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Por que o negacionismo viral lembra o climático

A resposta da direita americana ao Covid-19 tem sido quase idêntica à resposta da direita às mudanças climáticas

TRUMP: em 2012, o político tuitou que “o conceito de aquecimento global foi criado pelos chineses para tornar a produção americana não-competitiva”. / (Danny Wild-USA TODAY Sports/Reuters)
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Da Redação

Publicado em 22 de abril de 2020 às 16h00.

Última atualização em 22 de abril de 2020 às 17h02.

Permitam que eu resuma a visão do governo Trump e da imprensa americana de direita sobre o coronavírus : ele é uma farsa, ou, ainda que não seja, não é tudo isso. Além do mais, tentar fazer qualquer coisa a respeito do vírus poderia arrebentar a economia. E a culpa é da China, motivo pelo qual nós deveríamos chamar isso de “vírus chinês”.

Ah sim, além de tudo os epidemiologistas que projetam a propagação futura do vírus têm sofrido ataques constantes, acusados de fazerem parte de um complô do “estado subterrâneo” contra o presidente Trump, ou talvez só contra o livre mercado.

Isso já dá uma noção de como nós estamos revivendo episódios anteriores? Pois deveria. Afinal, é muito parecido com a linha da direita no quesito mudanças climáticas. Eis o que Trump tuitou em 2012: “O conceito de aquecimento global foi criado pelos chineses para tornar a produção americana não-competitiva”. Está tudo ali: Isto é uma farsa, não fazer algo a respeito vai destruir a economia, e vamos botar a culpa na China.

Fora isso, epidemiologistas surpresos de ver seus melhores esforços científicos denunciados como uma fraude com motivações políticas deviam ter imaginado que isso aconteceria. Afinal, aconteceu exatamente a mesma coisa com os cientistas do clima, que há décadas têm lidado com assédios constantes.

Logo, a resposta da direita americana ao Covid-19 tem sido quase idêntica à resposta da direita às mudanças climáticas, ainda que em uma escala de tempo muito mais acelerada. Mas o que está por trás deste tipo de negacionismo?

Bem, recentemente eu publiquei um livro sobre o predomínio, em nossa política econômica, de “ideias zumbi” – ideias comprovadamente erradas por uma fartura de evidências e que deviam estar mortas, mas que de alguma maneira continuam voltando, devorando os miolos das pessoas. A ideia zumbi que mais prevalece na política econômica americana atual é a insistência de que os cortes de impostos para os ricos geram milagres econômicos, e que de fato se pagam, mas a ideia zumbi mais inconsequente, aquela que representa uma ameaça existencial, é o negacionismo das mudanças climáticas. E o Covid-19 trouxe de volta toda a patota zumbi.

Mas por que exatamente a direita vem tratando uma pandemia do mesmo modo que trata cortes de impostos e mudanças climáticas?

A força que costuma manter as ideias zumbi se arrastando por aí é o próprio interesse financeiro declarado. Louvores às virtudes dos cortes de impostos recebem mais ou menos recursos diretos dos bilionários que se beneficiam desses cortes. O negacionismo climático é uma indústria apoiada quase que inteiramente pelos interesses do setor de combustíveis fósseis. Como disse Upton Sinclair, escritor americano célebre por seu romance-denúcnia de 1906 “A Selva”, “é difícil fazer um homem entender alguma coisa quando o salário dele depende de não entender essa coisa”.

Porém, fica menos óbvio quem ganha ao minimizar os perigos de uma pandemia. Entre outras coisas, a escala de tempo está enormemente comprimida comparada à das mudanças climáticas. As consequências do aquecimento global vão levar muitos anos para se fazerem sentir, o que dá aos interessados dos combustíveis fósseis bastante tempo para pegar seu dinheiro e fugir, mas nós já estamos vendo consequências catastróficas do negacionismo do coronavírus em algumas poucas semanas.

É verdade que pode haver alguns bilionários que acham que negar a crise vai trazer vantagens financeiras para eles. Pouco antes de Trump fazer seu assustador anúncio sobre reabrir as lojas do país até a Páscoa, ele teve uma videoconferência com um grupo de gestores financeiros, que podem ter dito a ele que acabar com o distanciamento social seria bom para o mercado. A ideia é insana, mas não se deve subestimar a cobiça dessas pessoas. Lembrem-se que o executivo-chefe da Blackstone, Steven A. Schwarzman, um dos participantes daquela conferência, já comparou propostas que dariam fim às brechas tributárias com a invasão da Polônia por Hitler.

