Economia

Cidade sitiada

A violência urbana ameaça não apenas a vida e o patrimônio dos paulistanos. Põe em risco também o futuro de São Paulo como metrópole global

EXAME.com (EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 10h45.

Reunidos num salão do hotel Hilton, no centro da capital paulista, dezenas de executivos do BankBoston conversam em pequenos grupos. Suco de laranja e petiscos típicos de reuniões corporativas acompanham o papo. O clima descontraído lembra uma happy hour. Muitos estão acompanhados do cônjuge e dos filhos - algumas crianças mal passaram dos 10 anos. Todos aguardam o início da palestra da Boston School, a universidade corporativa do banco. Meia hora depois do horário marcado, a mestre-de-cerimônias diz ao microfone: "O Lucca, que ia dar a palestra, está preso". Todos param de conversar e voltam o olhar para o palco. "Calma, ele não foi seqüestrado. Está parado no trânsito." A piada provoca alguns risos e serve para lembrar aos convidados o motivo daquele evento: a violência urbana.

Pouco depois chega o capitão Diógenes Viegas Dalle Lucca, comandante do Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate) da polícia paulista, célebre por ter negociado a libertação do apresentador Silvio Santos em agosto do ano passado. Funcionário do banco até 1998, hoje ele atua como consultor do BankBoston no gerenciamento de crises de segurança - como assaltos e seqüestros. "O que interessa é que o funcionário chegue bem em casa, não importa se pagamos o resgate ou não", diz. Lucca explica a importância de negociar com os seqüestradores e de evitar pagar imediatamente o resgate. "Se fizéssemos isso, o mundo criminoso poderia começar a achar que o BankBoston é uma mina de ouro." A seguir, Lucca dá várias dicas de como dificultar a ação de criminosos. Edna Audi, da Auster, consultoria especializada em qualidade de vida no ambiente de trabalho, sucede a Lucca no palco. Com naturalidade, ela fala sobre como agir na presença de bandidos: "Devemos evitar a ansiedade antecipatória, que é pensar sem parar no que de ruim pode acontecer". Em alguns momentos, a palestra lembra um curso de negociação com clientes: "Saber dialogar acalma a situação. Respire profundamente, lentamente, para se tranqüilizar".

No dia anterior, 25 de fevereiro, Paulo de Souza Moraes, de 57 anos, diretor de tecnologia da informação da Embratel, fora assassinado em São Paulo. Por volta das 7 da manhã, a caminho do aeroporto de Congonhas, ele e a filha Camilla, de 30 anos, foram rendidos por três homens armados. Era possivelmente mais uma tentativa de seqüestro relâmpago. Dentro do carro, um dos criminosos ameaçou molestar sexualmente a filha do executivo. Moraes reagiu e foi baleado no pescoço. Após perseguição e tiroteio com a Polícia Militar, um membro da quadrilha foi morto, assim como um policial. Camilla foi alvejada no joelho.

A crescente onda de violência em São Paulo provoca a cada dia imensuráveis perdas humanas e incontáveis dramas familiares. A crise na segurança pública, entretanto, não ameaça apenas a vida e o patrimônio de quem mora, trabalha ou está de passagem pela metrópole. Ela começa a ferir São Paulo no seu traço mais característico: a pujança econômica. O assassinato de Moraes atinge duramente seus amigos e parentes, mas também acerta em cheio sua empresa. As corporações já vinham perdendo grandes somas em roubos de cargas, equipamentos e dinheiro. Recentemente, multiplicaram-se os seqüestros de executivos. Como evidencia a palestra promovida pelo BankBoston, saber lidar cotidianamente com as ameaças virou pré-requisito para fazer negócios em São Paulo.

A conseqüência mais nefasta da falta de segurança, para a economia, seria o comprometimento do papel de São Paulo como centro financeiro e decisório global. Sinais de que isso pode vir a acontecer já aparecem lá fora. Em 13 de fevereiro, a cidade foi classificada de "capital brasileira do seqüestro" pelo jornal The New York Times. A reportagem - que inclui uma comparação com Bogotá - descreve uma situação em que "pequenos grupos de jovens vagam por um emaranhado louco de ruas em busca de alvos". Seria esse o lugar ideal para uma empresa investir seu dinheiro e enviar seus executivos?

