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Bob Dylan, o Judas, e as restrições do Nobel

O Nobel de literatura dado a Bob Dylan é um sinal inequívoco da desconstrução do prêmio. Uma evidencia de que a academia sueca, que escolhe o vencedor, já não consegue mais distinguir as manifestações tradicionais, expressas em livros, de outras cantadas em músicas ou mostradas em filmes e séries. Para justificar a decisão, Sara Danius, […]

BOB DYLAN: prêmio Nobel ao músico americano mostra que vivemos o fim das fronteiras entre as áreas do conhecimento e da cultura / Reuters
BOB DYLAN: prêmio Nobel ao músico americano mostra que vivemos o fim das fronteiras entre as áreas do conhecimento e da cultura / Reuters
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Silvio Genesini

Publicado em 27 de outubro de 2016 às, 15h17.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 17h56.

O Nobel de literatura dado a Bob Dylan é um sinal inequívoco da desconstrução do prêmio. Uma evidencia de que a academia sueca, que escolhe o vencedor, já não consegue mais distinguir as manifestações tradicionais, expressas em livros, de outras cantadas em músicas ou mostradas em filmes e séries.

Para justificar a decisão, Sara Danius, secretária da Academia recorreu aos gregos (sempre eles) Homero e Safo, que teriam usado versos musicados em suas obras. Deveria ter argumentado que o mundo mudou e que a literatura atual tem formas múltiplas de chegar ao público que é leitor, ouvinte e expectador, ao mesmo tempo.

Aliás, outros prêmios deste ano foram também heterodoxos. Os vencedores de economia, Oliver Hart (britânico) e Bengt Holmstrom (finlandês), trabalhando em universidades americanas, desenvolveram estudos sobre contratos entre empresas e remuneração de executivos. Tais assuntos são claramente do campo da administração. Uma constatação de que as fronteiras entre as áreas do conhecimento estão desaparecendo. O prêmio da Paz foi dado ao presidente colombiano Juan Manuel Santos, por uma paz que ele não conseguiu concretizar, evidenciando que o esforço pode ser recompensado, mesmo que resultados efetivos ainda não tenham sido alcançados.

Muita gente não gostou da escolha de Bob Dylan, o que é compreensível. Bob é um pacote de difícil de digerir. Voz anasalada e rouca, músicas longas, nem sempre cantáveis, e letras, muitas vezes, quilométricas e herméticas. Recentemente, Ruy Castro, que gosta e escreve sobre música, comentou sobre a lista dos melhores compositores da revista Rolling Stones, que colocava Dylan em primeiro lugar: “Sua música é pobre, óbvia, sem interesse melódico ou harmônico. Serve apenas para carregar a letra, e olhe lá. Mas eu o poria em primeiro também – na lista dos 100 maiores chatos de todos os tempos”.

E eis que o chato ganha o Nobel de literatura. A comunidade literária, na sua maioria, detestou, achando um absurdo que Philip Roth, Milan Kundera e Haruki Murakami tenham sido preteridos. O cubano Leonardo Padura chamou a decisão de “esnobismo nórdico.”

Bob também foi chamado de Judas. Em um show de 1966 em Manchester, na Inglaterra, um fã, descontente com a mutação dele do folk para o rock eletrificado, gritou “Judas” na introdução de Like a Rolling Stone. Bob respondeu com: “I don’t believe you. You’re a liar” e para a banda “play fucking loud”. Antes disso já tinha sido vaiado pela mesma razão no festival de Newport de 1965.

O fã não era um mentiroso. Bob estava efetivamente traindo a tradição do folk. Com a traição criou a ruptura que fez do rock o roteiro musical e a essência da contracultura, que abalou os anos sessenta e moldou inteiramente o que somos hoje. Beatles e Rolling Stones ficaram mais selvagens e arrojados com o seu exemplo.