Fora isso, bilionários nos Estados Unidos têm se saído muito bem com os cortes de impostos de Trump, e podem temer que o prejuízo econômico do coronavírus talvez cause a derrota de Trump na eleição de 2020, e com isso gere aumentos de impostos para gente como eles.

Mas eu suspeito que a resposta desastrosa ao Covid-19 tenha sido moldada muito menos por interesse próprio do que por dois fatores indiretos em que a política de pandemia se liga à prevalência geral de ideias zumbis no pensamento de direita.

Primeiro, quando se tem um movimento político constituído quase totalmente em torno de garantias que qualquer especialista pode dizer que são falsas, é preciso cultivar uma atitude de desdém quanto ao próprio conhecimento, e isso transborda para quase todo o resto. Quando você desconsidera gente que olha para as evidências dos efeitos dos cortes de impostos e dos efeitos das emissões de gases do efeito estufa, você já está condicionado para desconsiderar as pessoas que olham para as evidências que tratam da transmissão de doenças.

Isso também ajuda a explicar o peso central dos conservadores religiosos anticientíficos no conservadorismo moderno, que tem desempenhado um papel importante em como Trump está respondendo à crise.

Segundo, os conservadores americanos têm de fato uma crença: a saber, que há um tipo desgraçado de efeito aureóla (de propagação) em torno das políticas econômicas bem-sucedidas do governo. Caso a intervenção pública seja eficaz em uma área, eles temem – e provavelmente estão certos – que os eleitores enxerguem de modo mais favorável intervenções estatais em outros setores. Em princípio, medidas de saúde pública para limitar a propagação do coronavírus não precisariam ter um impacto tão grande no futuro de programas sociais como o Medicaid. Na prática, o primeiro fator tende a aumentar o apoio ao segundo.

Como resultado, a direita geralmente é contra intervenções do governo americano mesmo quando elas servem claramente ao interesse público e não têm nada a ver com redistribuição de renda, só porque eles não querem que os eleitores vejam o governo fazendo bem alguma coisa.

No limite, assim como muita coisa que envolve Trump, a horripilância do homem na Casa Branca não diz tudo o que está por trás da terrível política econômica. Claro que ele é ignorante, incompetente, vingativo e desprovido de qualquer empatia. Mas os fracassos dele na política econômica da pandemia estão na conta tanto do movimento  que ele serve quanto ao despreparo pessoal de Trump.

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Permitam que eu resuma a visão do governo Trump e da imprensa americana de direita sobre o coronavírus : ele é uma farsa, ou, ainda que não seja, não é tudo isso. Além do mais, tentar fazer qualquer coisa a respeito do vírus poderia arrebentar a economia. E a culpa é da China, motivo pelo qual nós deveríamos chamar isso de “vírus chinês”.

Ah sim, além de tudo os epidemiologistas que projetam a propagação futura do vírus têm sofrido ataques constantes, acusados de fazerem parte de um complô do “estado subterrâneo” contra o presidente Trump, ou talvez só contra o livre mercado.

Isso já dá uma noção de como nós estamos revivendo episódios anteriores? Pois deveria. Afinal, é muito parecido com a linha da direita no quesito mudanças climáticas. Eis o que Trump tuitou em 2012: “O conceito de aquecimento global foi criado pelos chineses para tornar a produção americana não-competitiva”. Está tudo ali: Isto é uma farsa, não fazer algo a respeito vai destruir a economia, e vamos botar a culpa na China.

Fora isso, epidemiologistas surpresos de ver seus melhores esforços científicos denunciados como uma fraude com motivações políticas deviam ter imaginado que isso aconteceria. Afinal, aconteceu exatamente a mesma coisa com os cientistas do clima, que há décadas têm lidado com assédios constantes.

Logo, a resposta da direita americana ao Covid-19 tem sido quase idêntica à resposta da direita às mudanças climáticas, ainda que em uma escala de tempo muito mais acelerada. Mas o que está por trás deste tipo de negacionismo?

Bem, recentemente eu publiquei um livro sobre o predomínio, em nossa política econômica, de “ideias zumbi” – ideias comprovadamente erradas por uma fartura de evidências e que deviam estar mortas, mas que de alguma maneira continuam voltando, devorando os miolos das pessoas. A ideia zumbi que mais prevalece na política econômica americana atual é a insistência de que os cortes de impostos para os ricos geram milagres econômicos, e que de fato se pagam, mas a ideia zumbi mais inconsequente, aquela que representa uma ameaça existencial, é o negacionismo das mudanças climáticas. E o Covid-19 trouxe de volta toda a patota zumbi.