"Se a violência for vista como fora de controle, contaminando a governabilidade e a estabilidade econômica, isso poderia, no médio prazo, inibir opções de investimento", diz o economista Gilberto Dupas, coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP. É, por ora, um alerta. Dupas não acredita que a situação tenha fugido do controle -nem que essa seja nossa imagem no mundo. Para os investidores internacionais, desde que haja um mínimo de estabilidade institucional, a falta de segurança não é um obstáculo intransponível. "A lógica de obter bons resultados e ganhar mercados torna a violência atual um incômodo, mas não um impedimento", afirma Dupas.

Antes de se instalar no Brasil, muitas empresas consultam a Câmara Americana de Comércio. Nessas consultas, a questão da segurança tem sido levantada cada vez mais freqüentemente. "Não há ainda uma alternativa tão boa quanto São Paulo para montar um escritório na América Latina", diz Álvaro de Souza, presidente da Câmara. A instituição faz, anualmente, uma pesquisa em parceria com a consultoria Simonsen Associados sobre aspectos críticos de investimentos no Brasil. Em 2000, a segurança não era uma preocupação citada pelos investidores. Mas, na última rodada da pesquisa, o tema despontou em nono lugar, atrás de fatores como os impostos, a complexidade da legislação e a corrupção. "Nossas conversas mostram que a violência vai aparecer com mais destaque no levantamento deste ano", diz o consultor Harry Simonsen Jr., presidente da Simonsen Associados.

Se é arriscado afirmar que empresas estrangeiras já estão cancelando projetos em São Paulo por causa da violência, é inegável que a segurança ganha um peso muito importante na escolha do local de uma nova fábrica ou escritório. "Presidentes de empresas começam a se questionar se o custo da violência compensa a vantagem de estar no centro dos negócios do Brasil", diz o empresário José Augusto Marques, presidente da Abdib, associação de fabricantes de bens de capital.

No cotejo com outras capitais da América Latina, São Paulo ainda leva certa vantagem - já que nenhuma delas é propriamente um modelo de segurança. "Na Cidade do México a situação é igual à daqui, ou pior. Em Buenos Aires, de uns tempos para cá, tem crescido o número de seqüestros relâmpagos", diz Eduardo Buarque de Almeida, professor da Fundação Getulio Vargas e consultor de investidores estrangeiros. A concorrência para sediar escritórios latino-americanos está mais ao norte. "Se o problema de segurança não for enfrentado agora, corremos o risco de voltar a ter corporações optando por Miami, em vez de São Paulo, como centro de suas operações na América Latina", diz.

Quando uma empresa se estabelece na região metropolitana, é praticamente impossível escapar de despesas como blindagem de carros, treinamento de seguranças e motoristas, escolta para transportes, sistemas de alarme ou monitoramento nas casas de executivos. O reforço na segurança não é mais privilégio do presidente e dos principais diretores. Em empresas como a Johnson & Johnson, por exemplo, gerentes já começam a receber carros blindados - o que encarece ainda mais a proteção. "Os custos de prevenção são agora mais importantes do que o próprio receio de que um atentado ocorra", diz Simonsen. "Associados a questões como logística e incentivos fiscais, eles podem acabar sendo decisivos para que uma empresa não venha para a capital."

De acordo com um levantamento com 105 empresas associadas à Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha (90% delas instaladas na Grande São Paulo), em agosto de 2000 os gastos com segurança representavam em média 2% do total de custos operacionais - mas para algumas já passavam de 10%. "Com certeza essa situação não melhorou", diz o coordenador do grupo de trabalho da Câmara sobre prevenção da criminalidade. Diretor de uma multinacional, ele pediu anonimato, sintomaticamente, por razões de segurança. O executivo, de origem alemã, diz que muitas empresas já chegaram a um limite - na dele, os gastos com essa área dobraram nos últimos cinco anos. "Não há muito mais a investir em segurança privada. Agora, só podemos esperar atitudes do Estado."

Além de aumento nos custos, a violência traz outro problema grave: dificulta a atração e a retenção de talentos. Alguns executivos estrangeiros começam a exigir mais dinheiro para vir trabalhar em São Paulo. Há profissionais que desistiram de promoções porque teriam de vir trabalhar aqui. "Ainda são exceções, já que a maioria coloca a carreira na frente de tudo, mas há cada vez mais casos de executivos que não aceitam vir para c", diz Simon Franco, principal executivo da consultoria TMP Worldwide no Brasil. Profissionais com filhos pequenos são os que mais costumam recusar propostas de trabalho em São Paulo, por melhores que sejam. "É cada vez mais difícil convencer um especialista alemão a vir passar dois ou três anos aqui para fazer projetos especiais na nossa empresa", afirma o executivo da Câmara Brasil-Alemanha. "As notícias publicadas lá fora são muito ruins. Meus amigos sempre me perguntam como eu posso continuar vivendo aqui." Ele cita casos de famílias de executivos que regressaram imediatamente para a Alemanha depois de sofrer um assalto.

