Paterson: uma homenagem à simplicidade das coisas
Novo filme do queridinho do cinema independente, Jim Jarmusch, conta a história do motorista de ônibus que encontra a poesia por todos os lados
Publicado em 27 de abril de 2017 às, 06h00.
Última atualização em 27 de abril de 2017 às, 11h29.
O que te inspira a criar? O que efervesce a sua mente a ponto de fazer as mãos desenharem, bordarem, pintarem ou escreverem?
Comigo, o que funciona é colocar os fones e ouvir um disco do R.E.M. por alguns minutos. Em pouco tempo, os dedos começam a transmitir ao papel ou ao bastidor uma energia que lentamente se transforma em um novo texto, ainda que revisado à exaustão depois, ou um novo bordado, mesmo em linhas tortas.
Para Paterson, o personagem principal de “Paterson”, novo filme (ou grande prosa poética) de Jim Jarmusch que estreou no Brasil há poucos dias, nada é mais inspirador do que o movimento lento da rotina, o barulho da cachoeira, uma caixa de fósforos, a troca das estações.
É das pequenas coisas que vê e sente que Paterson (Adam Driver) extrai quase que espontaneamente a inspiração para criar poemas doces, sensíveis e que de tão simples trazem uma calmaria repentina ao coração quando declamados.
Paterson vive em Paterson (Nova Jersey, EUA) e é um motorista de ônibus encarregado pela linha Paterson. É, ainda, fã de William Carlos Williams, poeta americano que atuava como médico e que também viveu em Paterson. Em "Paterson", quase tudo se chama Paterson.
Ele é casado com a alegre Laura (Golshifteh Farahani), que passa os dias em casa desenvolvendo seus talentos, seja na pintura, na cozinha, na decoração ou na música. Ela sonha em se tornar uma confeiteira de sucesso ou, quem sabe, a nova estrela do country.
Laura tem o temperamento totalmente oposto ao de Paterson, que escreve quase que secretamente. Nunca se intitula poeta e não tem qualquer ambição de transformar seus poemas em livro, em mostrá-los ao mundo. Evita, até, declamá-los para sua amada.
O dia de Paterson começa rigorosamente nos primeiros minutos das 6 da manhã. Ele acorda, checa o relógio, passa um tempo abraçado com sua esposa, come o seu cereal e vai trabalhar.
A caixa de correio está sempre no lugar quando sai de casa. Quando volta, contudo, está torta, fazendo com que tenha de colocá-la de volta ao seu lugar.
E o faz calmamente todos os dias. Assim como todos os dias lida com o passar das horas com tranquilidade. Há uma serenidade nele que não deixa dúvidas no espectador de que, em algum momento, ele irá explodir, que os problemas financeiros irão eventualmente tirá-lo do prumo, que o tédio da rotina irá desanimá-lo. Mas nada disso acontece.
As redes sociais existem, mas não estão lá. Os dispositivos eletrônicos também existem e também não estão lá. Sobre os últimos, Paterson é categórico ao dizer que são como coleiras. Curioso, já que ele mesmo parece viver preso a alguma coisa maior e que se revela ser a poesia. Impossível dissociá-la do seu dia a dia e de quem ele é.
"Paterson" é um filme sobre nada, especificamente, mas sobre a vida como um todo. Desafia o espectador a aceitar que não há intenção alguma em reverenciar ou ser condescendente com o personagem, em trazer reviravoltas para sua vida ou torná-la mais emocional. É uma homenagem à vida moderna em seu estado mais simples.
Aqui, Jarmusch, um dos diretores mais amados do cinema independente e responsável por “Estranhos no Paraíso” (1984), nos presenteia com um filme belíssimo e inspirador. E isso combinado com a atuação impecável de Driver, conhecido por “Star Wars: O Despertar da Força” (2015), que absorve o gênio de Paterson com uma naturalidade incrível.
Juntos, Jarmusch e Driver fazem uma dupla e tanto e dão ainda mais emoção aos poemas de Ron Padgett, criador dos versos de "Paterson". Em uma entrevista à rede PBS, o poeta disse acreditar que, assim como no filme, a poesia pode aparecer em qualquer lugar, seja na imaginação ou na familiaridade. Até mesmo em uma caixa de sapatos.