliás, era Le Bom David, dada a sua natureza cordial, expansiva, alegre). Em uma de suas cartas, Hume disse que sua modéstia “sofre muito e irá finalmente ser assassinada por esse povo”.

Em meio às saborosas anedotas, Rasmussen não deixa de analisar o pensamento de Smith e Hume – suas semelhanças e diferenças. Uma semelhança: numa época em que tinham muito pouco contato, ambos desenvolveram a mesma opinião em relação às colônias britânicas – eram praticamente os únicos intelectuais britânicos a favor da independência dos Estados Unidos.

Essa posição decorria de sua crença de que o livre comércio é o melhor caminho para a civilização e o progresso. E o comércio, ao contrário do que se pensava então (e que tanta gente ainda pensa agora), não é um jogo de soma zero: ambos os lados podem ganhar.

Uma diferença: para seu demérito, Hume externou uma vez a opinião de que os negros eram inferiores aos brancos, com o argumento de que nenhuma civilização de populações negras tinha atingido grande refinamento. Smith externou opinião oposta: “não há um negro da costa da África que não possua um grau de magnanimidade que a alma de seu sórdido mestre é frequentemente incapaz de conceber. A Sorte nunca exerceu mais cruelmente seu império sobre a humanidade do que quando sujeitou essas nações de heróis ao refugo das celas da Europa.”

A revolução do capitalismo

Embora os dois tenham sido grandes defensores do comércio, Hume idolatrava a classe mercantil, classificando-a como heroica, enquanto Smith apoiava o capitalismo mas indicava a necessidade de controlar a tendência dos comerciantes de agir contra o interesse público. Smith reconhecia que a riqueza provém da divisão de trabalho – mas quem passa a vida se especializando em uma única tarefa não tem oportunidade de usar a mente e se torna tão estúpido e ignorante quanto é possível alguém se tornar.

A solução, para Smith, era a intervenção do Estado, para prover educação a todos, especialmente os filhos dos pobres.

Para Hume, a riqueza era um bem. Ele ajudou a mudar a mentalidade das pessoas, com sua pregação de que não há mérito na pobreza, nem problema no luxo. Smith também propunha seguir o caminho do progresso e da riqueza, mas denunciava a busca por riqueza, porque ela faz pouco para “assegurar a verdadeira felicidade”. Segundo Smith, “nós não apenas confundimos os meios (riqueza e poder) com os fins (verdadeira felicidade) como inadvertidamente sacrificamos os fins em prol dos meios”.

Uma evidência de que Smith compartilhava do ceticismo de Hume foi um comentário que fez quando Hume, à beira da morte, fez um jantar para se despedir dos amigos (em 4 de julho de 1776, o dia em que os Estados Unidos declaravam sua independência). Smith disse que o tratamento que Hume recebia mostrava o quanto o mundo era ingrato. Hume, sempre bem-humorado, respondeu: “Não, não, aqui estou eu, tendo escrito toda sorte de coisas calculadas para levantar hostilidades no campo moral, político, religioso, e ainda assim não tenho nenhum inimigo; com exceção de todos os Whigs, todos os Tories [ os dois partidos da época, que deram origem a conservadores e liberais ] e todos os cristãos”.

No final da vida, Hume pediu que Smith publicasse sua última obra, em que reunia todas as suas teses contra a religião. Smith se negou, temendo as reações. Rasmussen levanta evidências de que Hume não ficou chateado (a obra acabou sendo publicada por seu sobrinho, três anos após a morte de Hume, e um jornal lamentou que Hume não tivesse um amigo capaz de impedir que publicasse algo tão nojento).

A prova final de amizade: Hume escreveu dez páginas sobre sua própria vida, falando brevemente sobre sua obra, para servir como introdução nas reedições de todos os seus livros. Encarregou Smith de ficar com ela, e Smith pediu-lhe para acrescentar uma carta sobre os últimos dias de Hume.

Hume deu-lhe total liberdade para editar sua biografia. Em sua carta, Smith contou que o amigo fora bem-humorado até o final, e tinha mantido suas convicções até o final – um insulto para a sociedade, que esperava alguma espécie de arrependimento em face da morte. Por ter publicado essa carta, Smith herdou o achincalhe que Hume sofreu por toda a vida.

Serviço

The Infidel and the Professor: David Hume, Adam Smith, and the Friendship That Shaped Modern Thought (“O Infiel e o Professor: David Hume, Adam Smith, e a amizade que moldou o pensamento moderno”, em tradução livre)

Autor: Dennis C. Rasmussen

Selo: Princeton University Press

Páginas: 336

Preço: 21,77 dólares

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