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2017: o ano de tomada do poder pelos militantes de causas

A adesão à causas e movimentos sempre existiu. O que mudou foi o seu poder de mobilização e sua capacidade real de influenciar e impor mudanças

FEARLESS GIRL: A questão feminina, nos seus vários aspectos, foi, provavelmente, a mais relevante do ano / Drew Angerer/Getty Images
DR

Da Redação

Publicado em 22 de dezembro de 2017 às 10h08.

O ano que acaba foi pleno de novidades e acontecimentos especiais. Ao seu término é comum procurarmos um fenômeno ou uma síntese que o defina. Candidatos óbvios são a epidemia de fake news e o primeiro ano de governo do destrambelhado Trump.

Minha escolha, porém, para a melhor definição de 2017 é a multiplicação do poder de atuação dos grupos que apoiam interesses específicos, exigem mudanças de atitudes, denunciam malfeitos ou se posicionam ideologicamente em questões políticas ou culturais. Em resumo, são os defensores de causas.

O mundo contemporâneo se horizontalizou. O mundo anterior era hierárquico e ansiava por grandes revoluções. O mundo atual é plano e busca transformações incrementais. Junta pessoas em tribos que sonham e lutam por aspectos que consideram essenciais para a transformação do planeta. É simbólico que a revolução soviética tenha completado 100 anos, este ano, e a efeméride passou praticamente em brancas nuvens. O novo poder é descentralizado e está em múltiplas mãos.

As causas sempre existiram, mas nos últimos tempos multiplicaram-se, tornaram-se mais diversas e foram exponencialmente potencializadas pela internet e pelas redes sociais. São reações que se espalham rapidamente e ganham a força imensa de uma comunicação imediata e permanente.

A questão feminina, nos seus vários aspectos, foi, provavelmente, a mais relevante do ano. Sintomaticamente, já no primeiro trimestre, inaugurou-se em Nova York a estátua da “Fearless Girl”, posicionada em frente ao touro que simboliza a bolsa americana em Wall Street. Está lá ainda. É uma manifestação bela e criativa pelo aumento de participação das mulheres no mercado de trabalho.

Foi, porém, a repulsa e o desmonte de casos rumorosos de assédio sexual que melhor caracteriza o que aconteceu no ano. O caso do produtor de Hollywood, Harvey Weinstein, foi o exemplo mais impressionante pela quantidade de vítimas e pelo fato de ter ficado como um “segredo conhecido” por muito tempo, sem ter sido denunciado.

Como um rastilho de pólvora outros foram acusados e a lista, que continua crescendo, ganhou nomes muito conhecidos como o comediante Louis C. K., Dustin Hoffman e John Lasseter, diretor da Pixar e criador de Toy Story. Casos antigos, como o de Roman Polanski e Woody Allen, foram reciclados. Com a denúncia e afastamento de Kevin Spacey de House of Cards ficou claro que não é só nas interações heterossexuais que o assédio acontece.

A hashtag #MeToo foi criada, em outubro, para simbolizar e agrupar o movimento. Viralizou rapidamente pelo mundo afora. No final do ano a revista Time escolheu como Person of the Year um grupo de mulheres, denominadas de “silence breakers”, que iniciou o #MeToo. O site do movimento comemorou o prêmio com uma provocação: “When you hear #MeToo, would you stand up to say #NoMore?”.

Dois casos anteriores revelaram que inovação tecnológica nem sempre é sinônimo de cultura empresarial avançada. James Dalmore, engenheiro do Google, foi demitido por defender, em um documento, que a desigualdade entre homens e mulheres na indústria de tecnologia é baseada em diferenças biológicas. O uso do código de conduta para justificar sua demissão foi um sinal de que a empresa não tinha uma cultura forte o suficiente para reafirmar a igualdade sem sufocar a discussão.

Outro, foi o episódio da demissão do CEO e fundador do Uber, Travis Kalanick, em meio a muitas denúncias de assédio e da acusação de ser o incentivador de uma cultura organizacional abrasiva e exclusiva. A comunidade de tecnologia americana estava sendo reprovada no seu tão decantado propósito de criar um mundo melhor para todos.

Nesta última semana, a Microsoft anunciou que não vai mais exigir que os seus empregados sejam obrigados a resolver questões de assédio sexual através de arbitragem privada. Estima-se que cerca de 60 milhões de americanos tenham assinado contratos de trabalho que incluíam essa cláusula. Especula-se que contratos assim sejam especialmente usados pelas empresas de tecnologias. O Uber declarou à revista Wired que os seus contratos de trabalho têm essa determinação, mas que, a partir de agora, os funcionários podem optar por não aderir em até 30 dias do início da relação.

Alguma dúvida que esse tsunami vai mudar irresistivelmente e impositivamente a cultura empresarial seja no Vale do Silício ou em Hollywood?

Quatro episódios que envolveram a Rede Globo ilustram bem o que foi o ano na Hollywood brasileira, como bem mostrou Mauricio Stycer, em artigo para a Folha de S.Paulo. Em fevereiro o cantor Victor Chaves, da dupla Victor e Leo, foi afastado (e suas cenas já gravadas foram sovieticamente cortadas) do “The Voice Kids”, depois de uma acusação de agressão feita pela sua mulher.

Em abril, ocorreu a eliminação de um participante do “Big Brother Brasil” por coação e agressão física à uma colega de programa, logo que uma onda de indignação tomou conta das redes sociais e uma delegada pediu cópia dos vídeos.

Também em abril, a emissora anunciou a suspensão do ator José Mayer, de atuar em programas da casa, após a figurinista Su Tonani acusá-lo de tê-la assediada por muitos meses. O movimento tomou de assalto as redes sociais e a frase “mexeu com uma, mexeu com todas” estampou milhares de camisetas Brasil afora. Foi a versão local precursora do #MeToo americano.

Por último, mas especialmente significativo por mudar de tema, no dia 8 de dezembro o apresentador William Waack foi afastado do Jornal da Globo devido à divulgação de um vídeo, de um ano atrás, em que ele fazia comentários racistas. Entre a divulgação, a explosão do tema na internet e a decisão não se passaram mais do que 12 horas. De nada adiantaram as manifestações de vários colegas do jornalista falando da importância do seu trabalho e que ele nunca tinha sido racista.

Indo para a área cultural, o ano foi particularmente intenso no Brasil. Em setembro, o Santander fechou a exposição “Queermuseu” em Porto Alegre, sob pressão de uma campanha do MBL (Movimento Brasil Livre) que sustentava que a mostra estimulava a pedofilia e a zoofilia. Alguns dias depois um vídeo escandalizou as redes sociais. Mostrava uma criança, acompanhada da mãe, tocando um artista nu que fazia uma performance no Museu de Arte Moderna de São Paulo.

No meio de tanta pressão, o Masp inaugurou sua mostra “Histórias da Sexualidade”, que tinha algumas obras exibidas em Porto Alegre, com proibição para menores de 18 anos. O Ministério Público recorreu e o museu passou a permitir a entrada de menores acompanhados por seus responsáveis.

Como parte de uma mobilização de artistas e intelectuais em defesa das exposições e contra a onda conservadora e repressiva, Paula Lavigne criou o grupo #342artes. Não demorou para lembrarem que ela começou seu relacionamento com Caetano Veloso aos 13 anos de idade. A hashtag #caetanopedófilo explodiu no Twitter e Facebook.

Para finalizar, a filósofa americana Judith Butler foi hostilizada em sua visita ao Brasil por promover a chamada “Ideologia de gênero”, outro inimigo das tribos conservadoras. Qualquer semelhança com a maneira de enxergar a arte e a cultura dos soviéticos é, obviamente, mera coincidência.

Gostemos ou não, este tipo de ativismo veio para ficar. A adesão à causas e movimentos sempre existiu. O que mudou foi o seu poder de mobilização e sua capacidade real de influenciar e impor mudanças na maneira como nos comportamos e relacionamos.

Como todo fenômeno inevitável, turbinado pela tecnologia, temos que aproveitar o seu lado bom e amenizar o seu lado perverso. O lado negativo é a imposição, a censura, a intolerância e a tentativa de enquadrar as relações humanas em compartimentos estanques e previsíveis.

O que começou com um “eu sou assim, quem quiser gostar de mim eu sou assim”. Passou para: eu sou assim e quero respeito. Virou: somos assim e exigimos justiça. Está acabando em: somos assim e odiamos quem é diferente.

