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A morte da morte e o efeito em nossas vidas

É bem provável que já nasceu o ser humano que viverá 150 anos – e tudo muda quando a perspectiva de vida se alarga

CASAL DE IDOSOS NA INGLATERRA: expectativa de vida será cada vez mais alta, alterando a forma como pensamos em carreira, maternidade ou religião / Michael Steele/Getty Images
DR

Da Redação

Publicado em 24 de novembro de 2017 às 08h37.

É cada vez mais comum ouvirmos e lermos que a morte tem remédio. O Google tem uma empresa chamada Calico liderada por Ray Kurzweil, seu diretor de engenharia e fundador da Singularity University, cuja missão é “solucionar a morte”. Peter Diamandis, também co-fundador da Singularity, tem a sua Human Longevity Inc. O mega empreendedor Peter Thiel já declarou que pretende viver para sempre. O best seller Homo Deus, do israelense Youval Harari, tem um capítulo chamado “Os últimos dias da morte”.

Pode parecer devaneio de gente poderosa que acha que tecnologia e inovação tudo podem, mas o fato é que a humanidade decidiu combater, uma a uma, as causas da morte. Muito dinheiro está sendo investido no combate às doenças e no prolongamento da vida como mostra a reportagem de capa da revista EXAME – Vida Longa – de 22/11.

Já há quem ponha datas no acontecimento, como se fosse a chegada de um Messias. Alguns falam em 2200, outros em 2100. Kurzweil, com seu otimismo ilimitado, diz que quem chegar com boa saúde em 2050 tem grandes chances de comprar sua passagem para a vida eterna, aqui mesmo na Terra, ou em Marte, onde Elon Musk quer sobreviver.

Não adiantam pesquisas, como a publicada pela Universidade do Arizona que sustenta “que é matematicamente impossível evitar o envelhecimento”. Os “true believers” desconsideram olimpicamente todos estes argumentos racionais. É uma questão de fé na evolução da tecnologia e das ciências.

Como aconteceu quando Nietzsche anunciou que “Deus estava morto”, simbolizando o espírito de reação à moral da época e iniciando a desconstrução que conduziu à modernidade do século 20, a “morte da morte” é a palavra de ordem que libera a explosão das transformações que constituirá a pós-pós-modernidade do século 21.

É bem provável que já nasceu o ser humano que viverá 150 anos. É bastante razoável pensar que os integrantes da geração Z – nascidos entre 1995 e 2010 – vão viver mais de 100 anos.

Tudo muda quando a expectativa de vida se alarga. Não falo apenas das questões econômicas óbvias como renda, trabalho, seguro saúde e aposentadoria, mas, principalmente, da mudança radical na própria maneira de viver.

Que sentido há em escolher uma carreira aos 20 anos quando se tem mais de 50, ou 70 ou 100 anos de vida útil pela frente? Serão muitas carreiras e muitas experiências diferentes. Se já achamos que os jovens de hoje não têm mais verdades e projetos permanentes, mas sim certezas temporárias sucessivas, a mutação contínua de sonhos e objetivos de vida se acelerará.

Com a evolução dos métodos de reprodução assistida a mulher poderá escolher se quer ser mãe aos 20 ou aos 50 ou 60 anos. Ser uma mãe sexagenária é um absurdo quando a expectativa de vida é de 80 anos, mas com mais da metade da vida por viver, essa será uma escolha possível e razoável. Trabalho e maternidade serão mais facilmente harmonizados sem a pressão do relógio biológico. Será uma ajuda fundamental para resolver o atual desbalanceamento de mulheres em posições de liderança.

As relações afetivas e a instituição do casamento serão seriamente afetadas. A expectativa – ainda prevalente – de que nascemos para encontrar o príncipe ou a princesa encantada e que temos uma alma gêmea esperando para uma relação de toda uma vida será, progressivamente, uma exceção. As relações múltiplas sequenciais serão a norma. Casamentos com descasamentos de idades, para todos os gêneros, deixarão de ser incomuns.

Religiões que acreditam em matrimônios permanentes e na vida após a morte terão dificuldades crescentes em atrair fiéis. Como falar em vida eterna se a vida já parece eterna? Não terão outra alternativa que defender a necessidade, provavelmente inatingível, de um paraíso na terra.

Em um terreno mais concreto, vai ser um grande desafio encontrar ocupação relevante e motivadora para todas as etapas da vida. Com a extinção de muitos empregos será uma difícil missão aproveitar produtivamente a legião dos 65+ que já começa a se formar. Torço para que os otimistas da tecnologia, que são os mesmos do fim da morte, estejam certos, e que novos e melhores empregos sejam criados para ocupar este contingente de mulheres e homens que estarão no melhor da sua forma física e mental.

Last but not least, como ficará a busca pela felicidade, esta pedra filosofal dos tempos modernos? Quem quer matar a morte quer, também, encontrar a chave para uma vida feliz que valha a pena ser vivida por tanto tempo. Temo, porém, que os dois objetivos sejam excludentes. Que vamos trocar a angústia da morte pela angústia de uma vida longa. Que o motor que nos move, nos faz criar, produzir, amar e, em suma, ser feliz, é o sentimento de finitude.

