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Observações de uma República de Manteiga 

Há duas lições que a Dinamarca pode nos ensinar: uma história promissora sobre globalização, e outra também promissora sobre as possibilidade de se criar uma sociedade decente

DINAMARCA: país conseguiu conciliar vida agrícola com industrial RITZAU SCANPIX/Bax Lindhardt via REUTERS /
DR

Da Redação

Publicado em 14 de agosto de 2018 às 10h24.

Eu ainda estou de férias, e atualmente na Dinamarca – na verdade, acabo de pedalar de Copenhague até Helsingor (também conhecida como Elsinore). Lamento dizer, mas eu sou um nerd tão medroso que, em vez de pensar em Shakespeare, meus pensamentos se voltaram para a economia. Pois a história da Dinamarca é, diria eu, de interesse considerável para o resto de nós.

Para deixar claro, eu não sou em sentido algum um especialista na economia dinamarquesa, seja a atual ou a do passado. Eu só sei o que li e consigo buscar de banco de dados prontamente disponíveis. Ou seja, isso tem a ver na verdade com usar a Dinamarca como um espelho para apontar para o resto do mundo. Mas é um espelho interessante (e muito melhor de se pensar a respeito do que os ultrajes em casa). Há, em particular, duas lições que eu acredito que a Dinamarca pode nos ensinar: uma história promissora sobre globalização, e outra também promissora sobre as possibilidade de se criar uma sociedade decente.

Abençoados sejam os fazedores de queijo

Como um solícito espectador aponta em “Monty Python – A Vida de Brian”, a chamada é uma metáfora, e não deve ser interpretada literalmente: A bênção se estende a todos os fabricantes de produtos lácteos. A bênção certamente funcionou no caso da Dinamarca.

Durante a criação da primeira economia global, aquela tornada possível pelas estradas, navios a vapor e telégrafos, o mundo pareceu se bifurcar entre os países industriais e os produtores agrícolas que os atendiam. E os países agrícolas, ainda que tivessem inicialmente enriquecido – como a Argentina -, aparentemente acabaram ficando com a pior parte do negócio, se transformando em repúblicas de bananas aleijadas econômica e politicamente por seu papel.

Contudo, a Dinamarca não se tornou uma república de bananas, mas uma república de manteiga. Navios a vapor e separadores de creme movidos a vapor permitiram à Dinamarca se tornar uma grande exportadora de manteiga (e carne de porco) à Inglaterra, o que por sua vez levou a uma prosperidade impressionante às vésperas da Primeira Guerra Mundial.

Um ponto interessante sobre essa onda de exportação é que de certo modo ela era de produção de valor agregado, como as exportações de economias desenvolvidas contemporâneas que dependem de insumos importados – com a exceção de que, no caso da Dinamarca, foram importações de ração animal da América do Norte que ajudaram a oferecer uma vantagem crucial.

A boa notícia foi que esta orientação agrícola não se mostrou um beco sem saída. Em vez disso, ela estabeleceu as bases de um desempenho excelente no longo prazo. E no caso da Dinamarca, a globalização parece ter sido um fator de equalização, tanto na política quanto na economia: Em vez de estimular a dominação pelas empresas estrangeiras ou os donos de terra locais, ela levou à predominância de cooperativas rurais.

Por que a história dinamarquesa foi tão feliz? Os dinamarqueses podem ter tido a sorte de o produto ao qual se voltaram ter revelado uma vantagem comparativa. Além disso, como os países asiáticos que lideraram a primeira onda de crescimento dos países desenvolvidos modernos, eles entraram na globalização com uma população bastante educada para os padrões mundiais.

Enfim, eu não estou empurrando uma lição universal de que a globalização seja boa para todo mundo, e sim o contrário. O ponto é que os resultados dependem dos detalhes. Um país pode produzir produtos agrícolas, ser “dependente” de acordo com maioria das definições, e ainda assim usar isso como base de uma elevação permanente ao primeiro mundo.

E no mundo de hoje, a Dinamarca consegue ser bastante aberta ao comércio global, ao mesmo tempo em que tem níveis muito baixos de desigualdade tanto antes quanto depois da redistribuição. A globalização não precisa entrar em conflito com a justiça social. E por falar nisso…

Os não-horrores do “socialismo”

Várias pessoas na direita americana, e alguns centristas autodeclarados, parecem totalmente abismados com a ascensão de políticos que se dizem socialistas. Mas esta ascensão era previsível, e foi prevista.

Eis o que aconteceu: durante décadas a direita tentou calar qualquer tentativa de aparar algumas das arestas mais pontudas do capitalismo, fossem elas garantias de cobertura de saúde, complementos de renda ou qualquer outra coisa, gritando “socialismo”. Mais cedo ou mais tarde as pessoas iriam passar a dizer que, se toda tentativa de tornar nosso sistema menos bruto é socialismo, bom, então elas são socialistas.

