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Trump contra a ameaça socialista que não existe

A estratégia de afirmar que qualquer tentativa de fortalecer a rede de proteção social ou limitar a desigualdade nos levará ao totalitarismo se mantém

DINAMARCA: mais renda, expectativa de vida e empreendedorismo que nos Estados Unidos  / Ritzau Scanpix/Mads Claus Rasmussen
DINAMARCA: mais renda, expectativa de vida e empreendedorismo que nos Estados Unidos / Ritzau Scanpix/Mads Claus Rasmussen
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Paul Krugman

Publicado em 25 de fevereiro de 2019 às, 18h30.

Última atualização em 25 de fevereiro de 2019 às, 19h14.

Em 1961, a América encarou o que os conservadores consideravam uma ameaça moral: apelos por um programa nacional de saúde pública para os cidadãos idosos. Em uma tentativa de reverter este destino terrível, a Associação Médica Americana lançou o que chamou de Operação Xícara de Café, uma tentativa pioneira de marketing viral.

Aí vai como ela funcionou: As mulheres de médicos (afinal, era 1961) foram acionadas para chamarem suas amigas e mostrar-lhes uma gravação em que Ronald Reagan explicava que a medicina socializada iria destruir a liberdade americana. Das donas de casa, por sua vez, esperava-se que escrevessem cartas ao Congresso denunciando a ameaça do Medicare.

É óbvio que a estratégia não funcionou: Não só o Medicare passou a existir como se tornou tão popular que hoje em dia os republicanos com frequência (e com mentiras) acusam os democratas de planejar cortes de financiamento para o programa. Ainda assim, a estratégia – afirmar que qualquer tentativa de fortalecer a rede de proteção social ou limitar a desigualdade nos levará ao precipício do totalitarismo – se mantém.

E foi assim que Donald Trump, em seu Discurso à Nação, se desviou brevemente de seus avisos padrão sobre pessoas negras assustadoras para nos alertar sobre a ameaça do socialismo.

O que a equipe do Sr. Trump, ou os conservadores em geral, querem dizer com “socialismo”? A resposta é: depende.

Algumas vezes, quer dizer qualquer tipo de liberalismo econômico. Por isso é que, depois do discurso do presidente, Steven Mnuchin, secretário do Tesouro, aplaudiu a economia de Trump e declarou que “nós não vamos voltar ao socialismo” – ou seja, aparentemente a própria América era um inferno socialista até recentemente, em meados de 2016. Quem poderia imaginar?

Em outras ocasiões, porém, isso quer dizer planejamento central à moda soviética, ou nacionalização da indústria à la Venezuela, não importando a realidade de que literalmente não existe ninguém na vida política americana que defenda coisas assim.

O truque – e a palavra certa aqui é “truque” – é ir e voltar entre esses dois significados bastante diferentes, na esperança de que as pessoas não percebam. Você diz que quer isenção de matrícula escolar? Pense em todas as pessoas que morreram de fome na Ucrânia Soviética! E não, isso não é exagero: Confira o relatório malicioso e estranho sobre socialismo que os economistas de Trump divulgaram no outono passado; é basicamente como eles usam esse argumento.

Ou seja, vamos falar sobre o que de fato está em jogo.

Alguns políticos progressistas dos EUA se descrevem hoje como socialistas, e uma parcela significativa dos eleitores, inclusive a maioria daqueles acima de 30, se diz a favor do socialismo.  Mas nem os políticos ou os eleitores estão implorando pela apropriação dos meios de produção pelo governo. Em vez disso, eles embarcaram na retórica conservadora de descrever como socialista qualquer coisa que controle os excessos da economia de mercado e, na prática, disseram: “bem, nesse caso, eu sou um socialista”.

O que os americanos que apoiam tal “socialismo” querem de fato é o que o resto do mundo chama de social democracia: Uma economia de mercado, mas com as dificuldades mais extremas limitadas por uma rede de proteção social forte e a desigualdade extrema limitada pela taxação progressiva. Eles querem que nós pareçamos com a Dinamarca ou com a Noruega, e não com a Venezuela.

E, caso você não tenha ido lá, os países nórdicos estão longe de serem um inferno. Eles têm um produto interno bruto per capita um pouco maior do que o nosso, mas isso se deve simplesmente ao fato deles tirarem mais férias. Comparados à América, eles têm uma expectativa de vida maior, muito menos pobreza e uma satisfação de vida muito maior em linhas gerais. Ah, sim, eles também têm níveis muito mais altos de empreendedorismo – porque as pessoas estão muito mais dispostas a arriscar abrir um negócio quando sabem que não vão perder seu plano de saúde ou ser catapultadas a uma situação de pobreza humilhante se falharem.

Os economistas do Sr. Trump visivelmente tiveram dificuldade de enquadrar a realidade das sociedades nórdicas no manifesto antissocialista que produziram. Em alguns trechos, eles dizem que os países nórdicos não são socialistas de verdade. Em outros, eles tentam desesperadamente mostrar que, apesar das aparências, os dinamarqueses e suecos estão sofrendo; por exemplo, é caro para eles ter e dirigir uma caminhonete. E eu não estou inventando isso.

E quanto ao abismo que vai do liberalismo ao totalitarismo? Não há absolutamente nenhuma evidência de que exista. O Medicare não destruiu a liberdade. A Rússia stalinista e a China maoísta não cresceram a partir de modelos sociais-democratas. A Venezuela era um petroestado corrupto muito antes de Hugo Chávez assumir o poder. Se existe um caminho para a vassalagem, não consigo pensar em nenhum país que o percorreu.