Exame Logo

Talvez a democracia americana esteja morrendo

É bastante possível que Trump obtenha uma vitória no Colégio Eleitoral graças ao silenciamento amplo do eleitorado

TRUMP: o presidente vem ensaiando uma reabertura da economia americana. / Twitter/ Reprodução
DR

Da Redação

Publicado em 23 de abril de 2020 às 13h41.

Se você ainda não está apavorado pela Covid-19 e com as consequências econômicas dela, você não está prestando atenção.

Ainda que o distanciamento social possa estar desacelerando a propagação da doença, mais dezenas de milhares de americanos certamente vão morrer nos próximos meses (e os números oficiais com certeza minimizam a contagem de corpos verdadeira). E o lockdown econômico necessário para se conseguir o distanciamento social – como eu venho dizendo, a economia está no equivalente de um coma induzido por medicamentos – está levando a quase 17 milhões de novos pedidos de seguro-desemprego ao longo das últimas três semanas, o que de novo é quase com certeza uma subavaliação dos verdadeiros postos de trabalho perdidos.

No entanto, a notícia mais assustadora da última semana não envolveu epidemiologia nem economia; foi uma paródia de eleição em Wisconsin, onde a Suprema Corte exigiu que uma votação presencial continuasse apesar dos riscos à saúde e de muitas pessoas que pediram para votar pelo correio nunca terem recebido as cédulas.

Por que isso foi tão assustador? Porque mostra que a América que nós conhecemos pode não sobreviver muito mais tempo. A pandemia vai acabar em algum momento; a economia vai se recuperar alguma hora. Já a democracia, uma vez perdida, talvez nunca mais volte. E nós estamos mais próximos de perder nossa democracia do que a maioria das pessoas imagina.

Para ter uma ideia de como uma democracia contemporânea pode morrer, olhem os acontecimentos na Europa, em particular na Hungria, ao longo da última década.

O que houve na Hungria, que teve início em 2011, foi que o Fidesz, o partido supremacista branco que governa o país, se aproveitou de sua posição para manipular o sistema eleitoral, tornando seu governo de fato permanente. Depois disso a sigla consolidou seu controle, usando seu poder político para recompensar empresas aliadas ao mesmo tempo em que punia seus críticos, e avançando para silenciar a imprensa independente.

Até recentemente, parecia que Viktor Orban, o ditador de fato da Hungria, poderia parar em um autoritarismo brando, governando um regime que mantivesse algumas das formas visíveis de democracia, neutralizando e punindo a oposição sem tornar as críticas a ele efetivamente ilegais. Agora, porém, este governo está usando o coronavírus de desculpa para abandonar até mesmo a fachada de governo constitucional, dando a Orban o poder de governar por decreto.

Quem disser que algo parecido não pode acontecer aqui é ingênuo além da conta. Na prática, isso já vem acontecendo aqui, em particular nos Estados. O Wisconsin, especialmente, está bastante adiantado no sentido de se tornar a Hungria do Lago Michigan, à medida que os republicanos buscam um controle permanente do poder.

A história até aqui: Em 2018, o eleitorado do Wisconsin votou em grande parte a favor do controle democrata. Os eleitores escolheram um governador democrata, além de sinalizarem 53% do apoio aos candidatos democratas à Assembleia estadual. Porém, o Estado está fraudado de tal maneira que, apesar da maioria do voto popular, os democratas só obtiveram 36% dos assentos da Assembleia.

Fora isso, longe de tentar chegar a algum acordo com o governador eleito, os republicanos agiram para na prática castrá-lo, reduzindo drasticamente os poderes de seu governo.

E aí veio a eleição da terça-feira passada. Em outros tempos a maioria das atenções estaria focada nas primárias democratas – embora isso tenha se tornado algo menor depois que Bernie Sanders suspendeu a campanha dele. Porém, também estava em jogo uma vaga à Corte Suprema do Estado.

No entanto, Wisconsin, como a maioria do país, tem um decreto para ficar em casa. Logo, por que os parlamentares republicanos, com o eventual apoio dos indicados republicanos à Corte Suprema dos EUA, insistem em realizar eleições como se esta fosse uma situação normal?

