O legado do pecado original da América
Ainda que os americanos estejam cada vez mais tolerantes como indivíduos, as tensões raciais continuam a ser exacerbadas por políticos cínicos
Janaína Ribeiro
Publicado em 8 de junho de 2020 às 15h52.
Última atualização em 8 de junho de 2020 às 16h10.
São dias de luto para aqueles de nós que amam a América e a promessa dela; eu sei de pessoas que têm ido às lágrimas espontaneamente, e o resto de nós está vagando sem rumo em um tipo de estupor.
Todo dia, ao que parece, traz outro indicativo do nosso declínio: o país do “é possível” está se tornando uma terra que não consegue cuidar de uma pandemia, o líder do mundo livre vem se tornando um destruidor de instituições internacionais, o berço da democracia moderna é governado por candidatos a tiranos. Como é que as coisas podem ter dado tão errado tão depressa?
Bem, nós sabemos a resposta. Como Joe Biden disse recentemente, “o pecado original da escravidão mancha hoje o nosso país”.
Amigos não-americanos às vezes me perguntam por que o país mais rico do mundo não tem um serviço universal de saúde pública. A resposta é raça: Nós quase conseguimos cobertura universal em 1947, mas os segregacionistas a barraram por medo de que isso fosse levar a hospitais livres de segregação racial (o que o Medicare de fato fez na década de 60). A maioria dos Estados que têm se recusado a ampliar a cobertura do Medicaid de acordo com a Lei do Acesso Acessível aos Serviços de Saúde, ainda que o governo federal vá arcar com a maior parte dos custos, é de Estados que eram escravagistas.
O economista ítalo-americano Alberto Alesina morreu subitamente em 23 de março; entre seu melhor trabalho estava um artigo conjunto que examinava as razões pelas quais a América não tem um estado de assistência social nos moldes da Europa. A resposta, fartamente documentada, estava na divisão racial: Na América, muitos de nós enxergam os contemplados por tal auxílio como Essa Gente, e não como nós.
Sim, a América é efetivamente uma sociedade bem menos racista do que costumava ser. Em 1969, apenas 17% dos americanos brancos eram favoráveis ao casamento entre negros e brancos. Mesmo no primeiro mandato presidencial de Ronald Reagan este percentual não passou de 38%. Em 2013, ele chegou a 84%. (A propósito, minha mulher é afro-americana.)
Mas, como diria George Floyd se estivesse vivo, o racismo está muito longe do fim. E ainda que os americanos estejam cada vez mais tolerantes como indivíduos, as tensões raciais continuam a ser exacerbadas por políticos cínicos, que exploram o racismo branco para vender políticas econômicas que na prática prejudicam os trabalhadores, qualquer que seja a cor de sua pele.
E o antagonismo racial, com certeza, é o que permitiu a Donald Trump se tornar presidente. É difícil imaginar alguém menos apto para o cargo, tanto do ponto do vista intelectual quanto moral. Mas ele é um excelente hater, capaz de invocar vários demônios – há muito mais insultos e ameaças antissemitas na minha caixa de entrada do que nunca. E o apelo de Trump ao preconceito deu a ele uma base fiel.
De modo que hoje nós estamos em um momento de crise, em que todas as coisas boas que a América representa correm perigo por causa do legado venenoso do nosso pecado original. Será que vamos sair dessa? Honestamente, não tenho muita certeza de que conseguiremos.
São dias de luto para aqueles de nós que amam a América e a promessa dela; eu sei de pessoas que têm ido às lágrimas espontaneamente, e o resto de nós está vagando sem rumo em um tipo de estupor.
Todo dia, ao que parece, traz outro indicativo do nosso declínio: o país do “é possível” está se tornando uma terra que não consegue cuidar de uma pandemia, o líder do mundo livre vem se tornando um destruidor de instituições internacionais, o berço da democracia moderna é governado por candidatos a tiranos. Como é que as coisas podem ter dado tão errado tão depressa?
Bem, nós sabemos a resposta. Como Joe Biden disse recentemente, “o pecado original da escravidão mancha hoje o nosso país”.
Amigos não-americanos às vezes me perguntam por que o país mais rico do mundo não tem um serviço universal de saúde pública. A resposta é raça: Nós quase conseguimos cobertura universal em 1947, mas os segregacionistas a barraram por medo de que isso fosse levar a hospitais livres de segregação racial (o que o Medicare de fato fez na década de 60). A maioria dos Estados que têm se recusado a ampliar a cobertura do Medicaid de acordo com a Lei do Acesso Acessível aos Serviços de Saúde, ainda que o governo federal vá arcar com a maior parte dos custos, é de Estados que eram escravagistas.
O economista ítalo-americano Alberto Alesina morreu subitamente em 23 de março; entre seu melhor trabalho estava um artigo conjunto que examinava as razões pelas quais a América não tem um estado de assistência social nos moldes da Europa. A resposta, fartamente documentada, estava na divisão racial: Na América, muitos de nós enxergam os contemplados por tal auxílio como Essa Gente, e não como nós.
Sim, a América é efetivamente uma sociedade bem menos racista do que costumava ser. Em 1969, apenas 17% dos americanos brancos eram favoráveis ao casamento entre negros e brancos. Mesmo no primeiro mandato presidencial de Ronald Reagan este percentual não passou de 38%. Em 2013, ele chegou a 84%. (A propósito, minha mulher é afro-americana.)
Mas, como diria George Floyd se estivesse vivo, o racismo está muito longe do fim. E ainda que os americanos estejam cada vez mais tolerantes como indivíduos, as tensões raciais continuam a ser exacerbadas por políticos cínicos, que exploram o racismo branco para vender políticas econômicas que na prática prejudicam os trabalhadores, qualquer que seja a cor de sua pele.
E o antagonismo racial, com certeza, é o que permitiu a Donald Trump se tornar presidente. É difícil imaginar alguém menos apto para o cargo, tanto do ponto do vista intelectual quanto moral. Mas ele é um excelente hater, capaz de invocar vários demônios – há muito mais insultos e ameaças antissemitas na minha caixa de entrada do que nunca. E o apelo de Trump ao preconceito deu a ele uma base fiel.
De modo que hoje nós estamos em um momento de crise, em que todas as coisas boas que a América representa correm perigo por causa do legado venenoso do nosso pecado original. Será que vamos sair dessa? Honestamente, não tenho muita certeza de que conseguiremos.