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Descoordenação entre os poderes

Interromper círculo vicioso da relação entre os poderes é uma tarefa necessária para a Constituição brasileira

STF: Para colunista, ajustes nas regras básicas que orientam a atuação dos poderes constituídos são necessários para o equilíbrio entre os poderes (STF/ Divulgação) (STF/Divulgação)
DR

Da Redação

Publicado em 4 de abril de 2018 às 16h28.

A crise brasileira de governabilidade e a baixíssima capacidade de ganhos de eficiência e eficácia da área pública têm vários fatores. Os mais conhecidos e discutidos têm sido a corrupção – mais pelas distorções alocativas que gera do que pelos valores que são apropriados privadamente -, a ação predatória das corporações incrustadas no Estado, tanto de funcionários públicos como de interesses privados, entre outras. No entanto, um fator pouco destacado é o desalinhamento grave entre as dinâmicas e agendas dos poderes legislativos, executivo e judiciário. Se na teoria de Montesquieu a divisão dos poderes geraria um equilíbrio dinâmico e construtivo, no Brasil a relação entre os poderes parece mais gerar anulações e bloqueios do que harmonia e eficiência.

É verdade que o fato das bases de legitimidade e representação de cada poder serem diferentes geram incentivos e visões distintas sobre os temas públicos. Porém, a disfunção ocorre quando se multiplicam de forma exagerada as áreas de conflitos e antagonismos entre as visões dos poderes, onde avanços logrados por um poder são aniquilados pelo outro.

Talvez um dos casos mais gritantes dessa dinâmica perversa seja no campo da política fiscal. No Brasil prevalece uma idiossincrasia na qual apenas o poder executivo é responsável pelo equilíbrio fiscal e penalizado caso ele não seja logrado. Sem dúvida parte dessa responsabilidade é do executivo, mas nessa tarefa não tem sido amparado pelo legislativo e pelo judiciário, ao contrário. O nó fiscal que hoje reina no país é muito mais derivado das medidas legislativas – e mesmo do judiciário – do que do executivo. Por exemplo, a não aprovação de reformas dos sistemas previdenciários dos funcionários públicos e dos trabalhadores privados – uma bomba relógio que ganha proporções dantescas com o passar o tempo – é primordialmente um problema do legislativo.

A frequência com que o legislativo aprova medidas que incrementam os gastos públicos sem ter a obrigação de indicar de onde devem vir os recursos para suportar esses gastos é escandalosa! Os exemplos são múltiplos: fixação de percentuais de gastos mínimos de setores como saúde e educação sem nenhuma correspondência com ganhos de eficiência e eficácia, regras previdenciárias insustentáveis dos funcionários públicos, concessão de direitos para alguns grupos específicos de beneficiários – transporte gratuito para idosos, meia entrada para estudantes, isenção de impostos para compra de automóveis por portadores de alguma deficiência  – sem identificar origem dos recursos para suportá-los, dentre tantos outros. Diante dessa prática o poder executivo tem poucos recursos.

Nesse campo, o poder judiciário também faz sua parte para dificultar a gestão eficiente dos gastos públicos. Recentemente o STF anulou uma lei apresentada pelo executivo federal – e aprovado pelo legislativo – que revia a política de reajuste dos funcionários públicos federais e cancelou o aumento das suas contribuições previdenciárias. O argumento clássico que predomina na visão míope do poder judiciário sobre o tema é que reajustes salariais são “direito adquirido” dos funcionários públicos, e não uma política de gestão de pessoal do poder executivo. Nessa visão, o “direito” aos reajustes dos funcionários públicos parece não guardar relação com o outro lado da equação que é a arrecadação que flutua conforme a dinâmica da economia. Lewandowski chegou a alegar que como o poder executivo aprovou programa como o REFIS para as empresas, não teria por que não garantir o aumento ao funcionalismo! Uma constatação infantil, se não fosse trágica, e que fere as atribuições dos poderes executivo e legislativo. Não é tarefa do poder executivo discutir o que é prioritário para alocação de recursos públicos. Isso é papel dos poderes eleitos.