Mais do que ninguém, ele explicitou o que queria dizer na sua música manifesto: the times they are a-changin’, de 1964. Os versos abaixo, que mantenho em inglês, pois são de largo conhecimento de quase todo mundo, não poderiam ser mais claros:

Come mothers and fathers throughout the land and don’t criticize what you can’t understand. Your sons and your daughters are beyond your command

The order is rapidly fadin’ and the first one now will later be last. For the times they are a-changin

A desconstrução dos anos sessenta gestou uma nova sociedade mais aberta, mais tolerante, mais diversificada e mais inclusiva. Criou também um novo capitalismo com a aceleração das transformações tecnológicas e comportamentais que vivemos hoje. Os tempos continuam mudando vertiginosamente e o rock se juntou a muitos outros sons para constituir a trilha sonora dos novos tempos.

Dylan e a contracultura influenciaram a geração de empreendedores que tornou o Vale do Silício o berço da inovação no mundo. A biografia de Steve Jobs é rica em menções a essa influência. Bob é citado 90 vezes em todo o livro. Em especial, quando entrevistado pelo autor sobre sua própria história, Steve conta o episódio do concerto em que Bob foi xingado de Judas e diz: “Para inovar é preciso ir em frente. Dylan poderia ter cantado canções de protesto a vida inteira, provavelmente ganhando muito dinheiro, mas não o fez. Tinha de seguir em frente, e por isso ao usar a guitarra elétrica em 1965, se indispôs com muita gente”. “É o que sempre tentei fazer – seguir em frente. Do contrário, como diz Dylan, se você não está ocupado em nascer, está ocupado em morrer”.

Para não deixar nenhuma dúvida concluiu: “Tem a ver com tentar expressar algo da única maneira que a maioria de nós é capaz de fazer – porque não somos capazes de escrever as canções de Bob Dylan… Tentamos usar os talentos que temos para expressar nossos sentimentos profundos, para mostrar nosso apreço por todas as contribuições feitas antes de nós e para acrescentar algo ao fluxo. Foi isso que me motivou.”

Bob Dylan deveria receber um Nobel de “transformação cultural” ou apenas de Cultura. A conclusão é que as categorias originais do prêmio ficaram estreitas para reconhecer as contribuições múltiplas para a cultura e o conhecimento de uma nova terra em que vivemos. Nesse sentido Bob é melhor comparável, no século XX, com o que foi Picasso. Pablo, com Les demoiselles D’Avignon e o cubismo, fez a ruptura que abriu todas as possibilidades de expressões artísticas que se seguiram. Por que não ter um Nobel de artes?

Bob, como Picasso, é um criador obsessivo e prolífico. Depois da radicalidade dos anos sessenta, teve varias fases criativas e tendências musicais, incluindo seus dois últimos álbuns com canções clássicas americanas e repertório de Frank Sinatra, o que certamente desagradou ainda mais quem já não gostava dele.

Para não dizer que eu não falei da literatura e da qualidade das suas letras, digo que Dylan faz parte de um trio que elevou a palavra cantada em inglês à sua maior e melhor expressão. Junto com ele estão Cole Porter e Leonard Cohen. Os três têm como característica comum serem músicos e letristas em um país onde muitos compositores são apenas uma coisa ou outra.

Minhas preferidas não são as canções de protestos ou engajadas como a indefectível Blowing in the Wind, mas aquelas que contam relacionamentos desfeitos em tom de ironia e até vingança, como é o caso de Don’t think twice, it’s alright; It ain’t me babe e Like a rolling stone. A revista New Yorker pediu aos seus colaboradores para escolher os versos favoritos de Dylan. Em cerca de 15 textos não houve nenhuma repetição.

Leonard Cohen, que por justiça e comparação, também deveria ganhar, comentou, ao seu modo, quando perguntado sobre a premiação: “Para mim é como dar uma medalha para o Everest por ele ser o mais alto do mundo” e completou: “Dylan é tão grande que o prêmio é apenas um detalhe, uma obviedade”.

Como há sinais de que Bob no seu melhor estilo “não-estou-nem-aí-com-o-mundo” está desprezando a homenagem, ficamos com a esperança de que o prêmio vai tornar a montanha mais visível para os que evitaram se aproximar ou escalar por preferência ou rejeição.

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silvio-genesini