O fluxo de pessoas causado pela criminalidade é acompanhado de perto por Marcelo Fonsi, gerente de mudanças internacionais da Granero. "Atualmente, importamos mais executivos do que exportamos", diz. Mas, das cerca de 40 pessoas que mensalmente contratam a empresa para deixar São Paulo, duas ou três são brasileiros querendo fugir da violência - a maioria vai viver em Miami. Fonsi cuidou de apenas três casos de estrangeiros que resolveram sair de São Paulo por causa da criminalidade. "Os expatriados amam o Brasil", afirma. "Quem ainda não sentiu a violência na pele fica."

Um setor particularmente sensível ao medo dos estrangeiros é o de hotelaria e eventos. "Há quatro anos, tínhamos 75% de ocupação média nos hotéis da cidade. Hoje, só 45%", diz o executivo Dagoberto Alves da Silva, gerente-geral da rede de hotéis Caesar Park e coordenador de hotelaria do São Paulo Convention & Visitors Bureau. "A principal causa disso é a violência. Estamos perdendo milhões de dólares por causa dela." Em julho do ano passado, 40 executivos de uma empresa sediada em Dallas planejavam se reunir com brasileiros no Caesar Park da rua Augusta. No dia da chegada, um deles saiu para caminhar e, a meia quadra do hotel, foi assaltado. No mesmo dia, outro executivo, retido a bordo de um táxi no trânsito da Paulista, teve seu relógio roubado à mão armada. Imediatamente, todo o grupo fez as malas e partiu - o encontro foi substituído por uma videoconferência. "Depois disso, houve uma retração no número de eventos que recebemos", diz Alves. Como alguns dos outros entrevistados por EXAME SP nesta reportagem, o executivo do Caesar Park já foi assaltado. "Já pensei em sair de São Paulo várias vezes. Mas amo esta cidade e acho que podemos resolver o problema", afirma.

Operam na capital organizações não-governamentais empenhadas em combater a violência e suas causas, muitas delas compostas de empresários e executivos (Alves, por exemplo, participa da Paulista Viva). Suas ações são limitadas a bairros ou regiões - nenhuma entidade coordena um trabalho na cidade inteira. A associação Viva São Paulo, que nasceu há dois anos com esse objetivo, permanece hoje apenas com seu projeto piloto. É o Ação Comunitária da Chácara Santo Antônio, coordenado pela Câmara Americana de Comércio. Atualmente, 65 empresas da região rateiam o custo mensal de 60 000 reais do programa. Além de uma equipe de 18 vigilantes, de uma central de informações e cinco viaturas, o Viva São Paulo faz um trabalho conjunto com o batalhão da Polícia Militar e com a delegacia da Polícia Civil responsáveis pela área. "Tentamos doar cinco viaturas à polícia, mas acabamos esbarrando na burocracia e ainda não conseguimos doar nenhum carro", diz Oswaldo Orsolin, diretor da Câmara Americana.

Os crimes mais comuns na Chácara, como roubos e furtos de carros, caíram cerca de 20%. "As rondas dos vigilantes e as informações fornecidas à comunidade colaboram para que crimes como homicídios e seqüestros não cheguem aqui", diz Celso Guidugli, coordenador da Ação Comunitária. Vale lembrar que os 187 quarteirões do bairro nunca deixaram a lista das áreas mais seguras da cidade.

Quando o Rio de Janeiro viveu seu ápice da violência urbana, no início dos anos 90, foi criado o Viva Rio. A primeira reunião ocorreu em dezembro de 1993, pouco tempo depois da chacina de meninos de rua da Candelária e do massacre na favela de Vigário Geral. Com uma força-tarefa de 2 000 pessoas (900 voluntários e 1 100 assalariados), a entidade realizou 800 projetos regulares em favelas ao longo de 2001. Se em 1994 a cidade registrava 78 homicídios por 100 000 habitantes, hoje esse número é cerca de 40 por ano. Não é exagero atribuir boa parte dessa queda ao movimento, que congrega desde instituições religiosas até batalhões policiais. Rubem César Fernandes, coordenador do Viva Rio, evita comparar a atual situação paulistana com a que os cariocas viveram há quase dez anos. "Pode surgir um movimento semelhante em São Paulo, com o mesmo sentido, mas de forma diferente", diz. "Como, eu não sei." Fernandes está correto em não arriscar palpites. São Paulo é que tem de encontrar uma resposta.

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