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EUA dão uma inesperada guinada em direção à decência

Os Estados Unidos passam por uma fase de transformação em cascata. Isso parece bom, mas ainda não sabemos aonde vai nos levar

WOMEN IN BLACK: atrizes vestem preto para protestar contra assédio no cinema e na televisão americanos (Mario Anzuoni/Reuters)
DR

Da Redação

Publicado em 8 de março de 2018 às 11h45.

Última atualização em 12 de março de 2018 às 10h26.

Uma coisa engraçada está acontecendo no cenário americano: um poderoso jorro de decência. Subitamente, é como se os piores estivessem desprovidos de qualquer convicção, enquanto os melhores estão carregados de uma intensidade apaixonada. Nós ainda não sabemos se isso vai se traduzir em mudanças políticas. Mas talvez estejamos no meio de um momento transformativo.

Você consegue perceber a guinada brusca em direção à decência na ascensão do movimento #EuTambém. Em questão de meses terrenos que pareciam estabilizados se mexeram, e poderosos predadores sexuais começaram a encarar consequências que possivelmente encerram carreiras.

Você consegue vê-la nas reações ao massacre na escola de Parkland, na Flórida. Por enquanto, pelo menos, a reação tradicional a assassinatos em massa – um dia ou dois de manchetes, seguido de uma espécie de dar de ombros coletivo da classe política antes de retornar à sua reverência costumeira ao lobby das armas – não está funcionando. Em vez disso, a história está no topo do noticiário, e qualquer vínculo com a Associação Nacional do Rifle está começando a se assemelhar ao veneno político e comercial que sempre deveria ter sido.

Além disso, eu argumentaria que você pode vê-la nas urnas, onde os políticos conservadores linha-dura de distritos confiavelmente republicanos continuam a ser derrotados graças ao crescente ativismo de cidadãos ordinários.

Isso não é o que se esperava; certamente não entre os analistas políticos.

Depois da eleição presidencial de 2016, muitos na imprensa pareciam prontos até demais para presumir que o trumpismo representava a América real, ainda que Hillary Clinton tivesse vencido a disputa no voto popular e, intervenção russa e carta de James Comey à parte, certamente teria ganhado no voto do colégio eleitoral também, não fosse o Grande Escárnio – o tom de troça adotado por inúmeros repórteres e especialistas. Tem havido centenas, se não milhares, de histórias sobre apoiadores de Trump frequentando lanchonetes, propositalmente ilustrando a falta de noção de nossa elite cultural.

Nem mesmo as amplas manifestações anti-Trump pouco antes do dia da posse pareceram mudar a sabedoria convencional. Mas aqueles gorros de gato rosa podem ter representado o início de mudanças sociais e políticas reais.

Os cientistas políticos têm um termo e uma teoria para o que nós estamos vendo com as questões do #EuTambém, das armas e talvez de mais coisas: “cascatas de mudanças de regime”.

Eis como funciona: quando as pessoas enxergam o status quo como imutável, elas tendem a ser passivas, ainda que elas próprias estejam insatisfeitas. De fato, elas podem estar sem vontade de revelar seu descontentamento, ou de admiti-lo totalmente para si mesmas.

Mas, uma vez que elas veem outras pessoas visivelmente assumindo uma posição, elas tanto ganham mais confiança em sua discordância quanto se tornam mais dispostas a agir por ela. E, pelas suas ações, elas podem provocar a mesma resposta em outros, causando uma espécie de reação em cadeia.

Tais cascatas explicam como grandes convulsões políticas podem emergir rapidamente, aparentemente do nada. Exemplos incluem as revoluções que varreram a Europa em 1848, o súbito colapso do comunismo em 1989 e a Primavera Árabe de 2011.

Agora, nada diz que tais cascatas têm de ser positivas, seja nas suas motivações ou nos seus resultados. O período de 2016-2017 claramente representou uma espécie de Primavera da Alt-Right – primavera dos fascistas? – em que supremacistas brancos e antissemitas foram encorajados não só pela eleição de Donald Trump, mas também pela evidência de que havia mais pessoas que pensavam como eles do que qualquer um imaginava, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa.

