O policiamento da verdade na era Donald Trump
Nos dias de hoje, até a ciência se tornou suspeita: colocamos nossa fé nas evidências como o real caminho para a verdade absoluta
Matheus Doliveira
Publicado em 22 de outubro de 2020 às 19h47.
LONDRES – Em 6 de outubro, o presidente dos EUA, Donald Trump , postou um tuíte afirmando que a gripe comum às vezes mata “mais de 100.000” americanos em um ano. “Vamos fechar o nosso país?” ele perguntou. “Não, aprendemos a conviver com isso, assim como estamos aprendendo a conviver com o Covid , muito menos letal na maioria das populações!!!”
A primeira declaração de Trump é verdadeira: a gripe matou mais de 100.000 americanos em 1918 e em 1957. “Estamos aprendendo a conviver com isso” é uma questão de opinião, embora sua afirmação de que o COVID-19 seja “muito menos letal” do que a gripe na maioria das populações é ambígua (quais populações e onde?)
Não parecia haver nada particularmente incomum nesse tuíte: o gosto de Trump por histórias da carochinha é bem conhecido. Mas, logo depois de ser postado, o Twitter escondeu o tuíte sob um aviso por escrito, dizendo que este havia violado as regras da plataforma sobre “espalhar informações enganosas e potencialmente prejudiciais relacionadas ao COVID-19”. O Facebook foi além, removendo inteiramente de seu site uma postagem idêntica.
Essas controvérsias online estão se tornando cada vez mais comuns. Em 2018, foi dito que a agora extinta empresa de consultoria política Cambridge Analytica intencionalmente espalhou notícias falsas nas redes sociais para persuadir os americanos a votarem em Trump nas eleições presidenciais de 2016 nos EUA. Desde então, o Facebook e o Twitter removeram milhões de contas falsas e “robôs” que propagavam histórias falsas. Essa operação de eliminação exigiu que as próprias plataformas usassem algoritmos de inteligência artificial para encontrar contas suspeitas.
Nossa confiança em empresas que lucram permitindo que a “desinformação” assuma a liderança no monitoramento da verdade reflete a armadilha em que a tecnologia digital nos colocou. O Facebook e o Twitter não têm incentivos para garantir que apenas informações “verdadeiras” apareçam em seus sites. Ao contrário, essas empresas ganham dinheiro coletando dados dos usuários e usando-os para vender anúncios que podem ser direcionados individualmente. Quanto mais tempo um usuário passa no Facebook e no Twitter e quanto mais ele dá “likes”, clica e publica novamente, mais essas plataformas lucram – independentemente da maré crescente de desinformação e os caça cliques.
Essa maré crescente é parcialmente alimentada pela psicologia. Pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts descobriram que, de 2006 a 2017, notícias falsas no Twitter tinham 70% mais probabilidade de serem retuitadas do que histórias verdadeiras. A explicação mais plausível é que as notícias falsas têm maior apelo de novidade em relação à verdade e provocam reações mais fortes – especialmente surpresa e repulsa. Então, de que maneira empresas que ganham usuários e receita com notícias falsas podem ser guardiãs confiáveis das notícias verdadeiras?
Além disso, vem aumentado as oportunidades de espalhar desinformação. A mídia social ampliou muito o público para histórias de todos os tipos, continuando assim um processo que começou com a invenção de Johannes Gutenberg da prensa de tipos móveis no século 15. Assim como a inovação de Gutenberg ajudou a retirar o monopólio da produção de conhecimento da Igreja Católica Romana, as mídias sociais descentralizaram a maneira como recebemos e interpretamos as informações. A grande promessa democratizante da Internet era que ela permitiria a comunicação sem restrições hierárquicas de cima para baixo. Mas o resultado foi igualar a credibilidade das informações, independentemente de sua fonte.
Mas o problema é mais fundamental: “O que é verdade?” como o irônico Pôncio Pilatos disse a Jesus. Houve um tempo em que verdade era a palavra de Deus. Mais tarde, foram as descobertas da ciência. Hoje em dia, até a ciência se tornou suspeita. Colocamos nossa fé nas evidências como o real caminho para a verdade. Mas fatos podem ser facilmente manipulados. Isso levou os pós-modernos a afirmar que toda verdade é relativa; pior ainda, é construída pelos poderosos para se manterem no poder.
