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A zona franca da pirataria

Como São Paulo se tornou um território livre para o comércio de produtos contrabandeados, falsificados e roubados

EXAME.com (EXAME.com)
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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 10h41.

Muita coisa mudou desde que a prefeita Luiza Erundina liberou a capital paulista para os camelôs, em 1989. Mudou para pior, é claro. De lá para cá, o comércio de rua ganhou sofisticação com a introdução de produtos contrabandeados. Multiplicaram-se as barracas. A máquina de fiscalização municipal foi corrompida. E a pirataria prosperou de norte a sul como uma aberrante concorrência aos comerciantes que pagam impostos. Só os crimes de contrabando e falsificação movimentaram na Grande São Paulo 30 bilhões de reais no ano passado, segundo a Receita Federal. Estão de fora da cifra os mais de 200 milhões de reais em mercadorias roubadas no período. A pirataria atingiu tal vulto que tem até seus ícones. Do mesmo modo que quem quiser comprar lustres e luminárias em São Paulo vai à rua da Consolação ou os interessados em ferramentas buscam a rua Florêncio de Abreu, quem está atrás de produtos falsificados, roubados ou contrabandeados tem endereço certo: a rua Comendador Afonso Kherlakian -- mais precisamente, na Galeria Pagé, na zona central da cidade.

Autoridades dos mais diversos níveis admitem a venda de produtos ilegais naquele centro de compras, inaugurado em 1963. Mas é surpreendente que, entre uma batida policial e outra, a galeria continue aberta ao público. O mesmo acontece com os cerca de 50 000 camelôs que armam suas bancas nas ruas da cidade. É preciso procurar bastante para encontrar um ambulante que não venda mercadorias ilegais. No entanto, eles continuam trabalhando livremente.

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O comércio dos piratas é uma expressão escancarada da criminalidade presente em vários pontos da região metropolitana. Por trás dele há uma rede de falsificadores e contrabandistas controlada, segundo a polícia, por mafiosos chineses e coreanos. Muita gente colabora com as quadrilhas: funcionários de empresas fornecem informações que ajudam na pirataria. Fiscais da prefeitura toleram camelôs que vendem produtos ilegais. Autoridades portuárias desviam mercadorias apreendidas e fazem vista grossa ao contrabando. Segundo a Receita Federal, a Grande São Paulo responde por 60% do mercado pirata, que movimenta anualmente cerca de 50 bilhões de reais no Brasil.

"O problema maior não é saber quem são e onde estão os piratas, mas motivar o Estado a agir", diz o coronel Carlos Alberto de Camargo, diretor da Motion Picture Association no Brasil e da União Brasileira do Vídeo (UBV). Camargo foi comandante da Polícia Militar paulista até 1999. Trabalha hoje para a indústria cinematográfica, onde o índice de produtos falsificados atinge 35% do total vendido. Um exemplo flagrante da previsibilidade da ação dos piratas é a "feirinha da madrugada", que acontece regularmente na rua 25 de Março, na mesma região da Galeria Pagé, no Centro de São Paulo. Entre 2 e 5 da manhã, nas ruas Mauá e Cantareira, próximo ao Mercado Municipal, o movimento de caminhões e peruas se confunde com o início da montagem de uma feira livre comum -- alguns piratas levam caixotes e barracas na caçamba do veículo para despistar eventuais fiscais. Ônibus lotados de muambeiros vindos do Paraguai também aguardam nas redondezas. Aos poucos, eles vão descarregando caixas e mais caixas de mercadorias falsas: CDs de cantores de sucesso, tênis importados, programas de computador, camisas de futebol e até preservativos. Os produtos seguem então para a 25 de Março, onde às quartas-feiras e aos sábados funciona o mercado atacadista dos piratas. Lá, camelôs e lojistas podem se abastecer e adquirir as novidades no ramo da falsificação, sempre antes de o sol raiar.

