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Trump tenta "cancelar" o estado de Nova York

O Departamento de Justiça do advogado-geral William P. Barr designou três cidades americanas, incluindo Nova York, como “jurisdições anarquistas”

NY: Trump e Barr estão tentando castigar as cidades que permitem à população expressar opiniões que eles não gostam (Bloomberg/Divulgação)
MD

Matheus Doliveira

Publicado em 1 de outubro de 2020 às 18h11.

Última atualização em 1 de outubro de 2020 às 18h12.

Há alguns meses uma determinada parcela do comentariado - principalmente na centro-direita - ficou extremamente agitada com a alegada ameaça da “cultura do cancelamento”, a humilhação e exclusão de figuras públicas por causa de ações ou opiniões consideradas inaceitáveis. Cancelamento, dizia a história, representava o cúmulo do politicamente correto, e colocava em risco o discurso livre e franco.

A coisa toda era, é óbvio, um exagero tremendo. Sim, a correção política às vezes vai longe demais, especialmente quando vem acompanhada da ignorância histórica; foi definitivamente incômodo quando manifestantes derrubaram um busto de bronze do 18º presidente americano, Ulysses S. Grant, um homem imperfeito mas formidável que salvou a União. (Uma revelação em nome da transparência: Eu sou meio que tiete de Grant.) Porém, a cultura de cancelamento de tendência esquerdista não representa ameaça real alguma ao livre discurso, uma vez que na América do século 21 nós sequer temos qualquer coisa que se assemelhe a uma esquerda radical, e qualquer radicalismo de extrema-esquerda que existe tem muitíssimo pouco poder político.

A direita radical americana, em comparação, tem muito poder, e parece cada vez mais disposta a usar esse poder para punir qualquer um que expresse pontos de vista dos quais ela não goste, ou até mesmo, em especial, quando esses pontos de vista envolvem apenas dizer a verdade.

Logo, temos o presidente Trump cobrando “educação patriota” e denunciando o Projeto 1619 do New York Times, porque é politicamente incorreto admitir o papel que a escravidão teve na história do nosso país. Você tem o Departamento de Justiça anunciando uma investigação sobre racismo em Princeton que obviamente visa punir a escola por admitir o ponto óbvio de que, no passado, houve racismo ali.

Admitir o racismo não é o único problema que anima a cultura de cancelamento de direita. Como eu já mencionei anteriormente, está havendo uma perseguição constante de cientistas que reconhecem a realidade do aquecimento global. Os estranhos acontecimentos no Centro de Controle e Prevenção de Doenças - primeiro admitindo o que todo mundo já sabia há meses, que gotículas aéreas podem transmitir o coronavírus, para depois recuar da declaração - são uma forte indicação de que nomeados políticos estão tentando cancelar a epidemiologia que entrar em conflito com a oposição trumpista às máscaras faciais.

Mas perseguir acadêmicos e cientistas que relatem fatos inconvenientes é bobagem. Agora a direita política está indo para cima de cidades inteiras.

Em 21 de setembro, o Departamento de Justiça do advogado-geral William P. Barr designou três cidades americanas - Portland, Seattle e, sim, Nova York - “jurisdições anarquistas”, locais que “vêm permitindo que a violência e destruição de propriedade continuem”.

A primeira reação dos nova-iorquinos e, presumo eu, dos moradores das outras duas cidades, foi tratar isso como piada. É só dar um passeio por Nova York, onde milhões de pessoas estão vivendo vidas normais em relativa segurança, que dificilmente “anarquia” será a primeira palavra que vem à cabeça. Não, não há turbas de saqueadoras rondando as ruas, e apesar de uma ligeira alta nos assassinatos (compensada, de certo modo, pela queda no número de estupros), o crime continua bastante baixo para os padrões históricos.

Mas a designação anarquista não é um gesto fútil; ela vem com a ameaça de corte de fundos federais. Ou seja, qual a ideia deste absurdo?

A resposta, basicamente, é que Trump e Barr estão tentando castigar as cidades que permitem à população expressar opiniões que eles não gostam, cidades que deixam manifestantes antirracismo em sua maioria pacíficos  seguir em frente em lugar de inventarem desculpas para bater nas pessoas.

