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Uma falta de noção generalizada sobre tarifas

O que o caso da Harley-Davidson diz sobre o que vem por aí diante da crescente guerra de tarifas entre os Estados Unidos e a União Europeia

HARLEY DAVIDSON: a empresa anunciou nesta semana que vai tirar parte da sua produção dos EUA, após o aumento de tarifas imposto por Trump (Athit Perawongmetha/Reuters)
DR

Da Redação

Publicado em 12 de julho de 2018 às 15h22.

Harley-Davidson, a famosa fabricante de “leitões” — motocicletas de grande porte — ganhou as manchetes nesta semana quando anunciou que iria tirar parte da sua produção dos Estados Unidos diante da crescente guerra de tarifas entre os Estados Unidos e a União Europeia.

E Donald Trump ganhou ainda mais manchetes quando atacou uma empresa para quem ele “tem sido muito bom”, acusando-a de ter “se rendido” à Europa. Assim, ele ameaçou-a de punição: “Eles serão taxados como nunca antes”.

Vejam, em geral eu tendo a desconfiar de análises do noticiário – em particular, mas não somente, das econômicas, que se baseiam demais em uma anedota supostamente reveladora (por exemplo, aquelas baseadas em conversas com apoiadores de Trump durante jantares). E a verdade é que, ainda que a Harley-Davidson possa ser uma espécie de ícone, ela não é um grande ator na economia dos EUA. No fim do ano passado seu segmento de motocicletas empregava em torno de 5 mil pessoas; não é muito em uma economia em que cerca de 250 mil pessoas são contratadas todo dia útil.

Ainda assim, creio que a história da Harley é uma que nos diz muita coisa. É um primeiro exemplo dos incentivos criados pela iminente guerra comercial trumpiana, que vai prejudicar muito mais as empresas e trabalhadores americanos do que o Sr. Trump ou as pessoas à volta dele parecem compreender. É um indicativo da reação histérica que nós podemos esperar da equipe de Trump à medida que o lado negativo das políticas deles começarem a ficar aparentes — histeria que outros países certamente vão ver como evidência da vulnerabilidade fundamental do Sr. Trump.

E o que os supostos especialistas do Sr. Trump têm a dizer sobre a polêmica proporciona uma nova confirmação de que ninguém no governo tem a menor ideia do que está fazendo.

Quanto à tal da guerra comercial: até aqui, nós temos visto apenas os embates iniciais de algo que pode muito bem ficar ainda maior. Ainda assim, o que já aconteceu não é nada insignificante. Os Estados Unidos têm imposto tarifas expressivas sobre o aço e o alumínio, fazendo com que seus preços no mercado interno disparassem para cima; nossos parceiros comerciais, em especial a União Europeia, anunciaram planos de retaliar com tarifas sobre determinados produtos dos EUA.

E a Harley é uma das empresas sentindo uma pressão imediata: ela está pagando mais por matérias-primas, mesmo diante de uma perspectiva de tarifas nos ciclos em que exporta. Quando se leva em conta esta pressão, é perfeitamente natural que a empresa mova parte de sua produção para fora, para lugares em que o aço ainda seja barato e as vendas à Europa não vão enfrentar tarifas.

Ou seja, a movimentação da Harley é exatamente o que alguém esperaria ver dadas as políticas do Sr. Trump e as respostas de outros países.

Mas ainda que seja o que você esperaria ver, e o que eu esperaria ver, aparentemente não é o que o Sr. Trump esperava ver. A visão dele parece ser a de que, uma vez que ele jogou conversa fora com os executivos da empresa e deu aos acionistas dela um grande corte de impostos, a Harley tem uma dívida de fidelidade pessoal com ele e não deveria reagir aos incentivos que as políticas dele criaram. Além disso, ele parece acreditar que tem o direito de botar na mesa punições pessoais a empresas que o desagradam. Estado de direito? O que é isso?

Bem, eu suponho que seja possível que o Sr. Trump vá conseguir, de fato, intimidar a Harley-Davidson até a empresa recuar da ideia de tirar parte de sua produção dos Estados Unidos. Neste momento, porém, não há nenhum sinal disso.

