A politização da ciência em prol de interesses econômicos
A política pode e vai se intrometer em toda área de pesquisa acadêmica em que algumas pessoas têm fortes motivações para entender errado a história
Publicado em 29 de setembro de 2020 às, 15h52.
Acreditem se quiser, eu não sou alguém particularmente politizado por natureza. Gosto de entender como o mundo funciona, e também me agrada encontrar jeitos de explicar as coisas em linguagem simples. Não gosto de disputas partidárias, apesar de não ter problemas em escolher lados. E algumas vezes me arrependi de ter decidido trabalhar com economia, um campo em que entender direito a história na maioria dos casos ofende figuras poderosas, que por sua vez intervêm para alimentar ideias zumbi que deviam ter morrido há tempos.
Mas eu também entendi há algum tempo que a política pode e vai se intrometer em toda área de pesquisa acadêmica em que algumas pessoas têm fortes motivações para entender errado a história. Obviamente tem sido o caso dos estudos sobre aquecimento global, em que um consenso científico esmagador está tendo de combater uma indústria inteira de negacionismo climático, que é quase totalmente sustentada pelos interesses do setor de combustíveis fósseis e está efetivamente assumindo o controle do Partido Republicano nos Estados Unidos.
De fato, de certo modo os cientistas climáticos têm passado por situações muito piores do que os economistas; os economistas keynesianos conhecidos (que é basicamente o que eu sou) sofrem um bocado de abusos, mas até onde eu sei nenhum de nós teve de lidar com políticos tentando criminalizar nosso trabalho, da maneira como Ken Cuccinelli, hoje funcionário do alto escalão do Departamento Americano de Segurança Interna, fez com o climatologista Michael E. Mann.
Eu costumava pensar, contudo, que o aquecimento global fosse um tema vulnerável de modo único à propaganda e intimidação anticientífica. Afinal, os efeitos das emissões de gases do efeito estufa são invisíveis e graduais, e levam décadas para se manifestar; sempre é possível rir da ciência porque hoje por acaso está nevando, ao mesmo tempo em que se acusam os cientistas de tirar o emprego de mineradores humildes.
Sem dúvida, eu pensava, não seria fácil politizar uma ciência e afirmar que todos os especialistas eram parte de uma vasta conspiração, em uma área em que as previsões dos especialistas podiam ser verificadas e as dos teóricos da conspiração reveladas como fajutas em questão de semanas.
Mas eu errei.
A epidemiologia, assim como a climatologia - ou, nesse sentido, a economia - envolve tentar modelar sistemas complexos, de modo que nenhuma previsão acaba sendo exatamente certa. E as cadeias de causa e efeito são grandes o suficiente para as consequências de uma política ruim levarem um certo tempo para se tornar completamente visíveis: o Estado da Flórida começou a reabrir no início de maio, mas as mortes por covid-19 na região só começaram a subir a partir de julho.
A questão é que estamos falando aqui de semanas, não décadas, e a história do coronavírus está tão clara quanto esse tipo de situação pode ser.
Os especialistas alertaram que uma corrida para retomar os negócios normalmente, sem distanciamento social e uso coletivo de máscaras faciais, levaria a uma alta no número de casos novos. Os suspeitos de sempre da direita política minimizaram estas preocupações, insistindo que ou a covid-19 era uma farsa ou que os riscos da doença estavam sendo gravemente exagerados por cientistas que queriam derrubar o presidente Trump.
Os Estados no Cinturão do Sol (região no Sudeste e Sudoeste dos EUA) decidiram acreditar nos céticos em vez de nos cientistas - e o resultado foi uma alta viral enorme e letal.
Logo, isso acabou com a politização, certo? Errado. Não só os funcionários de Trump ainda estão pressionando especialistas da área da saúde para minimizar os riscos, o tal funcionário do alto escalão da comunicação do Departamento de Saúde e Serviços Humanos - que desde então anunciou que ele sairá de licença "para focar na sua saúde e bem-estar de sua família" - acusou os cientistas de sua própria agência de “rebelião.”
A moral dessa história é que não existe tema seguro quando se lida com gente com uma mentalidade totalitária, e é com isso, de fato, que estamos lidando. Eu desconfio que nos dias iniciais da União Soviética os geneticistas botânicos pensassem que trabalhavam em um setor de baixo risco; afinal, quem politizaria aquilo? No fim, contudo, milhares deles foram levados a campos de trabalho forçado ou executados por questionar as teorias de Trofim Lysenko, um pilantra que de algum modo se tornou um dos queridinhos de Stálin.
O fato é que estamos hoje discutindo se sequer existe algo semelhante a uma verdade ojetiva para ser descoberta. E ficar de fora da política não é mais opção para ninguém.