Enquanto isso, os historiadores têm descrito 1848 como um ponto de virada em que a história de algum modo falhou em virar. No fim das contas os regimes velhos e corruptos continuavam de pé.

Mesmo assim, eu considero a onda de indignação que neste momento está crescendo na América altamente encorajadora. E sim, eu acredito que seja uma onda só. O movimento #EuTambém, a recusa em deixar passar batido o massacre de Parkland, o novo ativismo político dos cidadãos indignados (muitos deles mulheres), todos se originam de uma percepção comum – que não tem a ver somente com ideologia – de que poder demais está nas mãos de homens que são simplesmente más pessoas.

E a Prova Número 1 para essa tese é, sem dúvida, o tuiteiro-chefe do país em pessoa.

Ao mesmo tempo, o que surpreende na reação a essa retaliação crescente não é só sua vileza, mas sua frouxidão. A resposta do presidente Trump ao tiroteio de Parkland – Vamos armar os professores! – não foi apenas estúpida, mas também covarde, uma tentativa de desviar o assunto. E creio que muitas pessoas perceberam isso. Ou então considerem como o Partido Republicano em Missouri respondeu ao indiciamento do governador Eric Greitens, acusado de tentar subornar sua amante com fotos dela nua: pondo a culpa em… George Soros. Não estou inventando isso.

Ou considerem a irresponsabilidade crescente de discursos de luminares da direita como Wayne LaPierre, da NRA (Associação Nacional do Fuzil, na sigla em inglês ). Eles basicamente desistiram de tentar fazer qualquer defesa substancial das ideias deles. Em vez disso, reclamam de socialistas tentando tomar nossa liberdade. É um negócio assustador, mas também é um pouco chorão. É como as pessoas falam quando sabem que estão perdendo a discussão.

De novo, não existe garantia de que as forças da decência vão ganhar. Em particular, o sistema eleitoral americano está de fato deturpado em favor dos republicanos, de modo que os democratas vão precisar ganhar no voto popular por coisa de sete pontos percentuais para levar a Câmara dos Deputados. Mas nós estamos vendo um levante real aqui, e existem muitas razões para acreditar que a mudança está chegando.

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Uma coisa engraçada está acontecendo no cenário americano: um poderoso jorro de decência. Subitamente, é como se os piores estivessem desprovidos de qualquer convicção, enquanto os melhores estão carregados de uma intensidade apaixonada. Nós ainda não sabemos se isso vai se traduzir em mudanças políticas. Mas talvez estejamos no meio de um momento transformativo.

Você consegue perceber a guinada brusca em direção à decência na ascensão do movimento #EuTambém. Em questão de meses terrenos que pareciam estabilizados se mexeram, e poderosos predadores sexuais começaram a encarar consequências que possivelmente encerram carreiras.

Você consegue vê-la nas reações ao massacre na escola de Parkland, na Flórida. Por enquanto, pelo menos, a reação tradicional a assassinatos em massa – um dia ou dois de manchetes, seguido de uma espécie de dar de ombros coletivo da classe política antes de retornar à sua reverência costumeira ao lobby das armas – não está funcionando. Em vez disso, a história está no topo do noticiário, e qualquer vínculo com a Associação Nacional do Rifle está começando a se assemelhar ao veneno político e comercial que sempre deveria ter sido.

Além disso, eu argumentaria que você pode vê-la nas urnas, onde os políticos conservadores linha-dura de distritos confiavelmente republicanos continuam a ser derrotados graças ao crescente ativismo de cidadãos ordinários.

Isso não é o que se esperava; certamente não entre os analistas políticos.

Depois da eleição presidencial de 2016, muitos na imprensa pareciam prontos até demais para presumir que o trumpismo representava a América real, ainda que Hillary Clinton tivesse vencido a disputa no voto popular e, intervenção russa e carta de James Comey à parte, certamente teria ganhado no voto do colégio eleitoral também, não fosse o Grande Escárnio – o tom de troça adotado por inúmeros repórteres e especialistas. Tem havido centenas, se não milhares, de histórias sobre apoiadores de Trump frequentando lanchonetes, propositalmente ilustrando a falta de noção de nossa elite cultural.

