Livro mostra união improvável entre EUA e Arábia Saudita
Fundamental para entender o xadrez político do Oriente Médio, livro enumera as contradições que envolvem os 70 anos das relações bilaterais entre países
Da Redação
Publicado em 13 de janeiro de 2018 às 07h36.
Última atualização em 13 de janeiro de 2018 às 11h02.
Kings and Presidents: Saudi Arabia and the United States since FDR (“Reis e Presidentes: Arábia Saudita e os Estados Unidos desde Franklin Delano Roosevelt”, numa tradução livre)
Autor: Bruce Riedel
Editora: Brookings Institution Press
272 páginas
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Numa mostra do peso que a Arábia Saudita representa para a política externa dos Estados Unidos, a capital saudita Riad foi incluída na primeira viagem internacional do presidente Donald Trump, em maio do ano passado. Trump posou para fotos ao lado do rei saudita Salman bin Abdul Aziz al Saud, elogiou o esforço do reino em combater o terrorismo e reiterou a aliança dos dois países, iniciada em 1943. A eleição de Trump havia sido muito comemorada pela família real, depois do desencanto saudita com os últimos dois presidentes americanos, Barack Obama e George W. Bush. No início de dezembro, porém, Trump surpreendeu o mundo ao anunciar, do nada, que os Estados Unidos iriam transferir sua embaixada em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém – uma afronta à comunidade internacional e, em especial, aos sauditas.
O fato de a relação bilateral entre Estados Unidos e Arábia Saudita ter sobrevivido nos últimos 70 anos, apesar dos inúmeros pontapés desferidos um contra o outro, é a prova definitiva de que nada é impossível para a diplomacia. Com muito mais divergências do que interesses em comum, os dois países atravessaram juntos boa parte dos momentos críticos da geopolítica mundial das últimas décadas, embora tenham flertado inúmeras vezes com afastamento definitivo, quando um dos países se sentiu traído pelo outro.
A criação do Estado de Israel e o prolongamento do impasse palestino até hoje representam o grande ressentimento saudita com os americanos. Os Estados Unidos ainda não engoliram o fato de que o fundamentalismo islâmico pregado na Arábia Saudita estar por trás do maior ataque interno sofrido pela superpotência, os atentados de 11 de Setembro – planejados por um saudita (Osama bin Laden) e executado por 19 terroristas, sendo 15 deles nascidos no reino.
São justamente essas contradições, esmiuçadas e colocadas em perspectiva, o grande atrativo do livro Kings and Presidents: Saudi Arabia and the United States since FDR (“Reis e Presidentes: Arábia Saudita e os Estados Unidos desde Franklin Delano Roosevelt”, numa tradução livre), livro escrito pelo americano Bruce Riedel, pesquisador do Brookings Institute, centro de pesquisas com sede em Washington, e fundamental para entender o xadrez político do Oriente Médio.
O autor, de 64 anos, é bem mais do que um estudioso acadêmico. Ele teve participação em boa parte dos episódios dos últimos 40 anos narrados no livro. Filho de um diplomata das Nações Unidas, Riedel fez carreira na CIA (o serviço secreto americano) por 29 anos como especialista em Oriente Médio, com importantes passagens pelo Conselho de Segurança Nacional, onde assessorou quatro presidentes americanos.
O livro é recheado de bastidores de negociações que marcaram as relações bilaterais e ajuda a entender por que as divergências acumuladas durante décadas sempre foram deixadas de lado em nome dos interesses em comum dos dois países: para os Estados Unidos, o petróleo saudita; para o reino, a segurança militar assegurada pelos americanos na região mais instável do planeta.
De resto, sobram contradições nessa aliança. De um lado, uma superpotência militar que preza a democracia como sistema de governo e se orgulha de contar com uma população multiétnica que desfruta de ampla liberdade religiosa. Do outro, a última monarquia absolutista do mundo, que se apoia numa teocracia sunita de perfil fundamentalista e particularmente discriminatória com os não-muçulmanos e as mulheres.
Nova ordem
Entre as várias revelações do livro ganha destaque e contexto a visão política de dois estadistas – o presidente americano Franklin Delano Roosevelt e o rei saudita Ibn Saud –, que em 1943 deixaram de lado as diferenças culturais, econômicas e sociais para dar início a um processo sigiloso de aproximação visando o futuro. A iniciativa partiu do então presidente americano. Com os Estados Unidos ainda envolvidos na Segunda Guerra, Roosevelt já mirava o interesse estratégico que o petróleo saudita teria no redesenho do mundo quando o conflito chegasse ao fim. Roosevelt planejava aproveitar a fragilidade do Império Britânico para ocupar seu lugar. Até então, o Reino Unido era a potência dominante no Oriente Médio, mas o país estava alquebrado pela guerra e incapaz de continuar apoiando os sauditas.