Fora que, de qualquer modo, estamos falando em uma centena de milhares de empregos aqui de cerca de 10 milhões, hoje mantidos por exportações, mas postos em risco pelas políticas de Trump. De modo que, se nós estivermos falando em uma guerra comercial séria, estamos falando em milhares de empregos perdidos em proporções de Harley-Davidson. Nem mesmo o Sr. Trump pode tuitar de raiva o suficiente para fazer alguma diferença significativa em um problema destas proporções.

Sendo assim, o que os economistas do Sr. Trump têm a dizer disso tudo? Uma resposta é: que economistas? Mal sobrou algum no governo. Mas até onde eu sei, Kevin Hassett, diretor do Conselho de Assessores Econômicos, não está fazendo eco aos absurdos de Trump; ele está contribuindo com absurdos completamente diferentes. Em vez de condenar a atitude da Harley, ele declara que ela é irrelevante dado o “volume maciço de atividade na volta para casa” por causa do corte de impostos sobre sociedades.

Seria bom se isso fosse verdade. Mas nós não estamos efetivamente vendo muita “atividade na volta para casa”; estamos vendo manobras contábeis que transferem o patrimônio líquido de subsidiárias no exterior de volta à sede da empresa, mas que em geral não produzem “atividade econômica real alguma”.

Logo, o incidente com a Harley revela a falta de noção generalizada por trás da política econômica típica do governo. Mas ele também revela algo mais: a profunda fragilidade no núcleo do Sr. Trump.

Pense nisso. Imagine que você é Xi Jinping, presidente chinês, que já disse antes a líderes de empresas multinacionais que planeja “bater de volta” contra as tarifas de Trump. Como você se sente vendo o Sr. Trump guinchando de raiva diante de alguns milhares de empregos possivelmente perdidos por causa da retaliação europeia? Certamente o espetáculo o incentiva a adotar uma linha dura: se uma alfinetada tão pequena incomoda tanto o Sr. Trump, há grandes chances de que ele irá piscar quando estiver diante de um confronto real.

Ou seja, o caso Harley, ainda que quantitativamente pequeno, pode nos dizer bastante coisa sobre o que vem por aí. E nada do que ele nos diz é algo bom.

(Este artigo foi publicado originalmente no The New York Times do dia 29 de junho de 2018.)

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Harley-Davidson, a famosa fabricante de “leitões” — motocicletas de grande porte — ganhou as manchetes nesta semana quando anunciou que iria tirar parte da sua produção dos Estados Unidos diante da crescente guerra de tarifas entre os Estados Unidos e a União Europeia.

E Donald Trump ganhou ainda mais manchetes quando atacou uma empresa para quem ele “tem sido muito bom”, acusando-a de ter “se rendido” à Europa. Assim, ele ameaçou-a de punição: “Eles serão taxados como nunca antes”.

Vejam, em geral eu tendo a desconfiar de análises do noticiário – em particular, mas não somente, das econômicas, que se baseiam demais em uma anedota supostamente reveladora (por exemplo, aquelas baseadas em conversas com apoiadores de Trump durante jantares). E a verdade é que, ainda que a Harley-Davidson possa ser uma espécie de ícone, ela não é um grande ator na economia dos EUA. No fim do ano passado seu segmento de motocicletas empregava em torno de 5 mil pessoas; não é muito em uma economia em que cerca de 250 mil pessoas são contratadas todo dia útil.

Ainda assim, creio que a história da Harley é uma que nos diz muita coisa. É um primeiro exemplo dos incentivos criados pela iminente guerra comercial trumpiana, que vai prejudicar muito mais as empresas e trabalhadores americanos do que o Sr. Trump ou as pessoas à volta dele parecem compreender. É um indicativo da reação histérica que nós podemos esperar da equipe de Trump à medida que o lado negativo das políticas deles começarem a ficar aparentes — histeria que outros países certamente vão ver como evidência da vulnerabilidade fundamental do Sr. Trump.

E o que os supostos especialistas do Sr. Trump têm a dizer sobre a polêmica proporciona uma nova confirmação de que ninguém no governo tem a menor ideia do que está fazendo.

