O poder da raiva particular fútil
Como o ódio irracional nos levou ao momento político em que vivemos
Da Redação
Publicado em 21 de março de 2019 às 14h49.
O artigo de hoje é sobre canudos de plástico, hambúrgueres e detergente de louça. E também sobre a Capitã Marvel.
Não, eu não perdi o juízo, ou pelo menos, acho que não. Mas um número considerável de gente perdeu, e a futilidade cheia de ódio delas é uma força mais importante na América de hoje do que nós gostaríamos de imaginar.
Meu ponto de partida é um tuíte do fim de semana do deputado Devin Nunes, republicano da Califórnia que presidiu o Comitê de Inteligência da Câmara, até a Casa mudar de mãos após as eleições de meio de mandato. Naquele cargo, Nunes basicamente serviu como o engavetador-geral da República de Donald Trump, fazendo tudo que pôde para impedir qualquer investigação real sobre um possível complô entre o comitê da campanha de 2016 de Trump e Vladimir Putin.
Mas esse tuíte não era sobre isso. Era sobre uma garçonete que, citando a “polícia do canudo”, perguntou à sua colega de mesa se eles iam querer canudos. “Bem-vindo ao Socialismo na Califórnia!”, trovejou o Sr. Nunes.
Se isso soa como uma aberração incomum – ele não teve um canudo negado, só foi perguntado se queria um -, as pessoas precisam entender que acessos de fúria causados por coisas aparentemente bobas são extremamente comuns na direita política. Segundo relatos, o momento mais aplaudido na Conferência da Ação Política Conservadora – que rendeu coros de “U.S.A., U.S.A.!” – foi a afirmação de que os democratas vão vir atrás dos seus hambúrgueres, do mesmo modo que Stalin faria. (Eles não virão e, só para constar, Stalin foi um assassino em massa, mas era objetivamente pró- burguer.)
Aliás, este não é um fenômeno novo. Tenho certeza de que os leitores podem lembrar de muitos outros exemplos, mas por acaso eu lembro de um post de 2009 do ativista de direita Erick Erickson que era praticamente uma incitação à violência: “Em que momento as pessoas mandam os políticos ir para o inferno? Em que momento elas levantam do sofá, marcham até a casa do seu deputado estadual, arrastam ele para fora e enchem ele de porrada?”
E qual foi a fonte da irritação dele? A observação de que o detergente pra louça não funciona tão bem sem os fosfatos.
O que todas essas coisas têm em comum? Todas envolvem casos em que escolhas individuais impõem custos a outras pessoas. Canudos de plástico realmente são uma fonte de poluição oceânica. Embora ninguém planeje banir carne, vacas flatulentas são de fato uma fonte importante de metano, um poderoso gás do efeito estufa. E fosfatos contribuem para a proliferação de algas tóxicas.
Porém, a raiva parece vir da sugestão de que todos esses custos impostos aos outros significam que homens brancos – ao que parece, são sempre homens brancos – deveriam considerar mudar seu comportamento, um pouco que seja, em nome do interesse público. O que nos traz à Capitã Marvel.
Para aqueles abençoadamente por fora do debate, o último filme de super-herói tem uma protagonista mulher, e a atriz que a interpreta, Brie Larson, vem expressando alguns pontos de vista ligeiramente feministas. E daí? Bem, para um número expressivo de homens, ao que parece isso tudo é extremamente ameaçador.
Multidões inundaram sites como rottentomatoes.com com críticas negativas antes mesmo do filme estrear, ou seja, antes mesmo de o terem assistido; o YouTube foi abarrotado de vídeos atacando o filme e prevendo que ele seria um fracasso estrondoso.
A fúria contra a Marvel visivelmente partiu da mesma mesquinhez patológica que gerou a fúria do canudo e a fúria do hambúrguer. No fim das contas, o filme parece ser um grande sucesso e vem recebendo avaliações favoráveis do público. Isso mostra que os homens preocupados portadores dessa síndrome são uma minoria relativamente pequena.