Portanto, a verdade, como a beleza, está nos olhos de quem vê. Isso deixa bastante liberdade para cada lado contar sua própria história, sem se preocupar muito com a precisão dos fatos. De modo mais geral, esses três fatores – psicologia humana, amplificação da mensagem possibilitada pela tecnologia e cultura pós-moderna – estão fadados a expandir o domínio da credulidade e da teoria da conspiração.
Este é um problema sério, porque altera um terreno comum sobre o qual o debate democrático e a deliberação podem ocorrer. Mas não vejo uma resposta óbvia. Não tenho fé na vontade ou na capacidade das empresas de mídia social de policiar suas plataformas. Eles sabem que informações “falsas” podem trazer consequências políticas ruins. Mas eles também sabem que disseminar histórias convincentes, independentemente de sua verdade ou consequências, é altamente lucrativo.
O único incentivo dessas empresas para enfrentar o problema das notícias falsas é minimizar a mídia negativa que isso gerou para elas. Mas, a menos e até que a verdade seja o resultado final, é inútil esperar que eles mudem de curso. O melhor que se pode esperar é que se façam esforços visíveis, mesmo que superficiais, para remover informações ou inferências enganosas de seus sites. Mas atos performáticos de censura, como a remoção do tuíte de Trump, são uma fachada que não envia um sinal mais amplo. Isso serve apenas para irritar os partidários de Trump e acalmar as consciências preocupadas de seus oponentes liberais.
A alternativa – deixar o policiamento da opinião para as autoridades do Estado – é igualmente desagradável, pois reavivaria a alegação insustentável de que existe uma única fonte de verdade, divina ou secular, e que ela deveria prevalecer na Internet.
Não tenho solução para este dilema. Talvez a melhor abordagem seja simplesmente aplicar às plataformas de mídia social o princípio de ordem pública de que é considerado ofensa incitar o ódio racial. Twitter, Facebook e outros seriam então legalmente obrigados a remover o material de ódio. Qualquer decisão da parte deles precisaria ser comprovada em juízo.
Não sei o quão eficaz essa jogada poderia ser. Mas certamente seria melhor do que continuar o debate estéril e interminável sobre o que significa “fake news”.
Robert Skidelsky, Membro da Casa Britânica dos Lordes, é Professor Emérito de Economia Política da Warwick University.
Tradução: Anna Maria Dalle Luche, Brazil.
LONDRES – Em 6 de outubro, o presidente dos EUA, Donald Trump , postou um tuíte afirmando que a gripe comum às vezes mata “mais de 100.000” americanos em um ano. “Vamos fechar o nosso país?” ele perguntou. “Não, aprendemos a conviver com isso, assim como estamos aprendendo a conviver com o Covid , muito menos letal na maioria das populações!!!”
A primeira declaração de Trump é verdadeira: a gripe matou mais de 100.000 americanos em 1918 e em 1957. “Estamos aprendendo a conviver com isso” é uma questão de opinião, embora sua afirmação de que o COVID-19 seja “muito menos letal” do que a gripe na maioria das populações é ambígua (quais populações e onde?)
Não parecia haver nada particularmente incomum nesse tuíte: o gosto de Trump por histórias da carochinha é bem conhecido. Mas, logo depois de ser postado, o Twitter escondeu o tuíte sob um aviso por escrito, dizendo que este havia violado as regras da plataforma sobre “espalhar informações enganosas e potencialmente prejudiciais relacionadas ao COVID-19”. O Facebook foi além, removendo inteiramente de seu site uma postagem idêntica.
Essas controvérsias online estão se tornando cada vez mais comuns. Em 2018, foi dito que a agora extinta empresa de consultoria política Cambridge Analytica intencionalmente espalhou notícias falsas nas redes sociais para persuadir os americanos a votarem em Trump nas eleições presidenciais de 2016 nos EUA. Desde então, o Facebook e o Twitter removeram milhões de contas falsas e “robôs” que propagavam histórias falsas. Essa operação de eliminação exigiu que as próprias plataformas usassem algoritmos de inteligência artificial para encontrar contas suspeitas.
Nossa confiança em empresas que lucram permitindo que a “desinformação” assuma a liderança no monitoramento da verdade reflete a armadilha em que a tecnologia digital nos colocou. O Facebook e o Twitter não têm incentivos para garantir que apenas informações “verdadeiras” apareçam em seus sites. Ao contrário, essas empresas ganham dinheiro coletando dados dos usuários e usando-os para vender anúncios que podem ser direcionados individualmente. Quanto mais tempo um usuário passa no Facebook e no Twitter e quanto mais ele dá “likes”, clica e publica novamente, mais essas plataformas lucram – independentemente da maré crescente de desinformação e os caça cliques.
