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A arte de prever

Um novo acordo com o Fundo Monetário Internacional não serviria para nada se fosse assinado apenas pelo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Primeiro, porque já há um acordo em vigor, que vai até o fim deste ano, justamente coincidindo com o final do mandato de FHC. Segundo, porque, conforme os termos desse entendimento, o […]

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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 10h44.

Um novo acordo com o Fundo Monetário Internacional não serviria para nada se fosse assinado apenas pelo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Primeiro, porque já há um acordo em vigor, que vai até o fim deste ano, justamente coincidindo com o final do mandato de FHC. Segundo, porque, conforme os termos desse entendimento, o Fundo já está emprestando ao Brasil recursos mais do que suficientes para este governo cumprir seus compromissos externos até 31 de dezembro próximo. Daqui até lá, os vencimentos da dívida externa pública são inferiores a 5 bilhões de dólares, uma mixaria diante de reservas na casa dos 40 bilhões. E o governo ainda tem para sacar junto ao Fundo mais um troco de 950 milhões, em duas parcelas, em agosto e novembro.

Mas, se não falta dinheiro para saldar os compromissos externos dos próximos meses, pode não haver o suficiente para o Banco Central vender dólares no mercado e, assim, derrubar as cotações. Dessa forma, pode-se cogitar da hipótese de um novo acordo com o FMI cuja finalidade fosse dar ao BC o tanto de dólares necessário para domar o nervosismo do mercado. Não faria sentido. O FMI não empresta dinheiro para esse objetivo, nem o governo americano, que manda no Fundo, concordaria com tal pacote. E, finalmente, o governo brasileiro também não entraria nessa. Os investidores, nacionais e internacionais, não estão preocupados com os pagamentos da dívida externa dos próximos seis meses. Estão em dúvida sobre como será o governo do sucessor de FHC, de modo que tentar conter o nervosismo atual apenas vendendo dólares pode resultar numa sangria inútil. O pessoal embolsaria os dólares do FMI e continuaria ressabiado com a futura administração.

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Eis aí, portanto: um novo acordo com o FMI só serviria para alguma coisa se avançasse para além de 2003. Aí, sim, teria diversas utilidades. A primeira seria fornecer ao próximo governo um colchão de liquidez que garantisse, com folga, o pagamento dos compromissos externos, digamos, do primeiro ano da nova administração. Um novo governo sempre demora para deslanchar, especialmente quando é formado por gente vinda da oposição. E se, nessa fase de adaptação, os credores externos estiverem nos calcanhares, a coisa fica mais complicada.

Por outro lado, o FMI só empresta dinheiro em troca de compromissos a ser cumpridos pelo governo signatário. São as tais metas referentes a contas públicas, dívida pública, inflação, política cambial -- enfim, as bases de um regime de estabilidade monetária e fiscal, naturalmente conforme a doutrina aceita pelo Fundo. São os pontos previstos no atual acordo, dos quais o mais importante é o compromisso de manter o superávit primário (receitas menos despesas antes do pagamento de juros) necessário para equilibrar a dívida pública.

Se esses pontos estiverem garantidos também para o próximo governo, a maior parte do atual nervosismo nos mercados financeiros tende a desaparecer. De modo que a questão fica assim definida: um novo acordo com o FMI só faria sentido se fosse assinado pelo próximo presidente da República que, obviamente, ainda não se sabe quem será. Sabe-se, entretanto, quais são os candidatos competitivos. Candidatos não assinam acordos com o FMI, mas podem manifestar concordância suficientemente explícita, ainda que informal. Há um precedente recente. Em 1997, a Coréia do Sul estava numa situação parecida: em meio a uma crise financeira e em pleno processo eleitoral, com um antigo líder oposicionista, Kim Dae Jung, de origem de esquerda, na frente das pesquisas.

Na verdade, a crise coreana era mais aguda e mais grave que o atual momento brasileiro. Parecia-se mais com o Brasil do fim de 1998, quando os investidores fugiam do país carregando seus dólares e consumindo as reservas do BC. Como o Brasil de 1998, a Coréia de 1997 precisava de um caminhão de dólares do FMI para recompor suas reservas e garantir o pagamento dos compromissos externos. A diferença entre essas duas situações estava no quadro eleitoral. Aqui, em 1998, o presidente FHC logo assumiu a dianteira nas pesquisas, prevendo-se sua reeleição no primeiro turno, como aconteceu.

