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Argentina segue ampliando os desafios

Uma eleição com dois candidatos inadequados para resolver o caos econômico do país resultou na escolha do candidato mais novo para os padrões argentinos

Uma eleição com dois candidatos inadequados para resolver o caos econômico do país resultou na escolha do candidato mais novo para os padrões argentinos (AFP/AFP)
Sergio Vale

Colunista

Publicado em 21 de novembro de 2023 às 13h44.

A tragédia argentina segue em marcha. Uma eleição para lá de difícil, com dois candidatos inadequados para resolver o caos econômico do país, resultou na escolha do candidato mais novo para os padrões argentinos. A comparação com Bolsonaro é imediata, mas Milei tem pontos de atrito talvez mais complexos.

Bolsonaro entregou a gestão para o Congresso e Paulo Guedes. Seu interesse era fazer as lives e falar para seu público. Talvez para a proteção contra um possível impeachment, provavelmente nem pensada como tal, o governo foi entregando aos poucos o poder para o Congresso. Este ampliou uma força que já aparecia na gestão Temer com o orçamento impositivo e os vários tipos de emendas que foram ganhando espaço. Rodrigo Maia e Artur Lira especialmente tiveram um poder que talvez nenhum outro presidente de Câmara tenha tido no passado. Lula vive hoje às voltas com esse parlamento mais forte, que de certa forma se mostrou um equilíbrio em certas áreas, evitando desmonte de propostas que foram aprovadas no passado, mas por outro lado segue uma pressão fiscal vinda do parlamento cada vez mais forte.

Milei terá um Congresso arredio, sem o Centrão brasileiro para negociar, com um peronismo machucado, mas ainda vivo. Há dúvidas sobre a força de impacto de Patricia Bulrich e Mauricio Macri no apoio a Milei no Congresso. Já houve divisão durante a eleição e deverá seguir assim durante o mandato.

O novo governo pode se parecer mais com Collor e El Loco Bucarán, do Equador, dois presidentes cada um a seu modo que enfrentaram de forma equivocada o Congresso e de mostraram despreparados para o cargo. Collor acordou para o erro tarde demais em 1992 e Bucarán foi retirado do poder por insanidade, como mostra o livro de Aníbal Pérez-Liñán, “Presidential Impeachment and the New Political Instability in Latin America.” A Argentina corre o sério risco de MIlei não terminar o mandato.

O novo presidente sinaliza com mudanças que dificilmente ocorrerão. A dolarização não depende apenas de uma decisão econômica, mas é essencialmente política, especialmente em um país não-unitário como a Argentina. Diferentemente do Equador ou outros países que não têm Estados ou Províncias fortes, a Argentina viu historicamente seus entes federados ajudarem a desmontar a política fiscal. Foi assim na última tentativa de dolarização nos anos 90, que acabou em crise política e a fuga de Fernando de La Rua da Casa Rosada. E vale lembrar que foi um peronista, Carlos Menem, com força no Congresso, que implementou isso.

Mas em 63 anos de história fiscal argentina, apenas 6 foram de superávit e os outros de déficits bastante elevados. Mais do que tudo Milei deveria gastar seus primeiros momentos em fazer um forte ajuste fiscal e trazer com isso credibilidade para qualquer ajuste via âncora cambial. Todos esses regimes quebraram no passado por falta de regime fiscal crível e a ideia de que os argentinos repetirão o Plano Real esquece do detalhe que falta a Milei e sobrava a FHC: a política.

O Real foi fruto não apenas de uma decisão econômica, mas de uma articulação política de um ano feita por FHS e chancelada pelo presidente Itamar. A capacidade conciliatória e política de FHC foi essencial para que o Plano desse certo, claro com um conjunto extraordinário de outros atores em diversas frentes, inclusive na jurídica. No livro recentemente divulgado, “A Arte da Política Econômica”, fica claro como a boa construção de leis foi essencial para que o Plano funcionasse. Não parece haver esse tipo de preocupação no caso argentino, especialmente porque também a própria Justiça argentina parece que não será muito colaborativa com o novo governo.

No caso do acordo comercial da União Europeia com o Mercosul, há um claro dilema. Milei quer fazer acordos comerciais, mas sem o Mercosul. Massa talvez colocasse mais empecilhos do que MIlei para o acordo, mas a indisposição mútua entre Milei e Lula coloca em risco o avanço do acordo.

A Argentina segue firme na definição de Simon Kuznets décadas atrás que dizia que existiam quatro tipos de países: os desenvolvidos, os subdesenvolvidos, o Japão e a Argentina. O empobrecimento histórico do país é analisado há muito tempo e um exemplo do que a Argentina deixou de ser pode ser vista no artigo de Filipe Campante e Edward Glaser, “Yet another tale of two cities: Buenos Aires and Chicago”. O grosso da diferença das duas cidades se encontra no capital humano, muito mais desenvolvido em Chicago do que Buenos Aires. Esse baixo capital humano ajuda a explicar parte da instabilidade política que vivemos na América Latina e que no caso argentino é ainda mais significativo dado o que eles já foram um dia.

Nossos vizinhos talvez vão precisar afundar mais na crise para conseguir dar uma solução política mais adequada. Cada vez mais fica claro que a sociedade argentina está descontente com o peronismo, que foi tirado do poder novamente agora, depois de Macri. Mas em nenhum momento isso funcionou e acabou por trazer o peronismo de novo, como também foi o caso de Raul Alfonsin, que teve que entregar o poder de volta para os peronistas, no caso, Menem. A solução política não será fácil e dependerá de uma transformação muito grande a partir de agora das forças peronistas que perderam. Mas como num tango embalado de tristeza, o final feliz para os argentinos parece muito distante.

