O tipo grande de pandemia
Não é de se admirar que a pandemia do COVID-19 tenha oferecido bases para reivindicações concorrentes de superioridade política
Publicado em 7 de janeiro de 2021 às, 14h39.
Os sistemas políticos sobrevivem através da competição. Ocupantes de cargos políticos e candidatos estão constantemente afirmando que podem administrar os problemas melhor do que seus oponentes. As modernas guerras de ideias, projetos políticos e sistemas de organização são apenas versões atualizadas das formas mais antigas de combate.
A crise financeira de 2008 é um recente exemplo da política competitiva em ação. A princípio, os não americanos que se concentraram nas origens da crise – hipotecas subprime nos Estados Unidos – concluíram que o capitalismo americano havia falhado e que o planejamento chinês ou o corporativismo europeu eram sistemas superiores. Mas então a Europa ficou atolada em uma crise de dívida, permitindo que os americanos se gabassem de que seu modelo era ainda melhor, devido ao seu sistema de mutualização e suporte da dívida, criado em 1790 pelo então secretário do Tesouro, Alexander Hamilton.
Não é de se admirar que a pandemia do COVID-19 também tenha oferecido bases para reivindicações concorrentes de superioridade política. Em meio a cenários que mudam rapidamente, muitos líderes políticos e empresariais mais uma vez correram para reivindicar vitória para seus próprios sistemas. Deveríamos ser céticos em relação a essas afirmações. Com exceção de países insulares menos populosos e geograficamente distantes, como Nova Zelândia (25 mortes), Taiwan (7 mortes) ou Groenlândia (sem mortes), nenhum modelo claramente superior surgiu ainda.
Com certeza, a China até agora parece ser a vencedora da pandemia: sua economia continuou a crescer com força em 2020 e foi uma das únicas grandes economias a ter realmente crescido. Depois de impor severos bloqueios para suprimir a propagação do vírus, a China foi capaz de reiniciar a atividade econômica e atuar como fornecedor global líder de produtos – incluindo equipamentos de proteção individual (EPI’s) e produtos farmacêuticos – necessários para lidar com a pandemia.
Em contraste, a União Europeia e os Estados Unidos exibiram profunda disfuncionalidade diante da pandemia. A administração do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, por muito tempo ainda servirá como um conto de advertência de incompetência, falsidade e corrupção. Trump negou a gravidade da pandemia com pleno conhecimento de seu provável impacto, principalmente porque viu os bloqueios como uma ameaça à economia e, portanto, à sua reeleição. Quando os EUA agiram para mobilizar fornecedores de equipamentos essenciais, o processo foi permeado por clientelismo, com muitos contratos indo para pessoas ligadas à família Trump.
Desde então, o presidente eleito, Joe Biden, tem enfrentado resistência do governo que está deixando o cargo enquanto tenta supervisionar uma transição tranquila e as disputas partidárias sobre gastos adicionais de estímulo continuaram, resultando no lapso temporário dos benefícios de desemprego no final de dezembro. Embora agora existam várias vacinas aprovadas sendo lançadas, distribuí-las assim que estiverem disponíveis será complicado e polêmico.
Os EUA em 2020 tornaram-se ainda mais polarizados, não apenas pelo vírus, mas também pelos desiguais efeitos clínicos do COVID-19, os bloqueios e outras medidas implementadas para lidar coma situação. A questão do racismo sistêmico e da violência policial voltou ao primeiro plano após a morte de George Floyd em maio, criando uma perfeita tempestade de injustiças sociais, políticas e econômicas. As pessoas de cor não conseguiam respirar por causa do efeito do vírus em seus pulmões como também por causa dos joelhos dos policiais sobre seus pescoços.
Em seu recente livro de memórias, o ex-presidente Barack Obama escreve quase sem ânimo sobre os EUA como um suposto exemplo de uma sociedade multicultural e multiétnica. O resultado dessa experiência, observa ele, permanece profundamente incerto. O legado fragmentado do Trumpismo aponta para a necessidade de uma nova fundação da República Americana.
Os EUA já foram construídos duas vezes: na Revolução Americana, depois que treze colônias declararam sua independência da Grã-Bretanha em 1776; e novamente nas décadas de 1860 e 1870, após o período pós-Guerra Civil conhecido como Período da Reconstrução (processo que levaria pelo menos um século para ser concluído). A cada vez, apenas uma parcial acomodação foi feita para a alegação fundamental da Declaração de Independência de que todos os homens são criados iguais.
Para o presidente Abraham Lincoln, isso significava "governo do povo, pelo povo, para o povo", e ele prometeu um "novo nascimento da liberdade". Dois anos e meio antes, em sua primeira posse, ele havia explicado que: “Em suas mãos, meus compatriotas insatisfeitos, e não nas minhas, está o importante assunto da guerra civil”. Não é difícil imaginar Biden articulando essas mesmas frases em apoio a uma terceira fundação quando sua presidência começar em 20 de janeiro.
A UE, entretanto, está atormentada por diferentes preocupações e enfrenta riscos para a sua integridade que são ainda maiores do que nos EUA. Disputas sobre o acesso a EPIs e vacinas continuarão a polarizar o bloco ao longo de divisas nacionais, e o leste e o sul da Europa continuarão a testemunhar as dramáticas consequências da fuga de gênios (incluindo de profissionais médicos) que se intensificou na última década.
Há sinais promissores nos acordos sobre o próximo orçamento de sete anos, um novo fundo de recuperação (denominado UE – Próxima Geração) e um mecanismo de Estado de Direito que enfrentou oposição da Hungria e da Polônia. Mas ainda não se sabe se esses fatos serão suficientes para garantir a solidariedade europeia. A experiência dos sombrios anos após a crise do euro deixou claro que não há apetite por um regime centralizado que administre fundos de acordo com condições complexas e politizadas. Como os Estados Unidos, a Europa está à beira de seu próprio momento de refundação, mas continuará atormentada pela ansiedade e pela incerteza.
Mesmo assim, um elemento final poderá concentrar as mentes, especialmente na Europa. É tentador pensar que a Nova Zelândia, Taiwan ou a Groenlândia podem simplesmente ser imitados, e parece que o Reino Unido está embarcando precisamente em tal experimento. Mas os líderes britânicos estão perseguindo uma fantasia, construída sobre a ideia de que, ao reivindicar a soberania nacional, o Reino Unido pode controlar o próprio destino.
No devido tempo, haverá ampla evidência para comparar o desempenho do Reino Unido com o de outros países. É quase certo que aqueles que escolheram buscar a cooperação em face da multiplicação dos problemas de saúde, econômicos e sociais se sairão melhor. Os infortúnios do Reino Unido convencerão outros ao redor do mundo a adotar mais solidariedade, embora, ao mesmo tempo não falte torcida contrária.
Harold James é Professor de História e Assuntos Internacionais, na Universidade de Princeton e Membro Sênior do Centro de Governança Internacional para a Inovação.
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