Meus votos para que 2018 nos ilumine e reconheçamos que somos singulares e que nossas diferenças só nos fazem melhores.

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O ano que acaba foi pleno de novidades e acontecimentos especiais. Ao seu término é comum procurarmos um fenômeno ou uma síntese que o defina. Candidatos óbvios são a epidemia de fake news e o primeiro ano de governo do destrambelhado Trump.

Minha escolha, porém, para a melhor definição de 2017 é a multiplicação do poder de atuação dos grupos que apoiam interesses específicos, exigem mudanças de atitudes, denunciam malfeitos ou se posicionam ideologicamente em questões políticas ou culturais. Em resumo, são os defensores de causas.

O mundo contemporâneo se horizontalizou. O mundo anterior era hierárquico e ansiava por grandes revoluções. O mundo atual é plano e busca transformações incrementais. Junta pessoas em tribos que sonham e lutam por aspectos que consideram essenciais para a transformação do planeta. É simbólico que a revolução soviética tenha completado 100 anos, este ano, e a efeméride passou praticamente em brancas nuvens. O novo poder é descentralizado e está em múltiplas mãos.

As causas sempre existiram, mas nos últimos tempos multiplicaram-se, tornaram-se mais diversas e foram exponencialmente potencializadas pela internet e pelas redes sociais. São reações que se espalham rapidamente e ganham a força imensa de uma comunicação imediata e permanente.

A questão feminina, nos seus vários aspectos, foi, provavelmente, a mais relevante do ano. Sintomaticamente, já no primeiro trimestre, inaugurou-se em Nova York a estátua da “Fearless Girl”, posicionada em frente ao touro que simboliza a bolsa americana em Wall Street. Está lá ainda. É uma manifestação bela e criativa pelo aumento de participação das mulheres no mercado de trabalho.

Foi, porém, a repulsa e o desmonte de casos rumorosos de assédio sexual que melhor caracteriza o que aconteceu no ano. O caso do produtor de Hollywood, Harvey Weinstein, foi o exemplo mais impressionante pela quantidade de vítimas e pelo fato de ter ficado como um “segredo conhecido” por muito tempo, sem ter sido denunciado.

Como um rastilho de pólvora outros foram acusados e a lista, que continua crescendo, ganhou nomes muito conhecidos como o comediante Louis C. K., Dustin Hoffman e John Lasseter, diretor da Pixar e criador de Toy Story. Casos antigos, como o de Roman Polanski e Woody Allen, foram reciclados. Com a denúncia e afastamento de Kevin Spacey de House of Cards ficou claro que não é só nas interações heterossexuais que o assédio acontece.

A hashtag #MeToo foi criada, em outubro, para simbolizar e agrupar o movimento. Viralizou rapidamente pelo mundo afora. No final do ano a revista Time escolheu como Person of the Year um grupo de mulheres, denominadas de “silence breakers”, que iniciou o #MeToo. O site do movimento comemorou o prêmio com uma provocação: “When you hear #MeToo, would you stand up to say #NoMore?”.

Dois casos anteriores revelaram que inovação tecnológica nem sempre é sinônimo de cultura empresarial avançada. James Dalmore, engenheiro do Google, foi demitido por defender, em um documento, que a desigualdade entre homens e mulheres na indústria de tecnologia é baseada em diferenças biológicas. O uso do código de conduta para justificar sua demissão foi um sinal de que a empresa não tinha uma cultura forte o suficiente para reafirmar a igualdade sem sufocar a discussão.

Outro, foi o episódio da demissão do CEO e fundador do Uber, Travis Kalanick, em meio a muitas denúncias de assédio e da acusação de ser o incentivador de uma cultura organizacional abrasiva e exclusiva. A comunidade de tecnologia americana estava sendo reprovada no seu tão decantado propósito de criar um mundo melhor para todos.

Nesta última semana, a Microsoft anunciou que não vai mais exigir que os seus empregados sejam obrigados a resolver questões de assédio sexual através de arbitragem privada. Estima-se que cerca de 60 milhões de americanos tenham assinado contratos de trabalho que incluíam essa cláusula. Especula-se que contratos assim sejam especialmente usados pelas empresas de tecnologias. O Uber declarou à revista Wired que os seus contratos de trabalho têm essa determinação, mas que, a partir de agora, os funcionários podem optar por não aderir em até 30 dias do início da relação.