Mas por que exatamente a direita vem tratando uma pandemia do mesmo modo que trata cortes de impostos e mudanças climáticas?

A força que costuma manter as ideias zumbi se arrastando por aí é o próprio interesse financeiro declarado. Louvores às virtudes dos cortes de impostos recebem mais ou menos recursos diretos dos bilionários que se beneficiam desses cortes. O negacionismo climático é uma indústria apoiada quase que inteiramente pelos interesses do setor de combustíveis fósseis. Como disse Upton Sinclair, escritor americano célebre por seu romance-denúcnia de 1906 “A Selva”, “é difícil fazer um homem entender alguma coisa quando o salário dele depende de não entender essa coisa”.

Porém, fica menos óbvio quem ganha ao minimizar os perigos de uma pandemia. Entre outras coisas, a escala de tempo está enormemente comprimida comparada à das mudanças climáticas. As consequências do aquecimento global vão levar muitos anos para se fazerem sentir, o que dá aos interessados dos combustíveis fósseis bastante tempo para pegar seu dinheiro e fugir, mas nós já estamos vendo consequências catastróficas do negacionismo do coronavírus em algumas poucas semanas.

É verdade que pode haver alguns bilionários que acham que negar a crise vai trazer vantagens financeiras para eles. Pouco antes de Trump fazer seu assustador anúncio sobre reabrir as lojas do país até a Páscoa, ele teve uma videoconferência com um grupo de gestores financeiros, que podem ter dito a ele que acabar com o distanciamento social seria bom para o mercado. A ideia é insana, mas não se deve subestimar a cobiça dessas pessoas. Lembrem-se que o executivo-chefe da Blackstone, Steven A. Schwarzman, um dos participantes daquela conferência, já comparou propostas que dariam fim às brechas tributárias com a invasão da Polônia por Hitler.

Fora isso, bilionários nos Estados Unidos têm se saído muito bem com os cortes de impostos de Trump, e podem temer que o prejuízo econômico do coronavírus talvez cause a derrota de Trump na eleição de 2020, e com isso gere aumentos de impostos para gente como eles.

Mas eu suspeito que a resposta desastrosa ao Covid-19 tenha sido moldada muito menos por interesse próprio do que por dois fatores indiretos em que a política de pandemia se liga à prevalência geral de ideias zumbis no pensamento de direita.

Primeiro, quando se tem um movimento político constituído quase totalmente em torno de garantias que qualquer especialista pode dizer que são falsas, é preciso cultivar uma atitude de desdém quanto ao próprio conhecimento, e isso transborda para quase todo o resto. Quando você desconsidera gente que olha para as evidências dos efeitos dos cortes de impostos e dos efeitos das emissões de gases do efeito estufa, você já está condicionado para desconsiderar as pessoas que olham para as evidências que tratam da transmissão de doenças.

Isso também ajuda a explicar o peso central dos conservadores religiosos anticientíficos no conservadorismo moderno, que tem desempenhado um papel importante em como Trump está respondendo à crise.

Segundo, os conservadores americanos têm de fato uma crença: a saber, que há um tipo desgraçado de efeito aureóla (de propagação) em torno das políticas econômicas bem-sucedidas do governo. Caso a intervenção pública seja eficaz em uma área, eles temem – e provavelmente estão certos – que os eleitores enxerguem de modo mais favorável intervenções estatais em outros setores. Em princípio, medidas de saúde pública para limitar a propagação do coronavírus não precisariam ter um impacto tão grande no futuro de programas sociais como o Medicaid. Na prática, o primeiro fator tende a aumentar o apoio ao segundo.

Como resultado, a direita geralmente é contra intervenções do governo americano mesmo quando elas servem claramente ao interesse público e não têm nada a ver com redistribuição de renda, só porque eles não querem que os eleitores vejam o governo fazendo bem alguma coisa.

No limite, assim como muita coisa que envolve Trump, a horripilância do homem na Casa Branca não diz tudo o que está por trás da terrível política econômica. Claro que ele é ignorante, incompetente, vingativo e desprovido de qualquer empatia. Mas os fracassos dele na política econômica da pandemia estão na conta tanto do movimento  que ele serve quanto ao despreparo pessoal de Trump.

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