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Trump também está abusando de seu poder tributário

O presidente faz repetidas ameaças de impor tarifas proibitivas sobre as importações de automóveis da Europa

DONALD TRUMP: em 2018, o governo anunciou que estava abrindo uma investigação sobre importações de veículos da Europa e do Japão. / (Danny Wild-USA TODAY Sports/Reuters) (Danny Wild-USA TODAY Sports/Reuters)
DONALD TRUMP: em 2018, o governo anunciou que estava abrindo uma investigação sobre importações de veículos da Europa e do Japão. / (Danny Wild-USA TODAY Sports/Reuters) (Danny Wild-USA TODAY Sports/Reuters)
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Paul Krugman

Publicado em 6 de fevereiro de 2020 às, 13h29.

A história é a seguinte: o presidente Trump está abusando de seus poderes no cargo para ameaçar um aliado dos Estados Unidos. A ameaça dele é provavelmente ilegal; a recusa dele em produzir documentos relacionados a seu processo de tomada de decisão é definitivamente ilegal. E as afirmações dele sobre a motivação de suas atitudes não passam no teste de segurar o riso.

É provável que qualquer um pense que estou falando da tentativa de Trump de pressionar a Ucrânia a produzir sujeira política envolvendo Joe Biden, o ex-vice-presidente, ao adiar o envio de auxílio ao país, e a subsequente cobertura – vocês sabem, aquelas coisas que o tornaram alvo de um processo de impeachment (e pelas quais metade do país acredita que deveriam levar ao afastamento dele do cargo). Acontece que há outra história, um tanto parecida: as repetidas ameaças dele de impor tarifas proibitivas sobre as importações de automóveis da Europa.

Admito que a história das taxas sobre carros não é tão vil quanto a da Ucrânia, e apresenta uma ameaça direta muito menor a uma eleição presidencial justa. Mas é reconhecidamente parte de uma mesma síndrome: a do abuso de poder presidencial, desprezo pelo estado de direito e desonestidade quanto às razões.

Algum pano de fundo sobre isso: as tarifas da América – os impostos sobre importações – normalmente são definidas do mesmo jeito que nós definimos outras tarifas, por meio de legislação que precisa passar no Congresso e então ser assinada pelo presidente. A lei, contudo, dá ao presidente autonomia para impor tarifas temporárias mediante certas circunstâncias, como por exemplo, dar às indústrias americanas margem de manobra em um cenário de disparadas súbitas de importações, para contra-atacar subsídios a exportações de outros países ou para proteger a segurança nacional, por meio do artigo 232.

Até o governo Trump, casos envolvendo o artigo 232 eram raros. Contudo, ele tem usado a justificativa da segurança nacional indiscriminadamente, com preocupação zero quanto à plausibilidade. O alumínio canadense é um risco à segurança nacional? Quando?

E foi assim que, em 2018, o governo Trump anunciou que estava abrindo uma investigação, baseada no artigo 232, sobre importações de veículos, em particular os da Europa e do Japão. Todos os especialistas em comércio que eu conheço consideraram absurda a ideia de que os automóveis alemães ou japoneses representem uma ameaça à segurança nacional da América. Mesmo assim, em 2019 um relatório do Departamento do Comércio concluiu que as importações de veículos de fato põem em risco a segurança nacional.

No que se baseou essa conclusão? Bom, não sabemos ao certo — porque o governo Trump está se recusando a divulgar o relatório.

Esta esquiva é claramente ilegal. A lei exige que todos os trechos do relatório do Comércio que não contenham informações classificadas ou sigilosas sejam publicadas no Diário Oficial, e é difícil acreditar que qualquer parte do relatório contenha informações dessa natureza, quanto mais a coisa toda. Além disso, o Congresso inseriu em dezembro uma clásula em uma lei de gastos exigindo especificamente que o governo Trump entregue o relatório.

Por que Trump não quer obedecer a lei e entregar o documento? Meu palpite é que o pessoal dele está com medo de deixar qualquer pessoa ver o relatório do Comércio porque ele é embaraçosamente pequeno e incompetente. Para ser honesto, tenho lá minhas dúvidas até se o tal relatório existe mesmo. Lembrem-se, o Departamento do Comércio é tocado por Wilbur Ross, que os leitores de minha colega Gail Collins elegeram como o pior integrante do gabinete de Trump em 2019; uma distinção e tanto quando se considera toda a competição.

Fora isso, por que é que Trump sequer pretende aplicar tarifas nos carros europeus? É óbvio que não tem nada a ver com a segurança nacional. Mas do que se trata de fato?

Talvez parte da resposta seja que o autodeclarado Homem dos Impostos continue a acreditar que o protecionismo irá reviver a produção americana, ainda que as evidências mostrem que a guerra comercial dele vem tendo o efeito oposto.

Além do mais, parece que Trump tentou usar a ameaça de tarifas automobilísticas para obrigar os países europeus a apoiá-lo em seu confronto com o Irã. Por sinal, isso é uma violação clara 1)da lei americana, que não dá ao presidente autonomia para impor tarifas por razões que não sejam relacionadas à economia, e 2)dos nossos acordos internacionais, que proíbem este tipo de bullying.

E vale lembrar, os países que Trump estava tentando amedrontar estão ou estavam entre os nossos aliados mais importantes, parte da coalizão de democracias que costumávamos chamar de Mundo Livre. Hoje em dia, nossos distantes aliados não podem mais considerar a América um parceiro confiável, seja no comércio ou em qualquer outra coisa. Claro, provavelmente isso não incomoda Trump, que prefere tiranos como Vladimir Putin e Mohammed bin Salman.

Ou seja, como nós deveríamos interpretar a saga das tarifas automobilísticas? Em certo sentido é parte da história maior da guerra comercial de Trump, que vem aumentando os preços para os consumidores americanos, prejudicando as empresas e fazendeiros americanos e barrado investimentos empresariais ao criar incertezas.

Mas essas considerações econômicas, eu diria, são muito menos importantes que os aspectos políticos. O comportamento delinquente de Trump com relação às taxas sobre veículos é parte de um padrão maior de abuso de poder e desdém pelo estado de direito. Em todas as frentes, Trump trata a política americana como uma ferramenta que ele pode empregar como quiser, a serviço de seus interesses, sem precisar da aprovação ou mesmo ciência do Congresso sobre o que ele está fazendo ou o porquê.

Basicamente, o homem na Casa Branca opera com base no princípio absolutista de que o estado é Trump. É um princípio que ninguém que acredita nos ideias americanos deveria aceitar.