Alguma dúvida que esse tsunami vai mudar irresistivelmente e impositivamente a cultura empresarial seja no Vale do Silício ou em Hollywood?

Quatro episódios que envolveram a Rede Globo ilustram bem o que foi o ano na Hollywood brasileira, como bem mostrou Mauricio Stycer, em artigo para a Folha de S.Paulo. Em fevereiro o cantor Victor Chaves, da dupla Victor e Leo, foi afastado (e suas cenas já gravadas foram sovieticamente cortadas) do “The Voice Kids”, depois de uma acusação de agressão feita pela sua mulher.

Em abril, ocorreu a eliminação de um participante do “Big Brother Brasil” por coação e agressão física à uma colega de programa, logo que uma onda de indignação tomou conta das redes sociais e uma delegada pediu cópia dos vídeos.

Também em abril, a emissora anunciou a suspensão do ator José Mayer, de atuar em programas da casa, após a figurinista Su Tonani acusá-lo de tê-la assediada por muitos meses. O movimento tomou de assalto as redes sociais e a frase “mexeu com uma, mexeu com todas” estampou milhares de camisetas Brasil afora. Foi a versão local precursora do #MeToo americano.

Por último, mas especialmente significativo por mudar de tema, no dia 8 de dezembro o apresentador William Waack foi afastado do Jornal da Globo devido à divulgação de um vídeo, de um ano atrás, em que ele fazia comentários racistas. Entre a divulgação, a explosão do tema na internet e a decisão não se passaram mais do que 12 horas. De nada adiantaram as manifestações de vários colegas do jornalista falando da importância do seu trabalho e que ele nunca tinha sido racista.

Indo para a área cultural, o ano foi particularmente intenso no Brasil. Em setembro, o Santander fechou a exposição “Queermuseu” em Porto Alegre, sob pressão de uma campanha do MBL (Movimento Brasil Livre) que sustentava que a mostra estimulava a pedofilia e a zoofilia. Alguns dias depois um vídeo escandalizou as redes sociais. Mostrava uma criança, acompanhada da mãe, tocando um artista nu que fazia uma performance no Museu de Arte Moderna de São Paulo.

No meio de tanta pressão, o Masp inaugurou sua mostra “Histórias da Sexualidade”, que tinha algumas obras exibidas em Porto Alegre, com proibição para menores de 18 anos. O Ministério Público recorreu e o museu passou a permitir a entrada de menores acompanhados por seus responsáveis.

Como parte de uma mobilização de artistas e intelectuais em defesa das exposições e contra a onda conservadora e repressiva, Paula Lavigne criou o grupo #342artes. Não demorou para lembrarem que ela começou seu relacionamento com Caetano Veloso aos 13 anos de idade. A hashtag #caetanopedófilo explodiu no Twitter e Facebook.

Para finalizar, a filósofa americana Judith Butler foi hostilizada em sua visita ao Brasil por promover a chamada “Ideologia de gênero”, outro inimigo das tribos conservadoras. Qualquer semelhança com a maneira de enxergar a arte e a cultura dos soviéticos é, obviamente, mera coincidência.

Gostemos ou não, este tipo de ativismo veio para ficar. A adesão à causas e movimentos sempre existiu. O que mudou foi o seu poder de mobilização e sua capacidade real de influenciar e impor mudanças na maneira como nos comportamos e relacionamos.

Como todo fenômeno inevitável, turbinado pela tecnologia, temos que aproveitar o seu lado bom e amenizar o seu lado perverso. O lado negativo é a imposição, a censura, a intolerância e a tentativa de enquadrar as relações humanas em compartimentos estanques e previsíveis.

O que começou com um “eu sou assim, quem quiser gostar de mim eu sou assim”. Passou para: eu sou assim e quero respeito. Virou: somos assim e exigimos justiça. Está acabando em: somos assim e odiamos quem é diferente.

Meus votos para que 2018 nos ilumine e reconheçamos que somos singulares e que nossas diferenças só nos fazem melhores.

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