Quando o ultraje perde a força
A política tributária estadunidense funciona hoje como o pagamento de executivos norte-americanos
Publicado em 11 de dezembro de 2019 às, 13h41.
Enquanto escrevia uma coluna recente sobre como o governo Trump tem recorrido ao capitalismo de compadres para assegurar sua vantagem política nos Estados Unidos, me peguei pensando sobre um assunto aparentemente não relacionado: a remuneração dos executivos americanos, e por que ela cresceu de cerca de 20 vezes o salário médio na década de 60 para mais de 200 vezes nos dias de hoje.
Como vêm destacando as pessoas que estudaram o caso, não é particularmente difícil entender por que os CEOs do século 21 são tão bem pagos, e por que o salário deles não parece estar ligado ao desempenho. Afinal, esta remuneração é decidida por comitês que, na prática, os próprios executivos-chefe escolheram. É natural que tais comitês decidam que o homem (quase sempre é um homem) a quem se reportam precisa ser fartamente recompensado por sua contribuição singular.
A pergunta, em vez disso, passou a ser por que o salário do executivo americano médio costumava ser muito mais modesto. A resposta, com base nas análises que eu achei mais convincentes, foi que logo nas primeiras décadas depois da Segunda Guerra Mundial os contracheques corporativos eram submetidos a uma assim chamada barreira do ultraje: um CEO que parecesse muito ganancioso teria de lidar com a reação dos sindicatos, dos políticos contrários à ele e da imprensa.
O que aconteceu depois da década de 70 ou por volta deste período foi que essa barreira do ultraje foi aos poucos desaparecendo. A autonegociação dos CEOs sempre foi possível, mas as regras implícitas impunham um freio a ela. Até que pararam de impor.
O que nos traz à corrupção da política que eu descrevi naquele artigo.
Muito antes, na década de 30, o presidente Franklin D. Roosevelt promulgou leis que tiraram os detalhes da criação de impostos das mãos do Congresso, onde interesses particulares historicamente têm desempenhado um papel destrutivo. Em vez disso, o presidente passaria a negociar os acordos comerciais, e o Congresso votaria ou vetaria o pacote todo. Todos entenderam, porém, que este sistema carecia de alguma flexibilidade. De modo que o poder Executivo foi autorizado a impor tarifas temporárias de acordo com determinados critérios – altas súbitas de importações, ameaças à segurança nacional etc.
Porém, quem é que iria determinar quando esses critérios se aplicariam? As pessoas que se reportavam ao presidente. Ou seja, sempre houve potencial para o abuso: para a aplicação espúria de tarifas e concessão de isenções que prejudicassem os adversários políticos do presidente e recompensassem os aliados dele. O que deixava esse tipo de coisa sob controle era a expectativa de que o abuso descarado do processo criaria ultraje – e de fato a política comercial americana foi bastante clara ao longo de várias gerações.
Ainda é possível ver pálidos ecos daquela antiga barreira do ultraje. Mesmo na era Trump, as isenções de tarifas para oligarcas ligados ao presidente da Rússia, Vladimir Putin, parecem ter ido um pouco longe demais. Mas, de modo geral, o presidente Trump, ao contrário de outros presidentes, tem o apoio de um partido que parece não ver e não ouvir maldade em nada, não importa o que ele faça. Assim, ele é livre para impor tarifas com base em critérios obviamente espúrios – bloquear as importações do Canadá em nome da segurança nacional da América? Sério mesmo? Além disso, ele também está livre para conceder isenções por meio de um processo que qualquer um sabe que é altamente politizado.
De modo que a política tributária americana – e, provavelmente, as contratações federais – funciona hoje como o pagamento de executivos americanos. A possibilidade de autonegociação e corrupção esteve sempre ali, mas era mantida sob controle por regras implícitas. Agora, a lealdade partidária cega botou esses bloqueios abaixo.
Entendam assim: um partido que tem apoiado Trump quando ele pede ou extorque ajuda política de potências exteriores não vai se rebelar contra abusos dele na definição da política tributária. É uma ucranização de tudo, e no fim das contas é uma história que diz muito mais sobre o Partido Republicano do que sobre o próprio Trump.