Na Coréia, o favorito era de oposição, e o FMI não pretendia assinar um acordo com um governo em fim de linha. Mais que um governo -- era um velho regime que sucumbia. Portanto, combinava-se a instabilidade política com a econômica. O cenário brasileiro de 2002 é diferente das duas situações anteriores -- e para melhor. A democracia está consolidada, a eleição é limpa e quem ganhar leva.

A situação econômica real é melhor do que a de 1998. Houve diversos avanços na gestão das finanças públicas, inclusive 15 trimestres seguidos de superávits primários, que começaram a ser produzidos justamente por imposição do acordo com o FMI do fim de 1998, assinado pelo governo FHC, no final do primeiro mandato e início do segundo. No setor externo, em 1998, o Brasil precisou captar 80 bilhões de dólares no mercado internacional para fechar suas contas. Neste ano, a necessidade é de 50 bilhões.

Tudo considerado, no Brasil de hoje não há risco imediato de calote na dívida pública interna ou externa. Mas os investidores e os agentes econômicos em geral, locais e internacionais, temem que um próximo governo, com o objetivo de fazer o que os dois governos FHC não fizeram, que foi crescer aceleradamente, acabe por desfazer tudo que se avançou. Na Coréia de 1997, os candidatos presidenciais competitivos assinaram informalmente um acordo com o FMI que destinou nada menos que 57 bilhões para recompor as reservas nacionais. Em troca, assumiram determinados compromissos de política econômica.

No Brasil de hoje, os compromissos seriam até mais importantes que o aporte de dinheiro. De maneira que a pergunta é: os principais candidatos oposicionistas, Luiz Inácio Lula da Silva e Ciro Gomes, estariam em condições de manifestar algum tipo de concordância com um acordo com o FMI parecido com o atual? Não há esse problema com o candidato governista José Serra. Embora assuma uma postura de oposição em pontos específicos, Serra já manifestou apoio ao entendimento com o FMI, quando este foi ampliado recentemente pelo atual governo.

Para Lula, entretanto, a questão é difícil. Depois de tantos anos criticando uma política econômica "imposta pelo FMI", poderia negociar e aceitar os termos de um antigo demônio da globalização financeira? Também não é um caso simples para Ciro Gomes, que tem criticado tanto o governo FHC quanto o candidato do PT, este acusado de se render ao mercado. O presidente do BC, Armínio Fraga, sabe dessas dificuldades do quadro político local. Por outro lado, em sua última visita aos Estados Unidos e à Europa, Fraga verificou que há interesse do FMI, das demais instituições internacionais e do governo americano em facilitar a transição no Brasil. Tudo que o centro financeiro mundial não quer é mais uma crise entre os emergentes, que seria fatal após um eventual colapso do Brasil. Já há problemas suficientes no mundo todo. Localmente, entretanto, não se pode entregar aos candidatos oposicionistas um papel do FMI e dizer "é assinar ou largar". Colocados assim contra a parede, os oposicionistas tendem a radicalizar, o que complicaria a situação.

Talvez, por isso, Fraga tenha se referido a um acordo de transição, algo mais limitado no conteúdo e no tempo de duração do que um acordo clássico. Lula, por exemplo, já se comprometeu com um superávit primário necessário para equilibrar a dívida, enquanto seu eventual governo não conseguir outro tipo de estabilidade das finanças públicas. O candidato do PT também autorizou formalmente o deputado Aloísio Mercadante, um de seus gurus econômicos, a conversar com Armínio Fraga -- todo mundo sabe que o presidente do BC vai falar do acordo com o FMI.

Esses movimentos confirmam algo que ocorre sempre em política, em qualquer país. Quanto mais aumenta a chance de vitória de um candidato presidencial, mais moderado ele se torna, especialmente se vem da oposição. Por isso, Lula e o PT, pensando na governabilidade, reagiram com mais boa vontade ao convite de Armínio Fraga.

Algo parecido começa a ocorrer com Ciro Gomes, de maneira que esse acordo de transição com o FMI, apoiado pelos candidatos, não é uma miragem. E não seria estranho se, num dado momento, Lula se mostrasse o mais moderado de todos e confiável para o FMI.

O que não faz a iminência do poder.

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