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Que diferença faz a escolha dos democratas dos EUA?

Na prática, qualquer democrata provavelmente governaria com um aumento de impostos sobre os ricos e uma expansão da rede de proteção social da América

EUA: ainda não há definição sobre quem será o democrata que disputará a Casa Branca com Trump.  / REUTERS/Sarah Silbiger (Sarah Silbiger/Reuters)
EUA: ainda não há definição sobre quem será o democrata que disputará a Casa Branca com Trump. / REUTERS/Sarah Silbiger (Sarah Silbiger/Reuters)
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Paul Krugman

Publicado em 19 de fevereiro de 2020 às, 14h29.

Última atualização em 19 de fevereiro de 2020 às, 19h08.

A essa altura, o indicado democrata para disputar a presidência dos EUA ainda é um mistério. Não só ainda é incerto quem é o escolhido; também há dúvidas se ele ou ela será alguém de centro como Joe Biden ou Amy Klobuchar, ou um representante da esquerda do partido como Bernie Sanders ou Elizabeth Warren. Ganhe quem ganhar, haverá muita choradeira e ranger de dentes do outro lado.

Assim, eu gostaria de oferecer uma opinião que provavelmente vai irritar muita gente: em termos de políticas econômicas reais, provavelmente não faz muita diferença quem os democratas escolham – desde que ela ou ela vença, e que os democratas também ganhem o Senado.

Se você é um centrista preocupado com os gigantescos aumentos de gastos que Sanders vem propondo, acalme-se, porque eles não vão acontecer. Se você é um progressista preocupado porque acha que Biden talvez governe como um republicano, você também deveria se acalmar, porque ele não faria isso.

Na prática, qualquer democrata provavelmente governaria com um aumento significativo de impostos sobre os ricos e uma expansão substancial, mas não enorme, da rede de proteção social da América. Em caso de vitória democrata na disputa presidencial, é quase certo que uma versão muito melhor do Obamacare seria implementada; já no caso do Medicare for All não há tanta certeza. Em caso de vitória democrata, a Previdência Social e o Medicare seriam protegidos e ampliados; cortes à la Paul Ryan não seriam sequer cogitados.

Por que eu digo isso? Primeiro, considerem as lições dos três anos de presidente Trump.

Em 2016, Trump concorreu como “um tipo diferente de republicano”, prometendo que, ao contrário de outros candidatos, ele não acabaria com programas sociais ou cortaria impostos dos ricos. E era tudo mentira. À parte a guerra comercial promovida por ele, as políticas econômicas de Trump têm sido a ortodoxia de direita básica: cortes de impostos enormes para empresas e gente rica, e esforços para cortar o acesso a serviços públicos de saúde para dezenas de milhões de americanos. Além disso, mais recentemente ele vem falando em possíveis cortes na Previdência Social e no Medicare.

O ponto é que, ainda que Trump inspire uma subserviência pessoal humilhante nos integrantes de seu partido, ele ainda não causou nenhuma mudança significativa em suas prioridades de políticas econômicas.

Claro, o Partido Democrata é muito diferente do Republicano – o Democrata é uma coalizão informal de grupos de interesses, e não uma entidade monolítica que responde a meia dúzia  de bilionários aliados de nacionalistas brancos. Mas, acima de tudo, é justamente isso que torna ainda mais difícil para um presidente democrata guiar o partido para muito longe de seu centro de gravidade político, hoje voltado a um progressismo político.

Ainda não está nem um pouco claro quem sairá por cima das primárias, mas é o suficiente para se pensar no que aconteceria se qualquer um dos dois líderes atuais, Bernie Sanders ou Joe Biden, se tornasse presidente – e caso tenham costas largas o bastante para produzir um Senado democrata, já que, caso contrário, nada vai acontecer.

Sanders tem uma pauta bastante ambiciosa; o Medicare for All é só parte dela. Pagar essa pauta é que seria difícil – não, a Teoria Monetária Contemporânea não conseguiria se livrar dos limites fiscais. De modo que transformar a visão de Sanders em realidade exigiria enormes aumentos de impostos, não só dos ricos, mas da classe média; sem esses aumentos de impostos, seria uma visão altamente inflacionária.

Mas não há com o que se preocupar: isso não vai acontecer. Mesmo que ele ganhasse a disputa pela Casa Branca, Sanders teria de lidar com um Congresso (e um público americano) consideravelmente menos radical do que ele, e teria de se ver obrigado a aceitar uma agenda progressiva mais modesta.

É verdade que os entusiastas de Sanders acreditam que podem reunir uma maioria oculta de americanos em torno de uma pauta agressivamente populista, e ao fazê-lo forçariam o Congresso a acompanhá-los. Mas as eleições de meio de mandato de 2018 na América foram um teste: os progressistas lançaram uma série de candidatos em distritos eleitorais de Trump, e mesmo se só um deles tivesse vencido, eles veriam ali razões para sua fé em um populismo transformativo. Acontece que ninguém ganhou: a ampla vitória democrata veio inteiramente como resultado dos moderados que disputaram campanhas convencionais.

A leitura padrão deste revés progressista é que ele desperta dúvidas sobre a elegibilidade de Sanders. Mas ele também tem uma consequência muito diferente: Moderados preocupados com uma presidência radical deveriam esfriar a cabeça. Um presidente Sanders não seria particularmente radical na prática.

E quanto a Joe Biden? A campanha de Sanders tem dito que Biden apoiou os planos do parlamentar republicano Paul Ryan de cortes agressivos na Previdência Social e no Medicare; esta afirmação é falsa. O que é verdade é que Biden já foi uma Pessoa Bastante Séria no passado, e esteve disposto a abraçar o consenso na alta cúpula do governo de que nós precisamos de “ajustes”, um eufemismo para cortes no mínimo modestos na Previdência Social. (Na verdade, se você voltar bastante atrás, Sanders também já disse coisas parecidas.)

Mas o Partido Democrata como um todo tem se colocado à esquerda nestes temas, e Biden tem acompanhado esta movimentação. Ainda que ele continue a ter desejos de grávida de fechar um Grande Acordo com os republicanos – o que eu duvido -, ele sofreria uma repercussão intrapartidária tão grande que seria obrigado a recuar.

Portanto, em termos de política econômica, eis o que eu acho que acontece em caso de vitória de Bernie Sanders; nós veremos uma significativa, mas não gigante, expansão da rede de proteção social da América, bancada por novos e significativos impostos sobre os ricos.

Por outro lado, se Joe Biden ganhar, nós veremos uma significativa, mas não gigante, expansão da rede de proteção social da América, bancada por novos e significativos impostos sobre os ricos.

Uma consequência disso, se eu estiver certo, é que a elegibilidade devia ter um papel de bastante peso na escolha do seu candidato. Faz toda diferença um democrata ganhar, mas não muita qual deles.

Enfim, meu ponto principal é que os democratas deveriam se unir, de modo entusiasmado, no apoio a quem quer que ganhe a disputa pela indicação. Qualquer moderado tentado a se tornar o tipo Fora Bernie devia entender que, ainda que você considere Sanders radical demais, as políticas econômicas dele seriam muito mais equilibradas. Qualquer entusiasta de Sanders tentado a se tornar o tipo Bernie-ou-morte devia entender que hoje em dia até mesmo os democratas de centro são bastante progressistas, e que há uma enorme distância entre eles e o Partido Republicano de Trump.

Ah, e também que todos os democratas acreditam em democracia e estado de direito, algo até que importante esses dias.