Segundo o Ministério Público, os criminosos orientais começaram a atuar em São Paulo no início da década de 80 e assumiram o controle do comércio de mercadorias contrabandeadas do Paraguai. Nos anos 90, com a abertura do mercado brasileiro para produtos importados, a ação passou a ser mais intensa: os mafiosos começaram a atuar diretamente na importação das mercadorias no Porto de Santos e na sua distribuição para o comércio informal na capital. Contribuiu para isso a tolerância maior com os ambulantes na gestão de Erundina à época do PT. "Em 1993, surgiram os primeiros casos envolvendo a máfia chinesa", diz o promotor Roberto Porto, do Grupo de Atuação Especial e Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público.

Desde outubro de 2000, Porto investiga a ação da máfia chinesa. Ela extorque dinheiro dos comerciantes chineses do Centro em troca de "proteção". Obriga-os a comprar produtos para revender aos camelôs. "Eles se sentem donos das marcas. Para vender Nike, por exemplo, você tem de pagar uma quantia a um certo mafioso e virar protegido dele", diz Porto. Como os comerciantes geralmente não procuram a polícia por causa do medo de ser presos por vender produtos piratas, é fácil ameaçá-los. Outros temem ser mortos, como aconteceu com o empresário Chen Yong Wen. O imigrante chinês foi assassinado em setembro de 2001, depois de pagar 5 000 dólares de proteção -- os criminosos exigiam 40 000 dólares. Segundo o Gaeco, a Polícia Federal não pode extraditar os chineses porque o Brasil não tem tratado com países que adotam a pena de morte, como é o caso da China.

Os chineses disputam o mercado pirata com os coreanos (muitas vezes as duas máfias entram em confronto). A polícia e o Ministério Público investigam ainda a participação de libaneses. "A liderança sobre o que vendem os camelôs de São Paulo é da máfia dos chineses, seguida pela dos coreanos", afirma o delegado Paulo Fleury, titular da 1a Delegacia de Crimes contra a Propriedade Imaterial, da Polícia Civil, criada em novembro de 2001. "Juntas, elas respondem por 70% dos negócios da pirataria na região metropolitana." Um estudo realizado pela consultoria Seics, especializada em investigação empresarial e apreensão de produtos piratas, revela que o comércio paraguaio representa hoje apenas um terço do que essas máfias movimentam. "É mais fácil montar empresas de distribuição no Brasil do que correr o risco de ter a mercadoria apreendida na fronteira", diz Renato Camargo, diretor operacional da Seics, que tem clientes como Nike, Reebok, Bosch e Hang Loose. Segundo Camargo, a maioria dos líderes mafiosos chineses vive no Paraguai.

A equipe do delegado Fleury realiza em média três apreensões diárias. Conta com apenas 15 pessoas para atuar no estado inteiro. Além da falta de pessoal, outro problema apontado por especialistas no combate à pirataria é a legislação, considerada muito branda. Tome-se o exemplo da indústria fonográfica: no Brasil, até o início deste ano, apenas nove pessoas haviam sido condenadas por pirataria de CDs, das quais nenhuma havia sido presa. Em 13 de fevereiro, um falsificador foi condenado a seis anos e oito meses e se tornou o primeiro a iniciar o cumprimento de pena. Hoje, outros cinco também estão na cadeia, mas é uma parcela insignificante do total de pessoas envolvidas. Fleury conta com a cooperação da indústria, que faz denúncias e ajuda a identificar o material falsificado. Às vezes, o próprio produto se denuncia. É o caso do "CD genérico" descoberto pela equipe do delegado. Ele trazia na capa a seguinte inscrição: "Não é original, mas faz o mesmo efeito".

Nem tudo o que os camelôs vendem é fornecido pelos mafiosos. Alguns produtos vêm de fábricas de fundo de quintal, na periferia de São Paulo e em municípios da Grande São Paulo, como Cajamar, Ferraz de Vasconcelos e Poá. Há também ambulantes independentes, que eventualmente compram mercadorias direto dos falsários e ladrões de carga, como ocorre no caso de remédios e cigarros. Em contrapartida, há camelôs que são contratados por atravessadores para vender um só tipo de mercadoria -- o que ocorre muito no mercado de CDs.