A verdade é que dificilmente há alguma pessoa nos Estados Unidos que queira que o governo se aproprie dos meios de produção, ou mesmo do alto comando da economia. O que elas querem é social democracia – os tipos de garantias básicas de saúde público e proteção contra a pobreza que quase todos os outros países desenvolvidos oferecem.

A Dinamarca, em que os cupons fiscais são 46% do produto interno bruto, comparada aos 26% dos Estados Unidos, é possivelmente o país mais social-democrata do mundo. Segundo a doutrina conservadora, a combinação de impostos elevados e auxílio aos “tomadores” destrói incentivos tanto para criar empregos quanto para aceitá-los.

Logo, a Dinamarca deve sofrer com o desemprego em massa, certo?

Na verdade, os adultos dinamarqueses têm mais chances de conseguir emprego do que seus pares americanos. Eles trabalham com jornadas um pouco menores, embora isso bem possa ser uma opção para melhorar o bem-estar social.

Mas o que a Dinamarca mostra é que você pode ter um estado de bem-estar social muito mais generosamente do que nós temos – muito além dos sonhos mais ousados dos progressistas americanos – e ainda assim ter uma economia altamente bem-sucedida.

De fato, embora o PIB per capita na Dinamarca seja menor que nos Estados Unidos – basicamente por causa da jornada de trabalho menor -, a satisfação com a vida é notavelmente maior.

Macrotrapalhadas

Apesar de todas essas coisas boas, definitivamente há algo de podre – ok, talvez só com um cheiro um pouco esquisito – no estado da Dinamarca. Embora o desempenho no longo prazo tenha sido ótimo, a Dinamarca não tem se saído tão bem desde a crise financeira de 2008, com o PIB per capita real caindo substantivamente, e depois levando um tempo bastante longo para se recuperar. Em especial, a Dinamarca tem ficado bem atrás da Suécia.

Não há mistério sobre esse subdesempenho recente. A Dinamarca não está usando o euro, mas, ao contrário da Suécia, ela atrelou a moeda do país ao euro. Assim, ela compartilhou dos problemas da zona do euro.

Deixando de lado o problema geral dos regimes cambiais, este é um lembrete de que a microeconomia – coisas como os efeitos de se incentivar um estado de bem-estar social robusto – é diferente da macroeconomia. Você pode fazer grandes coisas no campo micro e ainda destrambelhar sua política monetária.

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Eu ainda estou de férias, e atualmente na Dinamarca – na verdade, acabo de pedalar de Copenhague até Helsingor (também conhecida como Elsinore). Lamento dizer, mas eu sou um nerd tão medroso que, em vez de pensar em Shakespeare, meus pensamentos se voltaram para a economia. Pois a história da Dinamarca é, diria eu, de interesse considerável para o resto de nós.

Para deixar claro, eu não sou em sentido algum um especialista na economia dinamarquesa, seja a atual ou a do passado. Eu só sei o que li e consigo buscar de banco de dados prontamente disponíveis. Ou seja, isso tem a ver na verdade com usar a Dinamarca como um espelho para apontar para o resto do mundo. Mas é um espelho interessante (e muito melhor de se pensar a respeito do que os ultrajes em casa). Há, em particular, duas lições que eu acredito que a Dinamarca pode nos ensinar: uma história promissora sobre globalização, e outra também promissora sobre as possibilidade de se criar uma sociedade decente.

Abençoados sejam os fazedores de queijo

Como um solícito espectador aponta em “Monty Python – A Vida de Brian”, a chamada é uma metáfora, e não deve ser interpretada literalmente: A bênção se estende a todos os fabricantes de produtos lácteos. A bênção certamente funcionou no caso da Dinamarca.

Durante a criação da primeira economia global, aquela tornada possível pelas estradas, navios a vapor e telégrafos, o mundo pareceu se bifurcar entre os países industriais e os produtores agrícolas que os atendiam. E os países agrícolas, ainda que tivessem inicialmente enriquecido – como a Argentina -, aparentemente acabaram ficando com a pior parte do negócio, se transformando em repúblicas de bananas aleijadas econômica e politicamente por seu papel.

Contudo, a Dinamarca não se tornou uma república de bananas, mas uma república de manteiga. Navios a vapor e separadores de creme movidos a vapor permitiram à Dinamarca se tornar uma grande exportadora de manteiga (e carne de porco) à Inglaterra, o que por sua vez levou a uma prosperidade impressionante às vésperas da Primeira Guerra Mundial.

