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O inferno astral do Uber

O Uber vive uma situação inusitada e contraditória. É amado e odiado ao mesmo tempo. Por um lado, é o unicórnio mais reluzente da constelação de empresas inovadoras mundiais. Vale quase 70 bilhões de dólares e está com os bolsos cheios de dinheiro para investir onde e quando quiser. É preferido como meio de transporte […]

UBER: representantes do governo Michel Temer sinalizaram que esperam que o Senado não aprove o projeto que, na prática, proibiria o transporte particular de passageiros por aplicativos, como faz o Uber / Victor J. Blue / Getty Images (Victor J. Blue/Getty Images)
UBER: representantes do governo Michel Temer sinalizaram que esperam que o Senado não aprove o projeto que, na prática, proibiria o transporte particular de passageiros por aplicativos, como faz o Uber / Victor J. Blue / Getty Images (Victor J. Blue/Getty Images)
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Silvio Genesini

Publicado em 17 de fevereiro de 2017 às, 14h45.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 18h44.

O Uber vive uma situação inusitada e contraditória. É amado e odiado ao mesmo tempo. Por um lado, é o unicórnio mais reluzente da constelação de empresas inovadoras mundiais. Vale quase 70 bilhões de dólares e está com os bolsos cheios de dinheiro para investir onde e quando quiser. É preferido como meio de transporte urbano por uma ampla gama de cidadãos de várias partes do mundo. No Brasil é líder inconteste com cerca de 50 mil carros e 9 milhões de usuários.

Por outro, além de ser detestado pelos taxistas, o que é natural e esperado, o serviço começa a ser questionado por aqueles que mais deveriam se beneficiar dos seus serviços: motoristas e passageiros.

Recentemente, um juiz do trabalho de Belo Horizonte, reconheceu o vínculo empregatício entre um motorista e a empresa dona do aplicativo. Mesmo que as instâncias superiores revertam a decisão, o problema não vai desaparecer. Questionamentos semelhantes estão sendo feitos em várias partes do mundo. Além disso, com a proliferação do serviço e da concorrência os ganhos individuais estão caindo e as horas de trabalho aumentando.

É certo que a base da economia compartilhada, do qual o Uber é pioneiro, estaria seriamente comprometida se o vínculo se estabelecesse. Em contrapartida, não é razoável que um contingente imenso de pessoas ganhe menos do que precisa para sobreviver decentemente e não sejam protegidos por benefícios e direitos sociais.

Como se não fosse pouco, a Reuters publicou nesta semana uma análise mostrando que roubos e ataques aos motoristas do aplicativo cresceram exponencialmente nos últimos meses.

Na mesma linha, a cidade de Seattle aprovou no ano passado uma lei que permite que os motoristas criem um sindicato para negociar coletivamente com o Uber. A empresa começou 2017 declarando que este seria o “ano do motorista”. Prometeu dedicar seus melhores esforços e recursos para melhorar as condições desses profissionais. Ao mesmo tempo entrou com um processo contra a decisão da cidade classificando-a como arbitrária e caprichosa.

A qualidade do serviço também foi afetada. Reportagem de capa da última edição da revista EXAME, com o título “A guerra das ruas”, mostra que no Reclame Aqui as queixas chegaram a 5 mil casos, em janeiro deste ano. A empresa argumenta que boa parte é devido ao rápido crescimento do serviço. Pode explicar parcialmente. Mas, se fizermos uma pesquisa informal entre nossos amigos vamos encontrar muitos mais descontentes do que havia anteriormente. O Titanic estaria fazendo água?

Ao contrário de plataformas como Google e Facebook que usam software como interface com seus usuários, o serviço do Uber acontece na vida real, com um motorista atendendo a um ou mais passageiros. Com bits é uma coisa, com gente é muito diferente. Gente tem emoções, sentimentos, necessidades e expectativas. Gente acerta, erra, tenta, desiste, cansa e se irrita. Bits são sempre os mesmos. Enfadonhos.

A solução anunciada pela empresa para tratar as reclamações é a criação de uma central de atendimento com 2.000 atendentes. Doce ironia. Quando todos os grandes da tecnologia usam a própria plataforma para se comunicar com o cliente e estão investindo em chatbots de inteligência artificial, o Uber está montando um call center de voz. Pelo menos é uma solução que emprega.

Quando o mundo já estava concluindo que o Uber, rico e poderoso, seria dominante e monopolista, a competição proliferou e cresceu. Os chineses da Didi Chuxing ganharam a parada no seu território, o que não é novidade. Praticamente nenhum dos campeões ocidentais tem vez por lá. Novo é a constatação de que o gigante chinês, depois de ter convencido o Uber a sair da China, em troca de uma participação acionária minoritária, resolveu persegui-lo mundo afora.

No Brasil acabou de investir, junto com outros fundos, 100 milhões de dólares na 99 Taxis, que agora pode se transformar em um concorrente real, para além dos serviços de taxis que provê atualmente. A plataforma chinesa já investiu no Lyft nos Estados Unidos, no Ola indiano e no Grab asiático. Já avisou que veio para o Brasil para valer e para ficar, como declarou à reportagem de EXAME. Boa notícia para nós usuários. Mais competição é sempre bem-vinda.

Para confirmar que esta é uma série dramática com mais episódios que House of Cards, Travis Kalanick, criador e CEO do aplicativo, aceitou uma posição no conselho consultivo de Donald Trump. Logo em seguida aconteceu a publicação da ordem presidencial impedindo a entrada de imigrantes muçulmanos no país. Como protesto os motoristas de taxis de Nova York decidiram parar de operar no aeroporto JF Kennedy. Em uma decisão apressada e equivocada o Uber decidiu reduzir o preço de suas corridas para chegavam e saiam do aeroporto. A reação foi imediata e explosiva. Percebendo a gafe a empresa correu para anunciar que era contra a medida e ofereceu suporte financeiro para os milhares de motoristas que seriam afetados pela ordem. Era tarde. Um boicote nas redes sociais resultou em mais de 200 mil pessoas deletando seus aplicativos. As hashtags #DeleteUber e #BoycottUber viralizaram. Por fim, Travis anunciou sua renúncia ao conselho.

Isto tudo significa que o nosso herói corre perigo? Justo o Uber que é o suprassumo da economia compartilhada e colaborativa. Ele é tão sinônimo de modelos de inovação disruptiva que virou verbo e substantivo: o mundo uberizou!

Nos tempos de inovação acelerada muda-se o presente inventando um novo futuro e construindo uma nova narrativa. O futuro dos aplicativos de transportes urbanos passa por carros autônomos e sem motoristas. O Uber já tem sua versão sendo testada pelas ruas de Pittsburgh. Pode ir além e usar carros voadores. Acabou de contratar um engenheiro veterano da NASA para a sua divisão Elevate (nome é destino) para acelerar a criação de um protótipo que possa planar sobre nossos engarrafamentos. Difícil deixar passar a ironia de que máquinas não reclamam, não protestam e nem se sindicalizam.

É um sonho de uma noite de verão? Vai levar muito tempo para virar realidade? É transporte para poucos quando a solução deveria ser coletiva para muitos? É mais uma tecnologia que desemprega? A lista de dúvidas e incertezas é imensa. A única certeza é que haverá um Uber no futuro.

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