Quanto à tal da guerra comercial: até aqui, nós temos visto apenas os embates iniciais de algo que pode muito bem ficar ainda maior. Ainda assim, o que já aconteceu não é nada insignificante. Os Estados Unidos têm imposto tarifas expressivas sobre o aço e o alumínio, fazendo com que seus preços no mercado interno disparassem para cima; nossos parceiros comerciais, em especial a União Europeia, anunciaram planos de retaliar com tarifas sobre determinados produtos dos EUA.

E a Harley é uma das empresas sentindo uma pressão imediata: ela está pagando mais por matérias-primas, mesmo diante de uma perspectiva de tarifas nos ciclos em que exporta. Quando se leva em conta esta pressão, é perfeitamente natural que a empresa mova parte de sua produção para fora, para lugares em que o aço ainda seja barato e as vendas à Europa não vão enfrentar tarifas.

Ou seja, a movimentação da Harley é exatamente o que alguém esperaria ver dadas as políticas do Sr. Trump e as respostas de outros países.

Mas ainda que seja o que você esperaria ver, e o que eu esperaria ver, aparentemente não é o que o Sr. Trump esperava ver. A visão dele parece ser a de que, uma vez que ele jogou conversa fora com os executivos da empresa e deu aos acionistas dela um grande corte de impostos, a Harley tem uma dívida de fidelidade pessoal com ele e não deveria reagir aos incentivos que as políticas dele criaram. Além disso, ele parece acreditar que tem o direito de botar na mesa punições pessoais a empresas que o desagradam. Estado de direito? O que é isso?

Bem, eu suponho que seja possível que o Sr. Trump vá conseguir, de fato, intimidar a Harley-Davidson até a empresa recuar da ideia de tirar parte de sua produção dos Estados Unidos. Neste momento, porém, não há nenhum sinal disso.

Fora que, de qualquer modo, estamos falando em uma centena de milhares de empregos aqui de cerca de 10 milhões, hoje mantidos por exportações, mas postos em risco pelas políticas de Trump. De modo que, se nós estivermos falando em uma guerra comercial séria, estamos falando em milhares de empregos perdidos em proporções de Harley-Davidson. Nem mesmo o Sr. Trump pode tuitar de raiva o suficiente para fazer alguma diferença significativa em um problema destas proporções.

Sendo assim, o que os economistas do Sr. Trump têm a dizer disso tudo? Uma resposta é: que economistas? Mal sobrou algum no governo. Mas até onde eu sei, Kevin Hassett, diretor do Conselho de Assessores Econômicos, não está fazendo eco aos absurdos de Trump; ele está contribuindo com absurdos completamente diferentes. Em vez de condenar a atitude da Harley, ele declara que ela é irrelevante dado o “volume maciço de atividade na volta para casa” por causa do corte de impostos sobre sociedades.

Seria bom se isso fosse verdade. Mas nós não estamos efetivamente vendo muita “atividade na volta para casa”; estamos vendo manobras contábeis que transferem o patrimônio líquido de subsidiárias no exterior de volta à sede da empresa, mas que em geral não produzem “atividade econômica real alguma”.

Logo, o incidente com a Harley revela a falta de noção generalizada por trás da política econômica típica do governo. Mas ele também revela algo mais: a profunda fragilidade no núcleo do Sr. Trump.

Pense nisso. Imagine que você é Xi Jinping, presidente chinês, que já disse antes a líderes de empresas multinacionais que planeja “bater de volta” contra as tarifas de Trump. Como você se sente vendo o Sr. Trump guinchando de raiva diante de alguns milhares de empregos possivelmente perdidos por causa da retaliação europeia? Certamente o espetáculo o incentiva a adotar uma linha dura: se uma alfinetada tão pequena incomoda tanto o Sr. Trump, há grandes chances de que ele irá piscar quando estiver diante de um confronto real.

Ou seja, o caso Harley, ainda que quantitativamente pequeno, pode nos dizer bastante coisa sobre o que vem por aí. E nada do que ele nos diz é algo bom.

(Este artigo foi publicado originalmente no The New York Times do dia 29 de junho de 2018.)

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