Espero que a “morte da morte” seja o lema e o espírito de uma nova época e uma nova vida: longa, tecnológica, intensa, produtiva, finita e humanamente imperfeita.

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É cada vez mais comum ouvirmos e lermos que a morte tem remédio. O Google tem uma empresa chamada Calico liderada por Ray Kurzweil, seu diretor de engenharia e fundador da Singularity University, cuja missão é “solucionar a morte”. Peter Diamandis, também co-fundador da Singularity, tem a sua Human Longevity Inc. O mega empreendedor Peter Thiel já declarou que pretende viver para sempre. O best seller Homo Deus, do israelense Youval Harari, tem um capítulo chamado “Os últimos dias da morte”.

Pode parecer devaneio de gente poderosa que acha que tecnologia e inovação tudo podem, mas o fato é que a humanidade decidiu combater, uma a uma, as causas da morte. Muito dinheiro está sendo investido no combate às doenças e no prolongamento da vida como mostra a reportagem de capa da revista EXAME – Vida Longa – de 22/11.

Já há quem ponha datas no acontecimento, como se fosse a chegada de um Messias. Alguns falam em 2200, outros em 2100. Kurzweil, com seu otimismo ilimitado, diz que quem chegar com boa saúde em 2050 tem grandes chances de comprar sua passagem para a vida eterna, aqui mesmo na Terra, ou em Marte, onde Elon Musk quer sobreviver.

Não adiantam pesquisas, como a publicada pela Universidade do Arizona que sustenta “que é matematicamente impossível evitar o envelhecimento”. Os “true believers” desconsideram olimpicamente todos estes argumentos racionais. É uma questão de fé na evolução da tecnologia e das ciências.

Como aconteceu quando Nietzsche anunciou que “Deus estava morto”, simbolizando o espírito de reação à moral da época e iniciando a desconstrução que conduziu à modernidade do século 20, a “morte da morte” é a palavra de ordem que libera a explosão das transformações que constituirá a pós-pós-modernidade do século 21.

É bem provável que já nasceu o ser humano que viverá 150 anos. É bastante razoável pensar que os integrantes da geração Z – nascidos entre 1995 e 2010 – vão viver mais de 100 anos.

Tudo muda quando a expectativa de vida se alarga. Não falo apenas das questões econômicas óbvias como renda, trabalho, seguro saúde e aposentadoria, mas, principalmente, da mudança radical na própria maneira de viver.

Que sentido há em escolher uma carreira aos 20 anos quando se tem mais de 50, ou 70 ou 100 anos de vida útil pela frente? Serão muitas carreiras e muitas experiências diferentes. Se já achamos que os jovens de hoje não têm mais verdades e projetos permanentes, mas sim certezas temporárias sucessivas, a mutação contínua de sonhos e objetivos de vida se acelerará.

Com a evolução dos métodos de reprodução assistida a mulher poderá escolher se quer ser mãe aos 20 ou aos 50 ou 60 anos. Ser uma mãe sexagenária é um absurdo quando a expectativa de vida é de 80 anos, mas com mais da metade da vida por viver, essa será uma escolha possível e razoável. Trabalho e maternidade serão mais facilmente harmonizados sem a pressão do relógio biológico. Será uma ajuda fundamental para resolver o atual desbalanceamento de mulheres em posições de liderança.

As relações afetivas e a instituição do casamento serão seriamente afetadas. A expectativa – ainda prevalente – de que nascemos para encontrar o príncipe ou a princesa encantada e que temos uma alma gêmea esperando para uma relação de toda uma vida será, progressivamente, uma exceção. As relações múltiplas sequenciais serão a norma. Casamentos com descasamentos de idades, para todos os gêneros, deixarão de ser incomuns.

Religiões que acreditam em matrimônios permanentes e na vida após a morte terão dificuldades crescentes em atrair fiéis. Como falar em vida eterna se a vida já parece eterna? Não terão outra alternativa que defender a necessidade, provavelmente inatingível, de um paraíso na terra.

Em um terreno mais concreto, vai ser um grande desafio encontrar ocupação relevante e motivadora para todas as etapas da vida. Com a extinção de muitos empregos será uma difícil missão aproveitar produtivamente a legião dos 65+ que já começa a se formar. Torço para que os otimistas da tecnologia, que são os mesmos do fim da morte, estejam certos, e que novos e melhores empregos sejam criados para ocupar este contingente de mulheres e homens que estarão no melhor da sua forma física e mental.

Last but not least, como ficará a busca pela felicidade, esta pedra filosofal dos tempos modernos? Quem quer matar a morte quer, também, encontrar a chave para uma vida feliz que valha a pena ser vivida por tanto tempo. Temo, porém, que os dois objetivos sejam excludentes. Que vamos trocar a angústia da morte pela angústia de uma vida longa. Que o motor que nos move, nos faz criar, produzir, amar e, em suma, ser feliz, é o sentimento de finitude.

Espero que a “morte da morte” seja o lema e o espírito de uma nova época e uma nova vida: longa, tecnológica, intensa, produtiva, finita e humanamente imperfeita.

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