Essa maré crescente é parcialmente alimentada pela psicologia. Pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts descobriram que, de 2006 a 2017, notícias falsas no Twitter tinham 70% mais probabilidade de serem retuitadas do que histórias verdadeiras. A explicação mais plausível é que as notícias falsas têm maior apelo de novidade em relação à verdade e provocam reações mais fortes – especialmente surpresa e repulsa. Então, de que maneira empresas que ganham usuários e receita com notícias falsas podem ser guardiãs confiáveis das notícias verdadeiras?
Além disso, vem aumentado as oportunidades de espalhar desinformação. A mídia social ampliou muito o público para histórias de todos os tipos, continuando assim um processo que começou com a invenção de Johannes Gutenberg da prensa de tipos móveis no século 15. Assim como a inovação de Gutenberg ajudou a retirar o monopólio da produção de conhecimento da Igreja Católica Romana, as mídias sociais descentralizaram a maneira como recebemos e interpretamos as informações. A grande promessa democratizante da Internet era que ela permitiria a comunicação sem restrições hierárquicas de cima para baixo. Mas o resultado foi igualar a credibilidade das informações, independentemente de sua fonte.
Mas o problema é mais fundamental: “O que é verdade?” como o irônico Pôncio Pilatos disse a Jesus. Houve um tempo em que verdade era a palavra de Deus. Mais tarde, foram as descobertas da ciência. Hoje em dia, até a ciência se tornou suspeita. Colocamos nossa fé nas evidências como o real caminho para a verdade. Mas fatos podem ser facilmente manipulados. Isso levou os pós-modernos a afirmar que toda verdade é relativa; pior ainda, é construída pelos poderosos para se manterem no poder.
Portanto, a verdade, como a beleza, está nos olhos de quem vê. Isso deixa bastante liberdade para cada lado contar sua própria história, sem se preocupar muito com a precisão dos fatos. De modo mais geral, esses três fatores – psicologia humana, amplificação da mensagem possibilitada pela tecnologia e cultura pós-moderna – estão fadados a expandir o domínio da credulidade e da teoria da conspiração.
Este é um problema sério, porque altera um terreno comum sobre o qual o debate democrático e a deliberação podem ocorrer. Mas não vejo uma resposta óbvia. Não tenho fé na vontade ou na capacidade das empresas de mídia social de policiar suas plataformas. Eles sabem que informações “falsas” podem trazer consequências políticas ruins. Mas eles também sabem que disseminar histórias convincentes, independentemente de sua verdade ou consequências, é altamente lucrativo.
O único incentivo dessas empresas para enfrentar o problema das notícias falsas é minimizar a mídia negativa que isso gerou para elas. Mas, a menos e até que a verdade seja o resultado final, é inútil esperar que eles mudem de curso. O melhor que se pode esperar é que se façam esforços visíveis, mesmo que superficiais, para remover informações ou inferências enganosas de seus sites. Mas atos performáticos de censura, como a remoção do tuíte de Trump, são uma fachada que não envia um sinal mais amplo. Isso serve apenas para irritar os partidários de Trump e acalmar as consciências preocupadas de seus oponentes liberais.
A alternativa – deixar o policiamento da opinião para as autoridades do Estado – é igualmente desagradável, pois reavivaria a alegação insustentável de que existe uma única fonte de verdade, divina ou secular, e que ela deveria prevalecer na Internet.
Não tenho solução para este dilema. Talvez a melhor abordagem seja simplesmente aplicar às plataformas de mídia social o princípio de ordem pública de que é considerado ofensa incitar o ódio racial. Twitter, Facebook e outros seriam então legalmente obrigados a remover o material de ódio. Qualquer decisão da parte deles precisaria ser comprovada em juízo.
Não sei o quão eficaz essa jogada poderia ser. Mas certamente seria melhor do que continuar o debate estéril e interminável sobre o que significa “fake news”.
Robert Skidelsky, Membro da Casa Britânica dos Lordes, é Professor Emérito de Economia Política da Warwick University.
Tradução: Anna Maria Dalle Luche, Brazil.