A resposta é que o fechamento do Estado teve um impacto muito mais severo na votação das zonas urbanas (em que a tendência é o voto democrata), onde uma grande maioria de locais de votação estava fechada, do que em zonas rurais ou periféricas. Ou seja, o Partido Republicano no Estado estava explorando uma pandemia de modo descarado para atrapalhar aqueles que provavelmente votariam contra os republicanos.

O que nós vimos em Wisconsin, para resumir, foi um partido estadual fazendo tudo ao seu alcance para se firmar no poder mesmo que uma maioria de eleitores quisesse ele fora – sem esquecer de um bloco partidarizado na Corte Suprema americana que apoiou os esforços deles. Donald Trump, para não variar, falou em voz alta o trecho sussurrado: Se nós ampliarmos a votação mais cedo e pelo correio, “vocês nunca mais vão conseguir eleger um republicano neste país”.

Alguém duvida de verdade que algo parecido possa ocorrer, muito em breve, em escala nacional?

Em novembro próximo, é bastante possível que Trump obtenha uma vitória no Colégio Eleitoral graças ao silenciamento amplo do eleitorado. Caso ele consiga – ou mesmo se ele ganhar jogando limpo -, tudo que nós vimos até aqui sugere que ele vai usar um segundo mandato para punir todo mundo que ele considere um inimigo interno, e que o partido dele irá apoiá-lo incondicionalmente. Ou seja, a América vai dar uma de Hungria.

E se Trump perder? Vocês já sabem o que ele vai fazer: Afirmar que a vitória de Joe Biden foi baseada em fraude eleitoral, que milhões de imigrantes ilegais puderam votar ou coisa do tipo. E será que o Partido Republicano, e talvez mais importante, será que a Fox News, apoiaria a recusa dele em aceitar a realidade? O que vocês acham?

Ou seja, por isso o que acaba de acontecer em Wisconsin me assusta mais do que qualquer doença ou depressão. Afinal, isto mostra que um dos nossos dois principais partidos não acredita em democracia. O estado absoluto pode estar logo ali.

Veja também

Se você ainda não está apavorado pela Covid-19 e com as consequências econômicas dela, você não está prestando atenção.

Ainda que o distanciamento social possa estar desacelerando a propagação da doença, mais dezenas de milhares de americanos certamente vão morrer nos próximos meses (e os números oficiais com certeza minimizam a contagem de corpos verdadeira). E o lockdown econômico necessário para se conseguir o distanciamento social – como eu venho dizendo, a economia está no equivalente de um coma induzido por medicamentos – está levando a quase 17 milhões de novos pedidos de seguro-desemprego ao longo das últimas três semanas, o que de novo é quase com certeza uma subavaliação dos verdadeiros postos de trabalho perdidos.

No entanto, a notícia mais assustadora da última semana não envolveu epidemiologia nem economia; foi uma paródia de eleição em Wisconsin, onde a Suprema Corte exigiu que uma votação presencial continuasse apesar dos riscos à saúde e de muitas pessoas que pediram para votar pelo correio nunca terem recebido as cédulas.

Por que isso foi tão assustador? Porque mostra que a América que nós conhecemos pode não sobreviver muito mais tempo. A pandemia vai acabar em algum momento; a economia vai se recuperar alguma hora. Já a democracia, uma vez perdida, talvez nunca mais volte. E nós estamos mais próximos de perder nossa democracia do que a maioria das pessoas imagina.

Para ter uma ideia de como uma democracia contemporânea pode morrer, olhem os acontecimentos na Europa, em particular na Hungria, ao longo da última década.

O que houve na Hungria, que teve início em 2011, foi que o Fidesz, o partido supremacista branco que governa o país, se aproveitou de sua posição para manipular o sistema eleitoral, tornando seu governo de fato permanente. Depois disso a sigla consolidou seu controle, usando seu poder político para recompensar empresas aliadas ao mesmo tempo em que punia seus críticos, e avançando para silenciar a imprensa independente.