A descoordenação entre os poderes também atinge um grau extremo em casos como o da saúde. Apesar da constituição e das leis que a regulamentam indicarem que no Brasil vigora um sistema de saúde universal, integral e gratuito, o orçamento aprovado anualmente pelo poder legislativo é incompatível com essa orientação. Todos os países que dispõe de sistemas semelhantes ao do Brasil reservam entre 9 e 12% do PIB para gastos públicos para essa área. Isso vale para o Reino Unido, Canadá, França, mas também para a Argentina e Chile. No Brasil esse gasto está na casa dos 4% do PIB (outros 5% seguem sendo coberto por gastos privados). Nessas condições não existe forma do poder executivo estar minimamente em dia com as obrigações definidas na constituição e nas leis.

Para piorar esse quadro, o poder judiciário e suas decisões extemporâneas também ajudam a agravar o problema. Em completo desprezo pelas políticas e protocolos desenhados pelos gestores da saúde, seguem sendo aprovados por juízes e desembargadores pedidos de tratamentos médicos fora dos padrões e prioridades das políticas públicas vigentes. Hoje é prática dos poderes executivos federais, estaduais e municipais já preverem em seus respectivos orçamentos uma fatia para cumprir mandatos judiciais, cuja soma em 2017 foi de R$ 7 bilhões. Decisões desconexas desses juízes vão na contramão da racionalização do uso dos recursos públicos, da ideia de priorização e cálculo custo-benefício.

A somatória de desalinhamentos como os ilustrados acima – que se multiplicam em vários outros temas – tornam a gestão dos recursos e das políticas públicas um cipoal no qual as lógicas de racionalização, priorização, eficiência e eficácia não predominam. Nesse ambiente a corrupção é muito mais consequência do que causa dos problemas. Esse ambiente também é perfeito para a atuação predatória das corporações incrustadas na máquina do Estado. Interromper esse círculo vicioso da relação entre os poderes é uma tarefa mais ampla que apenas um bom governante ou um bom grupo de legisladores. Talvez sejam necessários ajustes nas regras básicas que orientam a atuação dos poderes constituídos e isso passe por rever aspectos importantes da constituição brasileira.

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A crise brasileira de governabilidade e a baixíssima capacidade de ganhos de eficiência e eficácia da área pública têm vários fatores. Os mais conhecidos e discutidos têm sido a corrupção – mais pelas distorções alocativas que gera do que pelos valores que são apropriados privadamente -, a ação predatória das corporações incrustadas no Estado, tanto de funcionários públicos como de interesses privados, entre outras. No entanto, um fator pouco destacado é o desalinhamento grave entre as dinâmicas e agendas dos poderes legislativos, executivo e judiciário. Se na teoria de Montesquieu a divisão dos poderes geraria um equilíbrio dinâmico e construtivo, no Brasil a relação entre os poderes parece mais gerar anulações e bloqueios do que harmonia e eficiência.

É verdade que o fato das bases de legitimidade e representação de cada poder serem diferentes geram incentivos e visões distintas sobre os temas públicos. Porém, a disfunção ocorre quando se multiplicam de forma exagerada as áreas de conflitos e antagonismos entre as visões dos poderes, onde avanços logrados por um poder são aniquilados pelo outro.

Talvez um dos casos mais gritantes dessa dinâmica perversa seja no campo da política fiscal. No Brasil prevalece uma idiossincrasia na qual apenas o poder executivo é responsável pelo equilíbrio fiscal e penalizado caso ele não seja logrado. Sem dúvida parte dessa responsabilidade é do executivo, mas nessa tarefa não tem sido amparado pelo legislativo e pelo judiciário, ao contrário. O nó fiscal que hoje reina no país é muito mais derivado das medidas legislativas – e mesmo do judiciário – do que do executivo. Por exemplo, a não aprovação de reformas dos sistemas previdenciários dos funcionários públicos e dos trabalhadores privados – uma bomba relógio que ganha proporções dantescas com o passar o tempo – é primordialmente um problema do legislativo.