Os Estados Unidos tinham outras opções entre as monarquias do Oriente Médio para fincar o pé na região, como os Hashemitas, da Jordânia e do Iraque, ou o clã Pahlevi do Irã. Tanto o Iraque quanto o Irã eram países igualmente ricos em petróleo. A opção dos Estados Unidos por apoiar a Casa de Saud levou em conta o fato de a Arábia Saudita ser na época o único país independente do mundo árabe rico em petróleo e por seu potencial de influência no mundo islâmico, por abrigar Meca e Medina, as cidades sagradas do Islã.
Do lado saudita, uma possível aproximação com os Estados Unidos representaria uma jogada de risco ainda maior para o rei Ibn Saud. Embora fosse uma monarquia, a Arábia Saudita na prática é governada desde o século 18 por uma aliança entre a família real (cujos integrantes até hoje ocupam todos os ministérios e cargos importantes no país) e o clã Al Shayk, espécie de guardião religioso e moral do reino. Os Al Shayk são descendentes de Muhammad Ibn Abd al Wahhab, pensador muçulmano sunita que desenvolveu uma versão fundamentalista do Islã que prega a volta ao “estado puro” da religião criada por Maomé no século 7. O wahabismo é seguido dentro do país, exportado para o mundo islâmico e serve de inspiração religiosa para grupos radicais como Al Qaeda e Estado Islâmico.
Jogo diplomático
A aproximação dos americanos com os sauditas foi sacramentada apenas em janeiro de 1945, quando Roosevelt se reuniu secretamente com Ibn Saud no cruzador americano USS Quincy, no Canal do Suez. O livro se debruça sobre o histórico do relacionamento entre os diferentes presidentes americanos e reis sauditas no período. Neste aspecto, Riedel explora a experiência acumulada em viagens e reuniões com dirigentes sauditas para mostrar a complexidade do jogo diplomático envolvendo os dois países.
Um dos principais interlocutores perfilados no livro é o príncipe Bandar bin Sultan bin Abdul Aziz, embaixador nos Estados Unidos de 1983 até 2005 e amigo pessoal do autor. Espécie de bombeiro saudita para apagar incêndios diplomáticos no Ocidente, Bandar dispunha de um Airbus 3000 adaptado, com três suítes, para se deslocar pelo mundo e negociar com líderes americanos e europeus.
Todos os grandes acontecimentos do agitado cenário político do Oriente Médio no período são contemplados por Riedel. E chama a atenção a forma como Estados Unidos e Arábia Saudita alternam alianças e lados opostos em cada crise, sem que a relação bilateral jamais chegasse a um ponto de ruptura sem volta. Estrategicamente, os sauditas sempre se preocuparam com uma resolução definitiva da questão palestina e em isolar o Irã, o grande rival xiita regional. Já os americanos mudaram suas prioridades ao sabor dos acontecimentos e de seus interesses, mantendo fidelidade eterna apenas com Israel.
Riedel acerta a mão ao analisar o período mais crítico nas relações bilaterais, marcado pelo surgimento da Al Qaeda, em meados dos anos 90, e a série de atentados que desembocaria no 11 de Setembro. Revela que a principal causa do rompimento de Bin Laden com a família real saudita e com o clã religioso wahabista, ainda em 1994, não foi a presença militar americana no reino durante a campanha para expulsar as tropas do ditador iraquiano Saddam Hussein, que haviam invadido o Kuwait em 1990, e sim as negociações de paz entre Israel e os palestinos, em 1993.
Riedel reafirma também que a CIA, desde essa época, vinha advertindo o governo americano sobre o perigo que a Al Qaeda representava – preocupação ignorada pelo governo do presidente George W. Bush, empossado no início de 2001. Outra revelação curiosa é o desprezo da família real por Bin Laden: segundo o autor, os sauditas jamais acreditaram que o líder da Al Qaeda tivesse condições de planejar e executar atentados como os do 11 de Setembro.
A desilusão saudita com Bush, que invadiu o Afeganistão e o Iraque e depois tentou disseminar a democracia pelo Oriente Médio, e com Obama (que apoiou a Primavera Árabe e fechou acordo nuclear com o Irã) reforçam a incerteza em relação ao futuro das relações bilaterais. Riedel aponta três grandes ameaças. A primeira é a questão palestina. Os reis sauditas sempre colocaram uma solução para o impasse – criação do Estado palestino com capital em Jerusalém Oriental – no topo da agenda. O anúncio recente de Trump de mudar a embaixada americana para Jerusalém, feito após a conclusão do livro, mostra que o tema deve causar mais atritos.