O raciocínio que leva muita gente a comprar produtos piratas é simples: o produto é praticamente idêntico ao original, com preço muito menor. Para combater essa idéia -- equivocada em boa parte dos casos --, várias entidades que representam a indústria se uniram em março, pela primeira vez, para lançar uma campanha conjunta de marketing com o título "Produto pirata -- a vítima é sempre voc", veiculada na mídia ao custo de 4 milhões de reais. Participam do grupo associações como a dos fabricantes de brinquedos (Abrinq), dos produtores de discos (ABPD), dos produtores de software (Abes), de licenciamento (Abral), de vestuário (Abravest) e de vídeo (UBV). Um dos objetivos é mostrar que comprar mercadorias piratas causa prejuízos sociais e econômicos. "Quem compra produtos piratas não se dá conta de que está contribuindo para o crime organizado", diz o coronel Camargo.

A clientela principal dos camelôs tem baixo poder aquisitivo e recorre a eles em busca de quase tudo, de remédios a pilhas. Mas a presença da classe média entre os fregueses dos ambulantes do centro da cidade deu origem a uma anedota: se alguém mais endinheirado vai comprar produtos falsificados na região da 25 de Março, ele vai, na verdade, ao "Twenty Five Shopping". Lá, é possível comprar uma calça Zoomp por 25 reais, uma camisa pólo Lacoste por 15 reais ou um tênis Mizuno por 30 reais. Todos falsos ou roubados.

Uma banca de camelô bem localizada pode faturar de 5 000 a 15 000 reais por mês, com lucro médio de 40% -- há produtos, como os softwares piratas, que podem gerar até 400% de ganho. Esses valores já descontam as propinas e as perdas de mercadoria por apreensão, os únicos "impostos" a que os ambulantes ilegais estão sujeitos. Do outro lado do negócio, entretanto, os números têm sinal negativo. Só de roupas falsificadas são produzidas cerca de 500 000 peças por mês no país todo, segundo estimativas da Abravest. Para as confecções isso representa cerca de 915 milhões de reais em perdas ao longo do ano. Com a venda de CDs piratas, a União deixa de arrecadar mais de 200 milhões de dólares por ano em impostos, segundo a Associação Protetora dos Direitos Intelectuais Fonográficos (Apdif).

A falsificação também atinge o mercado de licenciamento, cujo foco é justamente o que os piratas têm como alvo: as marcas. "Em geral, a proporção de produtos falsos para cada licenciamento não passa de 20%", diz Sebastião Bonfá, presidente da Abral. Para algumas marcas de sucesso, no entanto, o percentual pode ser bem maior. Um exemplo são os brinquedos da linha Teletubbies, inspirados numa série infantil. "Quando a Estrela lançou seus produtos, as ruas já estavam tomadas por bonecos alusivos ao programa", diz Bonfá. Resultado: a indústria legal e as lojas vendem menos e os licenciadores perdem royalties.

É verdade que muitos ambulantes não trabalham com mercadorias falsificadas. Preferem as originais, mas roubadas -- só assim conseguem vender a preços competitivos. O Sindicato das Empresas de Transportes de Carga do Estado de São Paulo (Setcesp) contabilizou 2 653 ocorrências de roubo de carga no estado no ano passado -- cerca de 80% na Grande São Paulo. O valor total das mercadorias roubadas foi de 215 milhões de reais. "Acredito que isso seja a metade do total verdadeiro", diz o coronel Paulo Roberto de Souza, assessor de segurança do Setcesp. Parte dos produtos roubados vai para lojas do mercado formal que misturam mercadorias legais com irregulares -- muitos comerciantes fazem encomendas para as quadrilhas. Outra parte vai para os camelôs. "É muito provável que os mafiosos orientais tenham alguma participação no roubo de cargas", afirma Souza.

Além de perder dinheiro com falsificações e roubos de produtos, as empresas são obrigadas a gastar com o combate a essas atividades. Nos últimos dois anos foram apreendidos 5 milhões de tubos falsificados de Super Bonder -- 3 milhões em apenas uma ocasião, no Porto de Santos. Segundo Marcelo Maron, diretor da Henkel, fabricante da cola, foi investido 1 milhão de dólares para coibir a falsificação de seus produtos. Depois de contratar as consultorias Kroll e Pinheiro Neto, a empresa conseguiu fechar duas fábricas que falsificavam esses produtos na China. "Cada centavo que investimos no combate a produtos falsificados significa um centavo que deixamos de investir na empresa", diz Maron. "Estamos tentando proteger nossa credibilidade ante o consumidor."

