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O coma induzido da economia

Estamos passando pelo equivalente econômico de um coma induzido, em que algumas funções cognitivas são fechadas para dar ao paciente tempo para se recuperar

FEDERAL RESERVE: o banco norte-americano já injetou quase US$ 2 trilhões na economia. / REUTERS/Kevin Lamarque
DR

Da Redação

Publicado em 13 de abril de 2020 às 14h25.

A contração econômica que nós estamos vivendo é a mais rápida da história, por uma margem ampla; os EUA provavelmente estão perdendo tantos empregos nas últimas duas ou três semanas quanto em toda a Grande Recessão. A resposta da política econômica também é gigantesca, várias vezes maior que uma fração do produto interno bruto comparada aos incentivos de Obama.

Mas me parece que nós ainda não estamos discutindo de modo muito claro a economia do que está havendo, por que nós estamos fazendo isso e que consequências tudo isso vai ter no longo prazo, quando a pandemia acabar. Assim, venho tentando pensar nisso tudo a partir de um modelo simples – não um que envolva equações explícitas, embora eu não ache que isso seria difícil.

A principal moral desta análise é que o que nós devíamos fazer – e, até certo ponto, o que nós estamos fazendo – é muito mais auxílio a desastres que incentivos fiscais normais, embora também haja um elemento de estímulo. Este auxílio pode e deve ser financiado pela dívida. Pode haver uma ligeira ressaca destes empréstimos, mas ela não deve provocar nenhum grande problema.

A natureza do problema

O que nós estamos experimentando não é uma recessão convencional causada por uma queda na demanda agregada. Em vez disso, estamos passando pelo equivalente econômico de um coma induzido, em que algumas funções cognitivas são fechadas de propósito para dar ao paciente tempo para se recuperar.

Para simplificar as coisas, pensem na economia como algo dividido em dois setores, o de serviços não-essenciais (N) que nós podemos interromper para limitar as interações humanas – e portanto a propagação da doença -, e o de serviços essenciais (E) que nós não podemos fechar (ou talvez não precisemos, porque eles não envolvem interações pessoais). Nós podemos e devíamos fechar o setor N até que uma combinação de imunização crescente, testagem ampla para identificar e isolar casos rapidamente e, com muita sorte, uma vacina nos permita voltar à vida normal.

Para aqueles de nós (como é o meu caso) que ainda recebem o contracheque em dia, este período de fechamento – vamos chamar de coronacoma – vai ser incômodo, mas nada grave. Eu sinto falta de cafés e shows, mas posso viver sem eles pelo tempo que for necessário.

Porém, as coisas vão ser muito diferentes e sombrias para aqueles privados de sua renda normal enquanto durar o coronacoma. Este grupo inclui muitos trabalhadores e pequenas empresas; ele inclui também governos estaduais e municipais, que são cobrados por lei para equilibrar seus orçamentos e estão vendo receitas em queda e gastos em disparada.

Qual o tamanho do setor N? Miguel Faria-e-Castro, do banco do Federal Reserve de St. Louis, resume as melhores estimativas possíveis para o momento: de 27 a 67 milhões de pessoas, que ele situa em uma média de 47 milhões. É bastante gente; nós podemos estar diante de uma queda temporária no produto interno bruto real de 30% ou mais. Mas essa redução não é o problema, uma vez que a é a contrapartida necessária do distanciamento social que nós temos de fazer.

O problema mesmo é como limitar as dificuldades daqueles cuja renda normal está sendo cortada.

Auxílio de desastres, com notas de incentivo

O que se pode fazer para ajudar aqueles separados de suas rendas tradicionais durante este período de fechamento nacional dos EUA? Eles não precisam de empregos – nós não queremos essas pessoas trabalhando em uma época em que as rotinas normais de trabalho podem espalhar uma doença fatal. O que eles precisam, em vez disso, é de dinheiro. Ou seja, o que é necessário agora é um auxílio de desastres, e não um incentivo econômico.