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A tragédia argentina segue em marcha. Uma eleição para lá de difícil, com dois candidatos inadequados para resolver o caos econômico do país, resultou na escolha do candidato mais novo para os padrões argentinos. A comparação com Bolsonaro é imediata, mas Milei tem pontos de atrito talvez mais complexos.

Bolsonaro entregou a gestão para o Congresso e Paulo Guedes. Seu interesse era fazer as lives e falar para seu público. Talvez para a proteção contra um possível impeachment, provavelmente nem pensada como tal, o governo foi entregando aos poucos o poder para o Congresso. Este ampliou uma força que já aparecia na gestão Temer com o orçamento impositivo e os vários tipos de emendas que foram ganhando espaço. Rodrigo Maia e Artur Lira especialmente tiveram um poder que talvez nenhum outro presidente de Câmara tenha tido no passado. Lula vive hoje às voltas com esse parlamento mais forte, que de certa forma se mostrou um equilíbrio em certas áreas, evitando desmonte de propostas que foram aprovadas no passado, mas por outro lado segue uma pressão fiscal vinda do parlamento cada vez mais forte.

Milei terá um Congresso arredio, sem o Centrão brasileiro para negociar, com um peronismo machucado, mas ainda vivo. Há dúvidas sobre a força de impacto de Patricia Bulrich e Mauricio Macri no apoio a Milei no Congresso. Já houve divisão durante a eleição e deverá seguir assim durante o mandato.

O novo governo pode se parecer mais com Collor e El Loco Bucarán, do Equador, dois presidentes cada um a seu modo que enfrentaram de forma equivocada o Congresso e de mostraram despreparados para o cargo. Collor acordou para o erro tarde demais em 1992 e Bucarán foi retirado do poder por insanidade, como mostra o livro de Aníbal Pérez-Liñán, “Presidential Impeachment and the New Political Instability in Latin America.” A Argentina corre o sério risco de MIlei não terminar o mandato.

O novo presidente sinaliza com mudanças que dificilmente ocorrerão. A dolarização não depende apenas de uma decisão econômica, mas é essencialmente política, especialmente em um país não-unitário como a Argentina. Diferentemente do Equador ou outros países que não têm Estados ou Províncias fortes, a Argentina viu historicamente seus entes federados ajudarem a desmontar a política fiscal. Foi assim na última tentativa de dolarização nos anos 90, que acabou em crise política e a fuga de Fernando de La Rua da Casa Rosada. E vale lembrar que foi um peronista, Carlos Menem, com força no Congresso, que implementou isso.

Mas em 63 anos de história fiscal argentina, apenas 6 foram de superávit e os outros de déficits bastante elevados. Mais do que tudo Milei deveria gastar seus primeiros momentos em fazer um forte ajuste fiscal e trazer com isso credibilidade para qualquer ajuste via âncora cambial. Todos esses regimes quebraram no passado por falta de regime fiscal crível e a ideia de que os argentinos repetirão o Plano Real esquece do detalhe que falta a Milei e sobrava a FHC: a política.

O Real foi fruto não apenas de uma decisão econômica, mas de uma articulação política de um ano feita por FHS e chancelada pelo presidente Itamar. A capacidade conciliatória e política de FHC foi essencial para que o Plano desse certo, claro com um conjunto extraordinário de outros atores em diversas frentes, inclusive na jurídica. No livro recentemente divulgado, “A Arte da Política Econômica”, fica claro como a boa construção de leis foi essencial para que o Plano funcionasse. Não parece haver esse tipo de preocupação no caso argentino, especialmente porque também a própria Justiça argentina parece que não será muito colaborativa com o novo governo.

No caso do acordo comercial da União Europeia com o Mercosul, há um claro dilema. Milei quer fazer acordos comerciais, mas sem o Mercosul. Massa talvez colocasse mais empecilhos do que MIlei para o acordo, mas a indisposição mútua entre Milei e Lula coloca em risco o avanço do acordo.

A Argentina segue firme na definição de Simon Kuznets décadas atrás que dizia que existiam quatro tipos de países: os desenvolvidos, os subdesenvolvidos, o Japão e a Argentina. O empobrecimento histórico do país é analisado há muito tempo e um exemplo do que a Argentina deixou de ser pode ser vista no artigo de Filipe Campante e Edward Glaser, “Yet another tale of two cities: Buenos Aires and Chicago”. O grosso da diferença das duas cidades se encontra no capital humano, muito mais desenvolvido em Chicago do que Buenos Aires. Esse baixo capital humano ajuda a explicar parte da instabilidade política que vivemos na América Latina e que no caso argentino é ainda mais significativo dado o que eles já foram um dia.

Nossos vizinhos talvez vão precisar afundar mais na crise para conseguir dar uma solução política mais adequada. Cada vez mais fica claro que a sociedade argentina está descontente com o peronismo, que foi tirado do poder novamente agora, depois de Macri. Mas em nenhum momento isso funcionou e acabou por trazer o peronismo de novo, como também foi o caso de Raul Alfonsin, que teve que entregar o poder de volta para os peronistas, no caso, Menem. A solução política não será fácil e dependerá de uma transformação muito grande a partir de agora das forças peronistas que perderam. Mas como num tango embalado de tristeza, o final feliz para os argentinos parece muito distante.

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