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Desafios econômicos dos EUA não são pequenos

Trump consegue ser ainda mais nefasto que Nixon e, por isso, Kamala pode ter alguma chance, apesar das apostas não lhe serem favoráveis

Kamala Harris é cotada como a democrata para concorrer as eleições presidenciais
Kamala Harris é cotada como a democrata para concorrer as eleições presidenciais

Como esperado depois do fatídico debate entre Trump e Biden, este último desistiu da tentativa de se reeleger e abre novo jogo a partir de agora. Com a provável escolha de Kamala Harris para disputar a eleição, a dúvida segue sendo se democratas conseguirão reverter a provável vitória de Trump.  

A atual confusão no Partido Democrata remete a 1968, quando Lyndon Johnson desistiu da tentativa de se reeleger em março daquele ano, o provável candidato, Bob Kennedy, foi assassinado e Hubert Humphrey, vice-presidente de Jonhson, foi para o sacrifício para ser derrotado. Trump consegue ser ainda mais nefasto que Nixon e, por isso, Kamala pode ter alguma chance, apesar das apostas não lhe serem favoráveis. 

Cada vez mais será importante começar a entender o que poderia ser um novo governo Trump. Aparentemente, a ideia será cortar imposto corporativo novamente como se fez em 2017 de 35% para 21%. Em que pese alguns benefícios que se teve da reforma, como mais investimentos domésticos, o resultado líquido foi negativo. Segundo um artigo recente no National Bureau of Economic Research, a reforma não compensou a perda em termos de piora fiscal e crescimento econômico mínimo que se obteve com o plano (Lessons from the biggest business tax cut in US history, de Gabriel Chodorow-Reich, Owen M. Zidar e Eric Zwick). Trump sinaliza que utilizará as tarifas sobre importação como algum tipo de compensação. Já que a guerra tarifária com os chineses será aprofundada, espera-se que algum ganho fiscal se tenha. Mas aqui também os resultados estão longe do desejado. Estudo do Peterson Institute mostra que mesmo um aumento linear de tarifa para 50%, o que já é algo impensável, seria responsável por algo apenas em torno de 40% do imposto de renda. Pior ainda, corte de imposto em conjunto com aumento de tarifa agravaria a desigualdade de renda em níveis históricos. Segundo o mesmo Peterson Institute, um corte de imposto de renda aumentaria a renda do top 1% da população americana em 13,5% ao mesmo tempo que mais tarifas diminuiriam a renda disponível dos 20% mais pobres em 8,5%. Sem falar na perda de crescimento econômico que viria do aumento de tarifa de importação. A loucura de se imaginar trocar o imposto de renda por tarifa de importação fica na conta do folclore e será responsável, se acontecer, por uma piora histórica da desigualdade de renda americana, já elevada diga-se de passagem. 

O problema adicional é que o déficit público americano já está em 7% do PIB e dependerá de aumento de impostos para ser ajustado. Com o envelhecimento da população americana os gastos com saúde e previdência continuarão crescendo. Os gastos mandatórios foram em média 11% do PIB americano entre 1974 e 2023, quase todos em saúde e previdência. Em 2024 eles chegaram a quase 15% do PIB e devem continuar crescendo, segundo o Congress Budget Office (CBO), órgão do Congresso americano responsável pelas previsões fiscais. Os próximos anos também devem ter aumento dos gastos com defesa, dadas as mudanças geopolíticas em curso, o que só aumenta a necessidade de mais impostos. Uma saída seria o imposto verde, cobrado sobre energia fóssil. As estimativas para os EUA apontam a possibilidade de aumento em 1 ponto percentual na carga tributária nos próximos anos. Entretanto, esse assunto é diametralmente oposto aos interesses de Trump se virar presidente, pois sua intenção é estimular a energia fóssil. A política econômica de Trump além de equivocada é velha, por privilegiar combustíveis fósseis em um momento em que claramente há a necessidade de se estimular mais energia renovável.  

Diferentemente da situação fiscal em 2016, que era bem mais confortável, agora o mercado terá menos benevolência com o governo Trump por conta disso. Parte do mercado, especialmente empresarial, gosta da ideia de corte de impostos. Mas boa parte dos economistas veem com apreensão essa política pelos riscos fiscais que representam. A consequência será cada vez mais os EUA passarem por pressão de juros longos como é tão usual de se ver na América Latina. O prêmio de risco cobrado por uma dívida elevada aparecerá em juros mais elevados. No caso americano, as saídas do passado não existem mais (inflação, repressão financeira e forte crescimento econômico no pós-guerra) e os ajustes cada vez mais terão que ser duros. O Brasil é exemplo que mesmo se tentando ajustes via receita será necessário também uma atenção aos gastos. No caso americano, com estrutural fiscal muito mais eficiente que a nossa, não será tão simples cortar despesas.  

Os EUA não conseguiram se transformar em uma sociedade de bem-estar social como a europeia e padece das consequências disso, com piora na qualidade de vida da população mais velha. A expectativa de vida americana tem caído e hoje já está abaixo da chinesa e reverter isso dependerá de gastos que só conseguirão ser financiados com mudanças nos impostos.  

Do ponto de vista político, uma população envelhecida crescentemente desprotegida e uma classe média e baixa com renda disponível menor, ampliando a desigualdade de renda, aumentará o descontentamento e pode levar a mais polarização. Difícil ver a sociedade americana voltando para o centro com a política econômica que está sendo feita. 

*Sergio Vale é economista-chefe da MB Associados e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP