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O sistema de comércio global está em risco

Enquanto a guerra comercial escala rapidamente, Donald Trump continua a inventar dados sobre a política econômica dos EUA

Logo da GM no Salão de Detroit (Jeff Kowalsky/Reuters)
Logo da GM no Salão de Detroit (Jeff Kowalsky/Reuters)
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Paul Krugman

Publicado em 10 de julho de 2018 às, 13h45.

Diz a lenda que o príncipe Grigory Potemkin, um dos ministros de Catarina, a Grande (e seu amante), transmitiu a ela uma falsa impressão de prosperidade quando a imperatriz percorreu a Ucrânia. Supostamente ele fez isso criando vilarejos falsos, ou possivelmente apenas fachadas de prédios, ao longo do trajeto dela, desmantelando-os logo após ela passar, depois montando-os de novo mais à frente na estrada.

Provavelmente não há muito de verdade na história – entre outras coisas, Catarina era esperta e cabeça-dura demais para ser enganada tão facilmente -, mas não faz diferença. A lenda de Potemkin se tornou um sinônimo para a ideia geral de embelezar a realidade para agradar um soberano tirânico. Além do mais, ela parece bastante relevante para algumas das “notícias” econômicas vindas do governo Trump nos último dias.

Só para deixar claro, a economia dos EUA ainda está se saindo muito bem de um modo geral, continuando a longa expansão que teve início no primeiro mandato do presidente Obama. Aqueles de nós que achávamos que a economia seria afetada pela incerteza política estiveram errados até aqui.

Mas as iniciativas políticas reais do Sr. Trump não estão se saindo muito bem. O corte de impostos dele não está produzindo a alta prometida no investimento das empresas, sem falar nos ganhos salariais prometidos; tudo que ela conseguiu de fato foi levar a um bocado de recompra de ações. Como reflexo desta realidade, o corte tributário está se tornando menos popular com o tempo.

Além disso, a fase inicial da guerra comercial que deveria ser “boa e fácil de ganhar” não está gerando os tipos de manchetes que o Sr. Trump queria. Em vez disso, nós estamos ouvindo falar sobre a produção migrando para o exterior, tanto para escapar das tarifas dos EUA sobre insumos importados quanto da retaliação estrangeira contra produtos americanos. Vale ler a apresentação da General Motors ao Departamento de Comércio, pressionando por uma reconsideração de uma política de tarifas que “arrisca prejudicar a competitividade da GM contra produtores de automóveis no exterior” e que “será prejudicial à força industrial e prontidão futura das operações de manufatura nos Estados Unidos”. Em outras palavras: “Você não entende de cadeias de fornecimento globais, seu idiota?”

Para dizer a verdade, eu estou neste momento só esperando ouvir que a GM é na realidade uma empresa democrata coligada com o estado subterrâneo.

Enquanto isso, como o governo está respondendo? Inventando coisas.

Claro, inventar coisas é de fato o procedimento operacional padrão destes caras. Estamos falando de um governo que está arrancando crianças de seus pais e colocando-as em jaulas em resposta a uma onda de crimes violentos por imigrantes que, veja você, não existe. A política comercial em si tem sido conduzida por afirmações sobre as enormes taxas que os produtos dos EUA enfrentam, vamos dizer, da União Europeia – taxas que, do mesmo modo que a onda de crime imigrante, não existem de fato.

Mas estas são ficções negativas, histórias sobre infrações dos outros. Quando se trata das próprias políticas econômicas do Sr. Trump, em comparação, é tudo um conto de fadas; histórias felizes sem fundamento na realidade.

Algumas delas vêm do próprio Sr. Trump. Por exemplo, ele afirmou que o dirigente da U.S. Steel ligou para ele para dizer que a empresa estava abrindo seis novas fábricas. Não estava, e até onde nós sabemos o tal telefonema nunca aconteceu.

Enquanto isso, as notícias são de que o Conselho de Assessores Econômicos produziu um relatório interno concluindo que a política comercial de Trump irá tirar empregos, e não criá-los. Kevin Hassett, o presidente, quando questionado sobre esses relatórios, disse que não podia negar nem confirmá-los; em outras palavras, eles são verdadeiros. Contudo, o Sr. Hassett também está dizendo que o corte de impostos sobre sociedades do ano passado conduziu a “um imenso volume de ativos voltando para casa” — o que é simplesmente falso. Algumas empresas estão rearranjando sua contabilidade, produzindo o que no papel se parece com dinheiro retornando aos Estados Unidos, o que é simplesmente falso. Algumas empresas estão reorganizando a contabilidade delas, produzindo o que se parece no papel com dinheiro voltando aos Estados Unidos, mas isso não tem efeito real algum no investimento ou nos empregos.

Mas a história mais potemkinesca da última semana foi a afirmação de Larry Kudlow, autoridade econômica máxima do governo, de que o déficit orçamentário está “diminuindo rapidamente” enquanto “aquelas receitas continuam a entrar”.

Na verdade, o déficit está aumentando depressa, principalmente por causa de uma despencada na receita dos impostos sobre sociedades – o resultado direto do corte tributário.

O governo posteriormente tentou recuar da afirmação do Sr. Kudlow, dizendo que ele estava falando de grandes coisas que vão acontecer no futuro, e não de eventos atuais. Tá certo.

Ou seja, o Sr. Trump e companhia estão fazendo declarações sobre os resultados das políticas deles que não têm relação com a realidade. Mas a realidade tem um viés liberal bastante conhecido. Será que o hábito do Sr. Trump de inventar coisas, além da disposição dos assessores dele de comemorar triunfos de política imaginários, vai fazer alguma diferença?

Na verdade, eu acho que podem fazer. A guerra comercial está escalando rapidamente, com nossos parceiros comerciais retaliando contra as ações dos EUA, além de rumores de que o Sr. Trump quer sair da Organização Mundial do Comércio. A última esperança para quebrar o ciclo de retaliação seria o Sr. Trump perceber que a guerra comercial está indo mal, respirar profundamente e recuar da beira do abismo.

Mas quem vai contar a ele como as coisas realmente estão indo? Considerando-se o que nós vimos nos últimos dias, os assessores dele vão responder a fechamentos de fábricas e tumultos econômicos com fantasias sobre conquistas, enquanto o Sr. Trump vai minimizar notícias sobre problemas como sendo fake news. A realidade vai levar um longo tempo para vir à tona, se é que isso acontecerá. E, até lá, o sistema comercial mundial pode estar quebrado além do conserto.