A segunda ameaça é a influência do fundamentalismo wahabista na política interna e externa saudita. Em pleno século 21, o reino mantém intactos costumes da Idade Média. As mulheres, por exemplo, continuam segregadas. Só podem andar na rua acompanhadas e vestidas da cabeça aos pés. Para piorar, cerca de 500.000 cidadãos sauditas têm mais de uma mulher, reforçando outro costume anacrônico, o poliganismo. O apoio não oficial do clero wahabista a grupos terroristas como Estado Islâmico é outra fonte de atrito entre os países.
O terceiro item na lista de ameaças citadas por Riedel refere-se à resistência da família real em adotar reformas políticas e sociais no reino. A Arábia Saudita não só rechaçou o apoio americano à Primavera Árabe como fez de tudo para sabotar o movimento nos países da região – as razões que levaram a população de Tunísia, Egito, Iêmen, Bahrain e Síria a se levantar contra os seus governos em 2011 são muito comuns à situação dos sauditas. Exceto na Tunísia, a Primavera Árabe foi esmagada nos demais países com decisiva ajuda do reino. O regime saudita enviou tropas para o Bahrein para segurar a monarquia sunita, apesar do desejo em contrário da maioria da população do país, que é xiita. No Egito, ajudou a promover o golpe militar que derrubou governo eleito e ainda armou os militares para se manterem no poder. No Iêmen, os sauditas se enfiaram num atoleiro que perdura até hoje.
Liderando uma coalizão de países árabes, os sauditas ajudaram a derrubar o presidente Ali Abdallah Saleh e colocaram o vice, Abd Rabbuh Mansur al-Had, no poder. Mas enfrentaram resistência dos houthis, xiitas do norte apoiados pelo ex-presidente Saleh e armados pelo Irã. Com isso, o país mergulhou numa guerra civil, com pelo menos 10 000 mortos e uma grave crise humanitária. No plano interno, o reino gastou 100 bilhões de dólares para amenizar demandas reprimidas da população, mas ampliando os poderes do Ministério do Interior, que tem 1 milhão de empregados e vigia atentamente a população.
A era Trump
Ainda é cedo para prever o que deverá ocorrer daqui para a frente, mas as relações bilaterais deverão entrar numa nova era. Do lado americano, a gestão Trump deve se preocupar mais em vender armas e assegurar o fluxo de petróleo do que forçar o reino a fazer reformas políticas. Do lado saudita, o cenário é incerto. A nomeação, em junho, do príncipe Muhammad bin Salman como herdeiro do trono surpreendeu os analistas. O rei saudita Salman pulou uma geração inteira de príncipes herdeiros na linha de sucessão ao indicar para o trono Muhammad bin Salman, de apenas 32 anos.
Diferentemente de indicados anteriores, o futuro rei não tem formação no exterior e sequer fala inglês com fluência. Mesmo assim, ganhou superpoderes para fazer uma ampla reforma no reino. Nomeado vice-primeiro-ministro e ministro da Defesa, não perdeu tempo: criou um comitê anticorrupção que ordenou a detenção de 11 príncipes, quatro ministros e dezenas de ex-ministros, e anunciou várias medidas para dar um verniz modernizante ao reino, incluindo autorização para mulheres dirigirem carros e motos.
Entre as medidas está o plano “Visão 2030”, que prevê estímulo a energias renováveis, a possibilidade de empresas estrangeiras adquirirem parte do controle acionário da Aramco (a estatal de petróleo) e outras iniciativas para estimular a economia. Tardiamente, o reino parece ter se dado conta que a fartura do petróleo não é eterna. Até hoje a população saudita – o país tem 32 milhões de habitantes, um terço deles estrangeiros – não paga impostos, mas a maioria esmagadora não desfruta de bom padrão de vida. O índice de desemprego entre jovens sauditas de 20 a 24 anos é de 40%, sendo que metade da população tem menos de 25 anos.
Apesar desses dados, o reino gastou 87,2 bilhões de dólares em defesa em 2015 – terceiro maior orçamento do mundo, atrás de Estados Unidos e China. A gastança deve aumentar nos próximos anos para conter a ameaça iraniana, cuja influência vem crescendo e já se estende para Síria, Líbano, Iêmen e Iraque. Nem o próprio Muhammad bin Salman se preocupa em dar exemplo de contenção: o príncipe herdeiro saudita foi o comprador do quadro Salvator Mundi, de Leonardo da Vinci, vendido recentemente em leilão pelo valor recorde de 450 milhões de dólares. Com os imprevisíveis Trump de um lado e Muhammad bin Salman de outro, as relações bilaterais entre Estados Unidos e Arábia Saudita deverão mais uma vez colocar à prova os limites da diplomacia.