Só que não se trata de uma minoria sem influência. O Sr. Nunes esteve, durante algum tempo, entre os políticos mais importantes de Washington. O CPAC (sigla em inglês da Conferência da Ação Política Conservadora) define a pauta do partido que controla a Casa Branca e o Senado. Os comentários misóginos recém-revelados do apresentador da Fox News Tucker Carlson poderiam ter saído direto de uma daquelas intrigas anti-Brie Larson.
O ponto é que a raiva alucinada é um fator significativo da vida política americana atual, e em sua esmagadora maioria vem de um lado só. Todo o papo de “floquinhos de neve” liberais é na verdade projeção; se você quiser mesmo ver pessoas loucas com o que elas imaginam serem pequenos insultos e desfeitas, geralmente vai achar esse tipo de gente na direita. E não é só racismo e misoginia. Embora estes sejam componentes grandes do fenômeno, não vejo a conexão óbvia dos dois com a paranoia hamburguerística.
Só para esclarecer: parafraseando John Stuart Mill, não estou dizendo que a maioria dos conservadores vive cheia de raiva com coisas fúteis. Em vez disso, o que estou dizendo é que a maioria das pessoas cheias de ódio por coisas assim são conservadoras, e que elas fornecem muito da energia do movimento. Não quero me alongar muito, mas foi a mesquinhez patológica que quase com certeza levou Donald Trump ao topo na eleição de 2016.
A essa altura, provavelmente vocês querem saber o que eu acho que nós deveríamos fazer a esse respeito. A verdade é que eu não sei. Imagino que talvez seja possível defender a aplicação de taxas em lugar de regulamentações para controlar a poluição, já que você não vai dizer diretamente às pessoas o que fazer. Mas pode-se imaginar que as pessoas de quem eu estou falando ainda assim vão achar alguma outra coisa que vá deixá-las histéricas de novo.
No mínimo, porém, nós deveríamos notar o que está acontecendo. Pode ser confortante acreditar que a política é movida por considerações mais ou menos racionais sobre custos e benefícios. Mas a verdade é que muito dela é movido por uma raiva irracional.
Uma versão deste artigo apareceu na edição impressa do The New York Times do dia 12 de março de 2019, na página A23 do caderno de Nova York.
O artigo de hoje é sobre canudos de plástico, hambúrgueres e detergente de louça. E também sobre a Capitã Marvel.
Não, eu não perdi o juízo, ou pelo menos, acho que não. Mas um número considerável de gente perdeu, e a futilidade cheia de ódio delas é uma força mais importante na América de hoje do que nós gostaríamos de imaginar.
Meu ponto de partida é um tuíte do fim de semana do deputado Devin Nunes, republicano da Califórnia que presidiu o Comitê de Inteligência da Câmara, até a Casa mudar de mãos após as eleições de meio de mandato. Naquele cargo, Nunes basicamente serviu como o engavetador-geral da República de Donald Trump, fazendo tudo que pôde para impedir qualquer investigação real sobre um possível complô entre o comitê da campanha de 2016 de Trump e Vladimir Putin.
Mas esse tuíte não era sobre isso. Era sobre uma garçonete que, citando a “polícia do canudo”, perguntou à sua colega de mesa se eles iam querer canudos. “Bem-vindo ao Socialismo na Califórnia!”, trovejou o Sr. Nunes.
Se isso soa como uma aberração incomum – ele não teve um canudo negado, só foi perguntado se queria um -, as pessoas precisam entender que acessos de fúria causados por coisas aparentemente bobas são extremamente comuns na direita política. Segundo relatos, o momento mais aplaudido na Conferência da Ação Política Conservadora – que rendeu coros de “U.S.A., U.S.A.!” – foi a afirmação de que os democratas vão vir atrás dos seus hambúrgueres, do mesmo modo que Stalin faria. (Eles não virão e, só para constar, Stalin foi um assassino em massa, mas era objetivamente pró- burguer.)
Aliás, este não é um fenômeno novo. Tenho certeza de que os leitores podem lembrar de muitos outros exemplos, mas por acaso eu lembro de um post de 2009 do ativista de direita Erick Erickson que era praticamente uma incitação à violência: “Em que momento as pessoas mandam os políticos ir para o inferno? Em que momento elas levantam do sofá, marcham até a casa do seu deputado estadual, arrastam ele para fora e enchem ele de porrada?”