Segundo Renato Camargo, a atuação das máfias cresceu em São Paulo porque a prefeitura não controla a venda de produtos falsificados entre os camelôs. "Se ela concedesse o registro apenas a quem vende produtos legítimos, não teríamos espaço para os produtos falsificados proliferarem na cidade", afirma o diretor da Seics.

Desde o dia 27 de maio, após um longo período de recadastramento (que contou 12 500 ambulantes só na região da Sé), a prefeitura de São Paulo está distribuindo novas licenças aos camelôs da cidade -- os Termos de Permissão de Uso, ou TPUs. Têm preferência os deficientes físicos, os idosos e os que conseguem comprovar que estão no ramo há muito tempo. Os TPUs concedidos incluem o tipo de mercadoria que se pode vender: artesanato, flores, alguns brinquedo, bijuterias etc. (nada de CDs ou softwares, por exemplo). "Com isso, estamos retirando os clandestinos das ruas", afirma Jilmar Tatto, secretário municipal da Implantação das Subprefeituras. Segundo ele, as recentes denúncias que surgiram sobre a atuação da máfia dos fiscais -- que cobram propina para não desmontar as barracas -- têm a ver com esse processo de legalização. "As acusações são motivadas pela máfia da pirataria, a quem interessa a ilegalidade", diz Tatto. A prefeitura já afastou 33 fiscais e pretende fazer o mesmo com mais 160. Cerca de 800 ainda estão sendo investigados.

"A dificuldade da prefeitura não é retirar os camelôs, mas fazer com que eles não voltem", afirma. Para o secretário, o ideal seria que os próprios lojistas contratassem seguranças para manter livres as calçadas próximas de seus estabelecimentos. "Os comerciantes teriam de investir nisso uma quantia pequena, se comparada ao prejuízo que têm com os ambulantes ilegais", afirma. À prefeitura caberia fazer apreensões e enviar a Guarda Metropolitana em casos mais problemáticos.

Pela própria natureza de sua atividade, os camelôs são a parte mais visível do comércio pirata. Mas, a exemplo da Galeria Pagé, há outros conjuntos de lojas onde várias mercadorias são vendidas ilegalmente. "Nosso grande problema são os Promocenters e Standcenters, na região da avenida Paulista", afirma Manoel Antonio dos Santos, coordenador do departamento jurídico da Abes. Como esses locais são fechados e privados, a polícia só pode agir com um mandado e acompanhada de peritos. "Isso demora dias para ficar pronto. A informação acaba vazando, os comerciantes ilegais se previnem e não conseguimos apreender quase nada", diz Santos.

No Promocenter da rua Augusta os preços são até 50% mais baixos que os praticados na maioria das lojas tradicionais. Um CD player normalmente vendido por mais de 500 reais pode ser encontrado no Promocenter por 290 reais. "Aqui, o lojista paga pouco, não tem aqueles custos altos de shopping", afirma Silvio Campos, dono do estabelecimento. "Todas as nossas mercadorias são legítimas." Para o promotor Ricardo Blat, do Gaeco, grande parte do que se vende no Promocenter é fornecido pela máfia chinesa. "Em 2001, fizemos uma apreensão de 150 000 CDs, mas não tínhamos autoridade para fechar as lojas", diz Blat. "Havia softwares que custam 8 000 reais e eram vendidos a 10 reais."

O problema citado por Blat é comum na luta contra a pirataria: mesmo quando há o flagrante e a apreensão de produtos falsos, a legislação não permite que uma loja, um depósito ou uma fábrica ilegal sejam fechados. Para muitos especialistas, a solução seria realizar ações conjuntas com autoridades municipais, estaduais e federais. No dia 30 de maio, a prefeitura instituiu uma força-tarefa mista com esse objetivo. Em tese, ela vai permitir a apuração de irregularidades paralelas à pirataria. "Se autoridades estaduais e federais confirmarem a existência de produtos piratas numa loja, a prefeitura terá competência para tentar fechá-la com base em alguma irregularidade no imóvel", diz Tatto. "É como fez a Justiça americana quando usou a sonegação do imposto de renda como recurso para condenar Al Capone."

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