O grande roubo da isenção fiscal
O Partido Republicano finge ter objetivos liberais, como a redução da pobreza ou uma cobertura de saúde ampla, mas se recusa a gastar com esses objetivos
Publicado em 10 de setembro de 2019 às, 14h02.
Última atualização em 10 de setembro de 2019 às, 19h05.
Fraudes fiscais são o tributo que o vício da política econômica paga à virtude da política econômica.
Recentemente o New York Times publicou reportagens sobre um abuso generalizado de uma cláusula do corte de impostos de 2017 de Trump que deveria ajudar os trabalhadores urbanos. A norma criou uma isenção tributária para investimentos nas assim chamadas zonas de oportunidade, o que ajudaria a gerar empregos em regiões que de outra forma seriam consideradas de baixa renda. Na prática, o alívio fiscal vem sendo usado para ajudar hotéis de prédios de apartamentos de luxo, depósitos que empregam quase nenhum funcionário e assim por diante. Além disso, ele tornou vários investidores ricos e com bons contatos – inclusive a família de Jared Kushner, cunhado de Trump – ainda mais ricos.
É uma história e tanto. Mas que deveria ser entendida dentro de um contexto mais amplo, como um sintoma da indisposição do Partido Republicano em desempenhar as funções básicas de governo.
Para começar, o fiasco da zona de oportunidade não é o único exemplo de abuso facilitado pelo corte de impostos de Trump, que está cheio de brechas destrutivas. É isto, afinal de contas, que se espera que aconteça quando você empurra um projeto de milhares de trilhões de dólares para o Congresso sem realizar uma única audiência pública, presumivelmente por medo de que ela fosse rejeitada caso qualquer um tivesse tempo de entender o que havia na proposta. A redação do projeto foi tão corrida que várias cláusulas foram literalmente escritas à mão no último minuto.
Entre outras coisas, o toque de caixa significava que muito da proposta foi escrito por lobistas atuando em defesa de seus clientes. Ou seja, não deveria ser surpresa que uma cláusula vendida como uma política para ajudar os pobres acabasse sendo um presente para os fundos especulativos e incorporadoras.
Além disso, o caso da zona de oportunidade reflete a realidade de que os republicanos não estão mais dispostos a gastar dinheiro público em nome do interesse público.
Não quero dizer que o Partido Republicano esteja comprometido com um governo limitado, o que de qualquer modo seria coerente. Se os republicanos estivessem dispostos a declarar “nós não ligamos para os pobres”, ou mesmo “nós ligamos para os pobres, só não achamos que combater a pobreza é um papel apropriado para o governo”, no mínimo eles demonstrariam a virtude da consistência intelectual.
De fato, o Partido Republicano moderno finge compartilhar objetivos tradicionalmente liberais, como a redução da pobreza ou uma cobertura de saúde ampliada. Só que ele se recusa a gastar dinheiro com esses objetivos, tentando em vez disso subornar investidores privados para atenderem a esses objetivos oferecendo a eles isenções fiscais direcionadas.
Dá para ver essa síndrome em várias áreas. Pegue o problema da infraestrutura americana em ruínas, que Trump afirmou que arrumaria, e que é uma área em que ele talvez pudesse obter apoio bipartidário. Por que nada aconteceu neste campo? Por que a “semana da infraestrutura” virou alvo de chacota política?
Grande parte da explicação é que nem o governo Trump e nem os republicanos no Congresso têm se mostrado dispostos sequer a pensar sobre a ideia de construir infraestrutura à base de, imagine só, construir infraestrutura.
Alguém poderia imaginar que neste momento faça sentido argumentar a favor de um envolvimento em gastos com obras públicas à moda antiga. Afinal, a necessidade de novos investimentos é óbvia, e os custos de financiamento do governo estão extremamente baixos. (Os títulos de dez anos protegidos da inflação estão pagando juros negativos, na verdade.) Por que não pegar algum dinheiro emprestado e pôr a mão na massa nessas pontes?
Acontece que não é assim que os republicanos modernos agem. A coisa mais próxima de um plano de infraestrutura que nós vimos de Trump foi uma proposta não de gastos públicos, mas de enormes créditos fiscais para construtoras privadas. E na prática o plano teria sido muito mais uma privatização dos bens públicos do que uma promoção de novos investimentos.
Até onde eu me lembro, a última vez em que os republicanos estiveram dispostos a gastar quantidades grandes de dinheiro público em nome do bem público foi em 1997, quando eles concordaram em criar o Programa de Cobertura de Saúde Infantil – que aliás, foi bastante bem-sucedido. Desde então, a coisa se resumiu a política econômica por meio de cortes de impostos – o que tem falhado de modo consistente, por pelo menos três motivos.
Primeiro, tais políticas raramente “transbordam” para as pessoas que supostamente pretendiam beneficiar. As zonas de oportunidade não são a única parte do corte de impostos de 2017 que vem falhando em suas promessas de modo notável; lembram de quando os cortes nos impostos das empresas levariam a uma disparada nos salários dos trabalhadores comuns?
Segundo, os principais beneficiários dos cortes de impostos direcionados tendem, de modo consistente, a ser um grupo pequeno de indivíduos ricos. Outra cláusula da lei de 2017 era uma que supostamente visava ajudar aos pequenos empresários; na verdade, 61% dos benefícios da lei estão indo para o topo das famílias do 1%.
Finalmente, cortes de impostos seletivos geralmente acabam propiciando principalmente jeitos novos e melhores de evitar pagar impostos. Gente rica com contadores espertos não tem dificuldade para se passar por donos de pequenas empresas, construtoras que ajudam as comunidades pobres ou o que quer que os criadores destes respiros tributários estejam ostensivamente tentando promover.
A questão, de novo, é que ninguém deveria pensar no fiasco das zonas de oportunidade como um erro isolado. Coisas assim são inevitáveis quando um dos nossos principais partidos políticos basicamente dá as costas à própria ideia de gastos públicos produtivos.
Uma versão deste artigo foi publicada em 3 de setembro de 2019.