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As ilusões do mundo de Aquarius

Entre outras coisas que o governo Dilma proporcionou ao país, uma parece mais deletéria. A ideia de que os fins justificam os meios, de onde se infere que estourar o gasto público com pretensos objetivos distributivos seria válido em todos momentos. Isso parece permear implicitamente quem deseja a volta da presidente. Acostumados com as ilusórias […]

BOLSA DE VALORES (China Photos/Getty Images)
BOLSA DE VALORES (China Photos/Getty Images)
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Sérgio Vale

Publicado em 30 de agosto de 2016 às, 12h35.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 18h02.

Entre outras coisas que o governo Dilma proporcionou ao país, uma parece mais deletéria. A ideia de que os fins justificam os meios, de onde se infere que estourar o gasto público com pretensos objetivos distributivos seria válido em todos momentos. Isso parece permear implicitamente quem deseja a volta da presidente. Acostumados com as ilusórias benesses do Estado, não se aventaram para o fatídico dia do juízo final do oba-oba fiscal. De pedalada em pedalada, o governo não apenas entregou uma política fiscal em frangalhos, mas a árdua tarefa para o atual governo explicar que muito precisa ser feito e, mais difícil ainda, fazer o que de fato precisa ser feito. Questões básicas de economia deixaram de ser discutidas pela esquerda.

Esse falso Fla-Flu em que questões básicas que deveriam ser perseguidas por qualquer governo são deixadas de lado, permeiam o “fora, Temer” generalizado que se ouve esquerda afora. Há uma visão cega de que, primeiro, há um golpe, o que não é verdade, e, segundo, que tudo o que a suposta direita estaria fazendo é ruim para o país, o que também não é verdade.

Sinal dessa esquizofrenia pode ser vista na celeuma em torno do filme “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho. Desde o Festival de Cannes, em maio, em que a equipe subiu as escadarias do Palais portando cartazes contra o governo recém-empossado, toda alusão ao filme tem sido sobre divergências políticas entre apoiadores de um ou outro lado. Se o filme é bom ou não parece ter se tornado uma questão menor, e se alguém por ventura não gostar, deve ser sinal de algum direitismo atroz encarnado no ser.

O filme em si me remete a um misto do cinema político de Francesco Rosi com os contos morais de Eric Rohmer. Ele começa afrancesado, com os detalhes tão caros a Rohmer, como os cabelos de Clara, a personagem de Sonia Braga, sendo o centro de camadas emocionais na relação entre os personagens. Não há como não lembrar da fixação de Jerome pelos joelhos de Claire em um dos icônicos filmes do francês.

Mas o filme se torna mais italiano, com a especulação imobiliária à la Rosi de “As Mãos sobre a Cidade” tornando-se o centro do filme. Há quase uma conspiração imobiliária contra Clara para que ela saia do prédio onde mora, com uma sequência final inusitada, mas plausível e extremamente criativa.

Mas essa ida de Rohmer a Rosi, da França idílica à Itália politizada à esquerda, parece ser o caminho que esta esquerda tomou nas últimas décadas. A certa altura no começo do filme, um dos personagens alude ao drama pessoal do câncer de Clara em 1979. Mas ali os dramas pareciam ser só isso: pessoais. Só que 1979 para nós economistas nos faz lembrar da piora na economia com as políticas inconsequentes da gestão Delfim Netto, sem falar que a ditadura ainda era presente, ainda que em queda. De certa forma, esse Estado muito presente na economia naquela época, excessivamente paternalista e varguista, era algo que a esquerda aplaudia às escondidas.

Os dramas dos dias atuais no filme parecem ser mais opressivos para Clara. Saíram os detalhes emocionais que valiam a pena observar, entrou a especulação imobiliária, com a sanha de uma construtora fazendo tudo para que a personagem saia de seu prédio. A metáfora da esquerda parece ser essa, de um mundo capitalista que quer destruir um mundo idílico supostamente perdido no passado. Mas o ponto é que esse mundo idílico nunca existiu. O que parecia sonho em 1979, na verdade era um desastre anunciado na economia anos antes com os erros de política econômica. Hoje, com uma situação muito melhor para o geral da sociedade, há uma falsa visão de opressão de uma sociedade capitalista sobre a família brasileira. No caso de Clara, a construtora chega a balançar a relação familiar dela com os filhos.

Uso essa digressão do filme para sintetizar um pouco do drama de como a esquerda deve estar se sentindo. Esse mundo que evoluiu, em que falsas utopias não cabem mais, pressionam emocionalmente a turma que estava acostumada com um mundo que não existia, era apenas ilusão fiscal. Com isso, acabam por idealizar também o monstro capitalista, frio e desumano, ávido apenas por dinheiro e por destruir o alicerce social do que já era falso à princípio. Mas assim como a visão idílica não correspondia à realidade, a visão pretensamente real torna-se uma metáfora enfraquecida da velha esquerda. Neste mundo não parece haver nuances. Apenas o preto no branco, a esquerda contra a direita, sem espaço para diálogo.

No filme, Clara não quer dialogar com a construtora e esta decide tentar tirar a moradora à sua maneira. Símbolo perfeito de como a esquerda pensa que foi tratada, ao não querer diálogo com forças supostamente reacionárias acabaram por ser tiradas do poder à marra. No filme, isso acaba não acontecendo, que seria o sonho dessa Clara/Dilma. Mas na vida real, a visão da esquerda é do sistema capitalista atroz que derrubou os velhos sonhos. Mas o ponto é que o mundo de Clara é como a esquerda vê o mundo, sem necessariamente ser verdade. A especulação imobiliária não leva às atitudes atrozes no seu geral como está no filme, apenas seria de se esperar em comportamentos patológicos. E é isso que a esquerda pensa de todo o capitalismo: uma patologia sem fim, um mal a ser extirpado que Claras/Dilmas poderiam e deveriam combater.

Enquanto a esquerda mantiver essa visão maniqueísta, sem nuances, sem abertura real para diálogos sobre questões básicas de economia como foram os últimos anos, as vitórias de Clara, como no filme, nunca ocorrerão. A realidade infelizmente sempre será maior do que a ficção que um filme permite criar.

SERGIO VALE
SERGIO VALE