Um ponto interessante sobre essa onda de exportação é que de certo modo ela era de produção de valor agregado, como as exportações de economias desenvolvidas contemporâneas que dependem de insumos importados – com a exceção de que, no caso da Dinamarca, foram importações de ração animal da América do Norte que ajudaram a oferecer uma vantagem crucial.

A boa notícia foi que esta orientação agrícola não se mostrou um beco sem saída. Em vez disso, ela estabeleceu as bases de um desempenho excelente no longo prazo. E no caso da Dinamarca, a globalização parece ter sido um fator de equalização, tanto na política quanto na economia: Em vez de estimular a dominação pelas empresas estrangeiras ou os donos de terra locais, ela levou à predominância de cooperativas rurais.

Por que a história dinamarquesa foi tão feliz? Os dinamarqueses podem ter tido a sorte de o produto ao qual se voltaram ter revelado uma vantagem comparativa. Além disso, como os países asiáticos que lideraram a primeira onda de crescimento dos países desenvolvidos modernos, eles entraram na globalização com uma população bastante educada para os padrões mundiais.

Enfim, eu não estou empurrando uma lição universal de que a globalização seja boa para todo mundo, e sim o contrário. O ponto é que os resultados dependem dos detalhes. Um país pode produzir produtos agrícolas, ser “dependente” de acordo com maioria das definições, e ainda assim usar isso como base de uma elevação permanente ao primeiro mundo.

E no mundo de hoje, a Dinamarca consegue ser bastante aberta ao comércio global, ao mesmo tempo em que tem níveis muito baixos de desigualdade tanto antes quanto depois da redistribuição. A globalização não precisa entrar em conflito com a justiça social. E por falar nisso…

Os não-horrores do “socialismo”

Várias pessoas na direita americana, e alguns centristas autodeclarados, parecem totalmente abismados com a ascensão de políticos que se dizem socialistas. Mas esta ascensão era previsível, e foi prevista.

Eis o que aconteceu: durante décadas a direita tentou calar qualquer tentativa de aparar algumas das arestas mais pontudas do capitalismo, fossem elas garantias de cobertura de saúde, complementos de renda ou qualquer outra coisa, gritando “socialismo”. Mais cedo ou mais tarde as pessoas iriam passar a dizer que, se toda tentativa de tornar nosso sistema menos bruto é socialismo, bom, então elas são socialistas.

A verdade é que dificilmente há alguma pessoa nos Estados Unidos que queira que o governo se aproprie dos meios de produção, ou mesmo do alto comando da economia. O que elas querem é social democracia – os tipos de garantias básicas de saúde público e proteção contra a pobreza que quase todos os outros países desenvolvidos oferecem.

A Dinamarca, em que os cupons fiscais são 46% do produto interno bruto, comparada aos 26% dos Estados Unidos, é possivelmente o país mais social-democrata do mundo. Segundo a doutrina conservadora, a combinação de impostos elevados e auxílio aos “tomadores” destrói incentivos tanto para criar empregos quanto para aceitá-los.

Logo, a Dinamarca deve sofrer com o desemprego em massa, certo?

Na verdade, os adultos dinamarqueses têm mais chances de conseguir emprego do que seus pares americanos. Eles trabalham com jornadas um pouco menores, embora isso bem possa ser uma opção para melhorar o bem-estar social.

Mas o que a Dinamarca mostra é que você pode ter um estado de bem-estar social muito mais generosamente do que nós temos – muito além dos sonhos mais ousados dos progressistas americanos – e ainda assim ter uma economia altamente bem-sucedida.

De fato, embora o PIB per capita na Dinamarca seja menor que nos Estados Unidos – basicamente por causa da jornada de trabalho menor -, a satisfação com a vida é notavelmente maior.

Macrotrapalhadas

Apesar de todas essas coisas boas, definitivamente há algo de podre – ok, talvez só com um cheiro um pouco esquisito – no estado da Dinamarca. Embora o desempenho no longo prazo tenha sido ótimo, a Dinamarca não tem se saído tão bem desde a crise financeira de 2008, com o PIB per capita real caindo substantivamente, e depois levando um tempo bastante longo para se recuperar. Em especial, a Dinamarca tem ficado bem atrás da Suécia.

Não há mistério sobre esse subdesempenho recente. A Dinamarca não está usando o euro, mas, ao contrário da Suécia, ela atrelou a moeda do país ao euro. Assim, ela compartilhou dos problemas da zona do euro.

Deixando de lado o problema geral dos regimes cambiais, este é um lembrete de que a microeconomia – coisas como os efeitos de se incentivar um estado de bem-estar social robusto – é diferente da macroeconomia. Você pode fazer grandes coisas no campo micro e ainda destrambelhar sua política monetária.

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