Nem mesmo as amplas manifestações anti-Trump pouco antes do dia da posse pareceram mudar a sabedoria convencional. Mas aqueles gorros de gato rosa podem ter representado o início de mudanças sociais e políticas reais.

Os cientistas políticos têm um termo e uma teoria para o que nós estamos vendo com as questões do #EuTambém, das armas e talvez de mais coisas: “cascatas de mudanças de regime”.

Eis como funciona: quando as pessoas enxergam o status quo como imutável, elas tendem a ser passivas, ainda que elas próprias estejam insatisfeitas. De fato, elas podem estar sem vontade de revelar seu descontentamento, ou de admiti-lo totalmente para si mesmas.

Mas, uma vez que elas veem outras pessoas visivelmente assumindo uma posição, elas tanto ganham mais confiança em sua discordância quanto se tornam mais dispostas a agir por ela. E, pelas suas ações, elas podem provocar a mesma resposta em outros, causando uma espécie de reação em cadeia.

Tais cascatas explicam como grandes convulsões políticas podem emergir rapidamente, aparentemente do nada. Exemplos incluem as revoluções que varreram a Europa em 1848, o súbito colapso do comunismo em 1989 e a Primavera Árabe de 2011.

Agora, nada diz que tais cascatas têm de ser positivas, seja nas suas motivações ou nos seus resultados. O período de 2016-2017 claramente representou uma espécie de Primavera da Alt-Right – primavera dos fascistas? – em que supremacistas brancos e antissemitas foram encorajados não só pela eleição de Donald Trump, mas também pela evidência de que havia mais pessoas que pensavam como eles do que qualquer um imaginava, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa.

Enquanto isso, os historiadores têm descrito 1848 como um ponto de virada em que a história de algum modo falhou em virar. No fim das contas os regimes velhos e corruptos continuavam de pé.

Mesmo assim, eu considero a onda de indignação que neste momento está crescendo na América altamente encorajadora. E sim, eu acredito que seja uma onda só. O movimento #EuTambém, a recusa em deixar passar batido o massacre de Parkland, o novo ativismo político dos cidadãos indignados (muitos deles mulheres), todos se originam de uma percepção comum – que não tem a ver somente com ideologia – de que poder demais está nas mãos de homens que são simplesmente más pessoas.

E a Prova Número 1 para essa tese é, sem dúvida, o tuiteiro-chefe do país em pessoa.

Ao mesmo tempo, o que surpreende na reação a essa retaliação crescente não é só sua vileza, mas sua frouxidão. A resposta do presidente Trump ao tiroteio de Parkland – Vamos armar os professores! – não foi apenas estúpida, mas também covarde, uma tentativa de desviar o assunto. E creio que muitas pessoas perceberam isso. Ou então considerem como o Partido Republicano em Missouri respondeu ao indiciamento do governador Eric Greitens, acusado de tentar subornar sua amante com fotos dela nua: pondo a culpa em… George Soros. Não estou inventando isso.

Ou considerem a irresponsabilidade crescente de discursos de luminares da direita como Wayne LaPierre, da NRA (Associação Nacional do Fuzil, na sigla em inglês ). Eles basicamente desistiram de tentar fazer qualquer defesa substancial das ideias deles. Em vez disso, reclamam de socialistas tentando tomar nossa liberdade. É um negócio assustador, mas também é um pouco chorão. É como as pessoas falam quando sabem que estão perdendo a discussão.

De novo, não existe garantia de que as forças da decência vão ganhar. Em particular, o sistema eleitoral americano está de fato deturpado em favor dos republicanos, de modo que os democratas vão precisar ganhar no voto popular por coisa de sete pontos percentuais para levar a Câmara dos Deputados. Mas nós estamos vendo um levante real aqui, e existem muitas razões para acreditar que a mudança está chegando.

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