Isto, em outras palavras, é a cultura de cancelamento da direita em grande escala. E o fato de que gente com poder real está pensando nessas linhas devia horrorizar todos nós.

*Paul Krugmané economista, vencedor do prêmio Nobel 2008 e professor da Universidade de Princeton.

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Há alguns meses uma determinada parcela do comentariado - principalmente na centro-direita - ficou extremamente agitada com a alegada ameaça da “cultura do cancelamento”, a humilhação e exclusão de figuras públicas por causa de ações ou opiniões consideradas inaceitáveis. Cancelamento, dizia a história, representava o cúmulo do politicamente correto, e colocava em risco o discurso livre e franco.

A coisa toda era, é óbvio, um exagero tremendo. Sim, a correção política às vezes vai longe demais, especialmente quando vem acompanhada da ignorância histórica; foi definitivamente incômodo quando manifestantes derrubaram um busto de bronze do 18º presidente americano, Ulysses S. Grant, um homem imperfeito mas formidável que salvou a União. (Uma revelação em nome da transparência: Eu sou meio que tiete de Grant.) Porém, a cultura de cancelamento de tendência esquerdista não representa ameaça real alguma ao livre discurso, uma vez que na América do século 21 nós sequer temos qualquer coisa que se assemelhe a uma esquerda radical, e qualquer radicalismo de extrema-esquerda que existe tem muitíssimo pouco poder político.

A direita radical americana, em comparação, tem muito poder, e parece cada vez mais disposta a usar esse poder para punir qualquer um que expresse pontos de vista dos quais ela não goste, ou até mesmo, em especial, quando esses pontos de vista envolvem apenas dizer a verdade.

Logo, temos o presidente Trump cobrando “educação patriota” e denunciando o Projeto 1619 do New York Times, porque é politicamente incorreto admitir o papel que a escravidão teve na história do nosso país. Você tem o Departamento de Justiça anunciando uma investigação sobre racismo em Princeton que obviamente visa punir a escola por admitir o ponto óbvio de que, no passado, houve racismo ali.

Admitir o racismo não é o único problema que anima a cultura de cancelamento de direita. Como eu já mencionei anteriormente, está havendo uma perseguição constante de cientistas que reconhecem a realidade do aquecimento global. Os estranhos acontecimentos no Centro de Controle e Prevenção de Doenças - primeiro admitindo o que todo mundo já sabia há meses, que gotículas aéreas podem transmitir o coronavírus, para depois recuar da declaração - são uma forte indicação de que nomeados políticos estão tentando cancelar a epidemiologia que entrar em conflito com a oposição trumpista às máscaras faciais.

Mas perseguir acadêmicos e cientistas que relatem fatos inconvenientes é bobagem. Agora a direita política está indo para cima de cidades inteiras.

Em 21 de setembro, o Departamento de Justiça do advogado-geral William P. Barr designou três cidades americanas - Portland, Seattle e, sim, Nova York - “jurisdições anarquistas”, locais que “vêm permitindo que a violência e destruição de propriedade continuem”.

A primeira reação dos nova-iorquinos e, presumo eu, dos moradores das outras duas cidades, foi tratar isso como piada. É só dar um passeio por Nova York, onde milhões de pessoas estão vivendo vidas normais em relativa segurança, que dificilmente “anarquia” será a primeira palavra que vem à cabeça. Não, não há turbas de saqueadoras rondando as ruas, e apesar de uma ligeira alta nos assassinatos (compensada, de certo modo, pela queda no número de estupros), o crime continua bastante baixo para os padrões históricos.

Mas a designação anarquista não é um gesto fútil; ela vem com a ameaça de corte de fundos federais. Ou seja, qual a ideia deste absurdo?

A resposta, basicamente, é que Trump e Barr estão tentando castigar as cidades que permitem à população expressar opiniões que eles não gostam, cidades que deixam manifestantes antirracismo em sua maioria pacíficos  seguir em frente em lugar de inventarem desculpas para bater nas pessoas.

Isto, em outras palavras, é a cultura de cancelamento da direita em grande escala. E o fato de que gente com poder real está pensando nessas linhas devia horrorizar todos nós.

*Paul Krugmané economista, vencedor do prêmio Nobel 2008 e professor da Universidade de Princeton.

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