A frequência com que o legislativo aprova medidas que incrementam os gastos públicos sem ter a obrigação de indicar de onde devem vir os recursos para suportar esses gastos é escandalosa! Os exemplos são múltiplos: fixação de percentuais de gastos mínimos de setores como saúde e educação sem nenhuma correspondência com ganhos de eficiência e eficácia, regras previdenciárias insustentáveis dos funcionários públicos, concessão de direitos para alguns grupos específicos de beneficiários – transporte gratuito para idosos, meia entrada para estudantes, isenção de impostos para compra de automóveis por portadores de alguma deficiência  – sem identificar origem dos recursos para suportá-los, dentre tantos outros. Diante dessa prática o poder executivo tem poucos recursos.

Nesse campo, o poder judiciário também faz sua parte para dificultar a gestão eficiente dos gastos públicos. Recentemente o STF anulou uma lei apresentada pelo executivo federal – e aprovado pelo legislativo – que revia a política de reajuste dos funcionários públicos federais e cancelou o aumento das suas contribuições previdenciárias. O argumento clássico que predomina na visão míope do poder judiciário sobre o tema é que reajustes salariais são “direito adquirido” dos funcionários públicos, e não uma política de gestão de pessoal do poder executivo. Nessa visão, o “direito” aos reajustes dos funcionários públicos parece não guardar relação com o outro lado da equação que é a arrecadação que flutua conforme a dinâmica da economia. Lewandowski chegou a alegar que como o poder executivo aprovou programa como o REFIS para as empresas, não teria por que não garantir o aumento ao funcionalismo! Uma constatação infantil, se não fosse trágica, e que fere as atribuições dos poderes executivo e legislativo. Não é tarefa do poder executivo discutir o que é prioritário para alocação de recursos públicos. Isso é papel dos poderes eleitos.

A descoordenação entre os poderes também atinge um grau extremo em casos como o da saúde. Apesar da constituição e das leis que a regulamentam indicarem que no Brasil vigora um sistema de saúde universal, integral e gratuito, o orçamento aprovado anualmente pelo poder legislativo é incompatível com essa orientação. Todos os países que dispõe de sistemas semelhantes ao do Brasil reservam entre 9 e 12% do PIB para gastos públicos para essa área. Isso vale para o Reino Unido, Canadá, França, mas também para a Argentina e Chile. No Brasil esse gasto está na casa dos 4% do PIB (outros 5% seguem sendo coberto por gastos privados). Nessas condições não existe forma do poder executivo estar minimamente em dia com as obrigações definidas na constituição e nas leis.

Para piorar esse quadro, o poder judiciário e suas decisões extemporâneas também ajudam a agravar o problema. Em completo desprezo pelas políticas e protocolos desenhados pelos gestores da saúde, seguem sendo aprovados por juízes e desembargadores pedidos de tratamentos médicos fora dos padrões e prioridades das políticas públicas vigentes. Hoje é prática dos poderes executivos federais, estaduais e municipais já preverem em seus respectivos orçamentos uma fatia para cumprir mandatos judiciais, cuja soma em 2017 foi de R$ 7 bilhões. Decisões desconexas desses juízes vão na contramão da racionalização do uso dos recursos públicos, da ideia de priorização e cálculo custo-benefício.

A somatória de desalinhamentos como os ilustrados acima – que se multiplicam em vários outros temas – tornam a gestão dos recursos e das políticas públicas um cipoal no qual as lógicas de racionalização, priorização, eficiência e eficácia não predominam. Nesse ambiente a corrupção é muito mais consequência do que causa dos problemas. Esse ambiente também é perfeito para a atuação predatória das corporações incrustadas na máquina do Estado. Interromper esse círculo vicioso da relação entre os poderes é uma tarefa mais ampla que apenas um bom governante ou um bom grupo de legisladores. Talvez sejam necessários ajustes nas regras básicas que orientam a atuação dos poderes constituídos e isso passe por rever aspectos importantes da constituição brasileira.

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