Até recentemente, parecia que Viktor Orban, o ditador de fato da Hungria, poderia parar em um autoritarismo brando, governando um regime que mantivesse algumas das formas visíveis de democracia, neutralizando e punindo a oposição sem tornar as críticas a ele efetivamente ilegais. Agora, porém, este governo está usando o coronavírus de desculpa para abandonar até mesmo a fachada de governo constitucional, dando a Orban o poder de governar por decreto.

Quem disser que algo parecido não pode acontecer aqui é ingênuo além da conta. Na prática, isso já vem acontecendo aqui, em particular nos Estados. O Wisconsin, especialmente, está bastante adiantado no sentido de se tornar a Hungria do Lago Michigan, à medida que os republicanos buscam um controle permanente do poder.

A história até aqui: Em 2018, o eleitorado do Wisconsin votou em grande parte a favor do controle democrata. Os eleitores escolheram um governador democrata, além de sinalizarem 53% do apoio aos candidatos democratas à Assembleia estadual. Porém, o Estado está fraudado de tal maneira que, apesar da maioria do voto popular, os democratas só obtiveram 36% dos assentos da Assembleia.

Fora isso, longe de tentar chegar a algum acordo com o governador eleito, os republicanos agiram para na prática castrá-lo, reduzindo drasticamente os poderes de seu governo.

E aí veio a eleição da terça-feira passada. Em outros tempos a maioria das atenções estaria focada nas primárias democratas – embora isso tenha se tornado algo menor depois que Bernie Sanders suspendeu a campanha dele. Porém, também estava em jogo uma vaga à Corte Suprema do Estado.

No entanto, Wisconsin, como a maioria do país, tem um decreto para ficar em casa. Logo, por que os parlamentares republicanos, com o eventual apoio dos indicados republicanos à Corte Suprema dos EUA, insistem em realizar eleições como se esta fosse uma situação normal?

A resposta é que o fechamento do Estado teve um impacto muito mais severo na votação das zonas urbanas (em que a tendência é o voto democrata), onde uma grande maioria de locais de votação estava fechada, do que em zonas rurais ou periféricas. Ou seja, o Partido Republicano no Estado estava explorando uma pandemia de modo descarado para atrapalhar aqueles que provavelmente votariam contra os republicanos.

O que nós vimos em Wisconsin, para resumir, foi um partido estadual fazendo tudo ao seu alcance para se firmar no poder mesmo que uma maioria de eleitores quisesse ele fora – sem esquecer de um bloco partidarizado na Corte Suprema americana que apoiou os esforços deles. Donald Trump, para não variar, falou em voz alta o trecho sussurrado: Se nós ampliarmos a votação mais cedo e pelo correio, “vocês nunca mais vão conseguir eleger um republicano neste país”.

Alguém duvida de verdade que algo parecido possa ocorrer, muito em breve, em escala nacional?

Em novembro próximo, é bastante possível que Trump obtenha uma vitória no Colégio Eleitoral graças ao silenciamento amplo do eleitorado. Caso ele consiga – ou mesmo se ele ganhar jogando limpo -, tudo que nós vimos até aqui sugere que ele vai usar um segundo mandato para punir todo mundo que ele considere um inimigo interno, e que o partido dele irá apoiá-lo incondicionalmente. Ou seja, a América vai dar uma de Hungria.

E se Trump perder? Vocês já sabem o que ele vai fazer: Afirmar que a vitória de Joe Biden foi baseada em fraude eleitoral, que milhões de imigrantes ilegais puderam votar ou coisa do tipo. E será que o Partido Republicano, e talvez mais importante, será que a Fox News, apoiaria a recusa dele em aceitar a realidade? O que vocês acham?

Ou seja, por isso o que acaba de acontecer em Wisconsin me assusta mais do que qualquer doença ou depressão. Afinal, isto mostra que um dos nossos dois principais partidos não acredita em democracia. O estado absoluto pode estar logo ali.

Acompanhe tudo sobre:Exame Hoje

Mais lidas

exame no whatsapp

Receba as noticias da Exame no seu WhatsApp

Inscreva-se