E qual foi a fonte da irritação dele? A observação de que o detergente pra louça não funciona tão bem sem os fosfatos.
O que todas essas coisas têm em comum? Todas envolvem casos em que escolhas individuais impõem custos a outras pessoas. Canudos de plástico realmente são uma fonte de poluição oceânica. Embora ninguém planeje banir carne, vacas flatulentas são de fato uma fonte importante de metano, um poderoso gás do efeito estufa. E fosfatos contribuem para a proliferação de algas tóxicas.
Porém, a raiva parece vir da sugestão de que todos esses custos impostos aos outros significam que homens brancos – ao que parece, são sempre homens brancos – deveriam considerar mudar seu comportamento, um pouco que seja, em nome do interesse público. O que nos traz à Capitã Marvel.
Para aqueles abençoadamente por fora do debate, o último filme de super-herói tem uma protagonista mulher, e a atriz que a interpreta, Brie Larson, vem expressando alguns pontos de vista ligeiramente feministas. E daí? Bem, para um número expressivo de homens, ao que parece isso tudo é extremamente ameaçador.
Multidões inundaram sites como rottentomatoes.com com críticas negativas antes mesmo do filme estrear, ou seja, antes mesmo de o terem assistido; o YouTube foi abarrotado de vídeos atacando o filme e prevendo que ele seria um fracasso estrondoso.
A fúria contra a Marvel visivelmente partiu da mesma mesquinhez patológica que gerou a fúria do canudo e a fúria do hambúrguer. No fim das contas, o filme parece ser um grande sucesso e vem recebendo avaliações favoráveis do público. Isso mostra que os homens preocupados portadores dessa síndrome são uma minoria relativamente pequena.
Só que não se trata de uma minoria sem influência. O Sr. Nunes esteve, durante algum tempo, entre os políticos mais importantes de Washington. O CPAC (sigla em inglês da Conferência da Ação Política Conservadora) define a pauta do partido que controla a Casa Branca e o Senado. Os comentários misóginos recém-revelados do apresentador da Fox News Tucker Carlson poderiam ter saído direto de uma daquelas intrigas anti-Brie Larson.
O ponto é que a raiva alucinada é um fator significativo da vida política americana atual, e em sua esmagadora maioria vem de um lado só. Todo o papo de “floquinhos de neve” liberais é na verdade projeção; se você quiser mesmo ver pessoas loucas com o que elas imaginam serem pequenos insultos e desfeitas, geralmente vai achar esse tipo de gente na direita. E não é só racismo e misoginia. Embora estes sejam componentes grandes do fenômeno, não vejo a conexão óbvia dos dois com a paranoia hamburguerística.
Só para esclarecer: parafraseando John Stuart Mill, não estou dizendo que a maioria dos conservadores vive cheia de raiva com coisas fúteis. Em vez disso, o que estou dizendo é que a maioria das pessoas cheias de ódio por coisas assim são conservadoras, e que elas fornecem muito da energia do movimento. Não quero me alongar muito, mas foi a mesquinhez patológica que quase com certeza levou Donald Trump ao topo na eleição de 2016.
A essa altura, provavelmente vocês querem saber o que eu acho que nós deveríamos fazer a esse respeito. A verdade é que eu não sei. Imagino que talvez seja possível defender a aplicação de taxas em lugar de regulamentações para controlar a poluição, já que você não vai dizer diretamente às pessoas o que fazer. Mas pode-se imaginar que as pessoas de quem eu estou falando ainda assim vão achar alguma outra coisa que vá deixá-las histéricas de novo.
No mínimo, porém, nós deveríamos notar o que está acontecendo. Pode ser confortante acreditar que a política é movida por considerações mais ou menos racionais sobre custos e benefícios. Mas a verdade é que muito dela é movido por uma raiva irracional.
Uma versão deste artigo apareceu na edição impressa do The New York Times do dia 12 de março de 2019, na página A23 do caderno de Nova York.