Vamos detalhar isso melhor. Alguns trabalhadores parados conseguem mudar de função de modo relativamente rápido – digamos, um motorista de Uber que faz entregas para a Amazon. Mas isso não dá para absorver mais do que uma pequena fração da mão de obra parada.

Um ponto mais importante é que, se nós não oferecermos ajuda suficiente para aqueles afetados pela crise, eles serão forçados a cortar radicalmente seus gastos até mesmo em produtos e serviços que nós ainda conseguimos produzir, o que causará uma alta súbita e gratuita no desemprego (além de um processo de multiplicação, à medida que os trabalhadores demitidos vão cortar ainda mais os gastos). Ou seja, a ajuda àqueles no setor fechado de fato inclui um elemento de incentivo fiscal convencional, embora esse não seja seu principal objetivo.

Por fim, a súbita interrupção nas fontes de receita de diversas empresas tem criado estresses financeiros que lembram os de 2008-9, com os preços dos ativos de risco despencando e os investidores tentando faturar com títulos públicos. Ou seja, o Federal Reserve americano tem razão de ir para cima com tudo – fazendo “o que for preciso” – para estabilizar os mercados financeiros.

Em outras palavras, há partes desta crise que lembram um combate convencional à recessão. Mas a questão principal ainda é o auxílio a desastres para aqueles mais atingidos pelo lockdown.

Como nós pagamos pelo auxílio?

De onde o governo vai tirar o dinheiro para a liberação dos US$ 2 trilhões que o Congresso americano já aprovou, uma medida que é muito melhor que nada mas que ainda está muito longe do que nós devíamos fazer? A resposta é: empréstimos. As taxas de juros reais sobre empréstimos federais estão negativas; os mercados basicamente estão implorando para o governo pegar o dinheiro deles.

Mas por que os empréstimos estão tão baratos? De onde vem o dinheiro? A resposta é que ele vem de poupanças privadas que não têm mais para onde ir. Quando nós finalmente tivermos os dados sobre o que está acontecendo agora, com certeza veremos uma alta grande nas poupanças privadas, à medida que as pessoas param de comprar o que não podem, e uma queda nos investimentos privados, por que quem é que vai comprar uma casa ou um escritório em meio a uma peste?

Ou seja, o setor privado vai ter um grande superávit financeiro disponível para emprestar para o governo. E agora não é a hora de se preocupar, nem um pouco que seja, com o volume da dívida pública.

Uma hora a pandemia acaba. Vai haver uma ressaca da dívida?

Do ponto de vista da solvência do governo, nenhuma. Nós vivemos em um mundo em que as taxas de juros estão consistentemente abaixo do índice de crescimento, de modo que a dívida do governo derrete em vez de virar uma bola de neve. O governo não vai ter de devolver o dinheiro que emprestar, apenas retorná-lo a níveis sustentáveis de déficit (que não são zero) e deixar a proporção dívida em relação ao produto interno bruto diminuir com o tempo.

Pode haver, contudo, um ligeiro problema macroeconômico quando a pandemia acabar. O setor privado terá acumulado vários trilhões de dólares à sua fortuna por meio de uma poupança mais ou menos forçada; entre o aumento dessa riqueza e, talvez, uma demanda reprimida, pode ( pode) haver algum superaquecimento inflacionário quando as coisas voltarem a algo parecido com a normalidade.

Este pode ser um não-problema em uma era de estagnação secular, em que nós podemos acolher a demanda extra. Mesmo que seja um problema, porém, é improvável,olhando-se os números, que seja algo que o Fed não possa conter com taxas de juros modestamente maiores. Pode-se imaginar um mundo em que os custos imediatos da crise em algum momento exijam uma certa austeridade fiscal no futuro, mas não acho que estejamos vivendo em um mundo assim.

Vou resumir onde estamos. Nós estamos lidando com um período de duração incerta em que muito da economia pode e deve ser fechado. O objetivo principal da política econômica durante este período não devia ser o de incentivar o PIB, e sim aliviar as dificuldades pelas quais passam aqueles privados de suas rendas normais. E o governo pode simplesmente emprestar o dinheiro de que necessita para fazer isso.

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A contração econômica que nós estamos vivendo é a mais rápida da história, por uma margem ampla; os EUA provavelmente estão perdendo tantos empregos nas últimas duas ou três semanas quanto em toda a Grande Recessão. A resposta da política econômica também é gigantesca, várias vezes maior que uma fração do produto interno bruto comparada aos incentivos de Obama.

Mas me parece que nós ainda não estamos discutindo de modo muito claro a economia do que está havendo, por que nós estamos fazendo isso e que consequências tudo isso vai ter no longo prazo, quando a pandemia acabar. Assim, venho tentando pensar nisso tudo a partir de um modelo simples – não um que envolva equações explícitas, embora eu não ache que isso seria difícil.

A principal moral desta análise é que o que nós devíamos fazer – e, até certo ponto, o que nós estamos fazendo – é muito mais auxílio a desastres que incentivos fiscais normais, embora também haja um elemento de estímulo. Este auxílio pode e deve ser financiado pela dívida. Pode haver uma ligeira ressaca destes empréstimos, mas ela não deve provocar nenhum grande problema.

A natureza do problema

O que nós estamos experimentando não é uma recessão convencional causada por uma queda na demanda agregada. Em vez disso, estamos passando pelo equivalente econômico de um coma induzido, em que algumas funções cognitivas são fechadas de propósito para dar ao paciente tempo para se recuperar.

Para simplificar as coisas, pensem na economia como algo dividido em dois setores, o de serviços não-essenciais (N) que nós podemos interromper para limitar as interações humanas – e portanto a propagação da doença -, e o de serviços essenciais (E) que nós não podemos fechar (ou talvez não precisemos, porque eles não envolvem interações pessoais). Nós podemos e devíamos fechar o setor N até que uma combinação de imunização crescente, testagem ampla para identificar e isolar casos rapidamente e, com muita sorte, uma vacina nos permita voltar à vida normal.

Para aqueles de nós (como é o meu caso) que ainda recebem o contracheque em dia, este período de fechamento – vamos chamar de coronacoma – vai ser incômodo, mas nada grave. Eu sinto falta de cafés e shows, mas posso viver sem eles pelo tempo que for necessário.

Porém, as coisas vão ser muito diferentes e sombrias para aqueles privados de sua renda normal enquanto durar o coronacoma. Este grupo inclui muitos trabalhadores e pequenas empresas; ele inclui também governos estaduais e municipais, que são cobrados por lei para equilibrar seus orçamentos e estão vendo receitas em queda e gastos em disparada.

Qual o tamanho do setor N? Miguel Faria-e-Castro, do banco do Federal Reserve de St. Louis, resume as melhores estimativas possíveis para o momento: de 27 a 67 milhões de pessoas, que ele situa em uma média de 47 milhões. É bastante gente; nós podemos estar diante de uma queda temporária no produto interno bruto real de 30% ou mais. Mas essa redução não é o problema, uma vez que a é a contrapartida necessária do distanciamento social que nós temos de fazer.

O problema mesmo é como limitar as dificuldades daqueles cuja renda normal está sendo cortada.

Auxílio de desastres, com notas de incentivo

O que se pode fazer para ajudar aqueles separados de suas rendas tradicionais durante este período de fechamento nacional dos EUA? Eles não precisam de empregos – nós não queremos essas pessoas trabalhando em uma época em que as rotinas normais de trabalho podem espalhar uma doença fatal. O que eles precisam, em vez disso, é de dinheiro. Ou seja, o que é necessário agora é um auxílio de desastres, e não um incentivo econômico.

Vamos detalhar isso melhor. Alguns trabalhadores parados conseguem mudar de função de modo relativamente rápido – digamos, um motorista de Uber que faz entregas para a Amazon. Mas isso não dá para absorver mais do que uma pequena fração da mão de obra parada.

Um ponto mais importante é que, se nós não oferecermos ajuda suficiente para aqueles afetados pela crise, eles serão forçados a cortar radicalmente seus gastos até mesmo em produtos e serviços que nós ainda conseguimos produzir, o que causará uma alta súbita e gratuita no desemprego (além de um processo de multiplicação, à medida que os trabalhadores demitidos vão cortar ainda mais os gastos). Ou seja, a ajuda àqueles no setor fechado de fato inclui um elemento de incentivo fiscal convencional, embora esse não seja seu principal objetivo.

Por fim, a súbita interrupção nas fontes de receita de diversas empresas tem criado estresses financeiros que lembram os de 2008-9, com os preços dos ativos de risco despencando e os investidores tentando faturar com títulos públicos. Ou seja, o Federal Reserve americano tem razão de ir para cima com tudo – fazendo “o que for preciso” – para estabilizar os mercados financeiros.

Em outras palavras, há partes desta crise que lembram um combate convencional à recessão. Mas a questão principal ainda é o auxílio a desastres para aqueles mais atingidos pelo lockdown.

Como nós pagamos pelo auxílio?

De onde o governo vai tirar o dinheiro para a liberação dos US$ 2 trilhões que o Congresso americano já aprovou, uma medida que é muito melhor que nada mas que ainda está muito longe do que nós devíamos fazer? A resposta é: empréstimos. As taxas de juros reais sobre empréstimos federais estão negativas; os mercados basicamente estão implorando para o governo pegar o dinheiro deles.

Mas por que os empréstimos estão tão baratos? De onde vem o dinheiro? A resposta é que ele vem de poupanças privadas que não têm mais para onde ir. Quando nós finalmente tivermos os dados sobre o que está acontecendo agora, com certeza veremos uma alta grande nas poupanças privadas, à medida que as pessoas param de comprar o que não podem, e uma queda nos investimentos privados, por que quem é que vai comprar uma casa ou um escritório em meio a uma peste?

Ou seja, o setor privado vai ter um grande superávit financeiro disponível para emprestar para o governo. E agora não é a hora de se preocupar, nem um pouco que seja, com o volume da dívida pública.

Uma hora a pandemia acaba. Vai haver uma ressaca da dívida?

Do ponto de vista da solvência do governo, nenhuma. Nós vivemos em um mundo em que as taxas de juros estão consistentemente abaixo do índice de crescimento, de modo que a dívida do governo derrete em vez de virar uma bola de neve. O governo não vai ter de devolver o dinheiro que emprestar, apenas retorná-lo a níveis sustentáveis de déficit (que não são zero) e deixar a proporção dívida em relação ao produto interno bruto diminuir com o tempo.

Pode haver, contudo, um ligeiro problema macroeconômico quando a pandemia acabar. O setor privado terá acumulado vários trilhões de dólares à sua fortuna por meio de uma poupança mais ou menos forçada; entre o aumento dessa riqueza e, talvez, uma demanda reprimida, pode ( pode) haver algum superaquecimento inflacionário quando as coisas voltarem a algo parecido com a normalidade.

Este pode ser um não-problema em uma era de estagnação secular, em que nós podemos acolher a demanda extra. Mesmo que seja um problema, porém, é improvável,olhando-se os números, que seja algo que o Fed não possa conter com taxas de juros modestamente maiores. Pode-se imaginar um mundo em que os custos imediatos da crise em algum momento exijam uma certa austeridade fiscal no futuro, mas não acho que estejamos vivendo em um mundo assim.

Vou resumir onde estamos. Nós estamos lidando com um período de duração incerta em que muito da economia pode e deve ser fechado. O objetivo principal da política econômica durante este período não devia ser o de incentivar o PIB, e sim aliviar as dificuldades pelas quais passam aqueles privados de suas rendas normais. E o governo pode simplesmente emprestar o dinheiro de que necessita para fazer isso.

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