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Escapando da armadilha do Medicare

Todo país desenvolvido com exceção dos EUA conseguiu implementar uma cobertura universal de saúde, mas muitos deles chegaram lá por meio de regulamentações e subsídios, sem depender exclusivamente de financiamento público

ELIZABETH WARREN: uma das maiores bandeiras da pré-candidata democrata à presidência é o “Madicare para todos”  / REUTERS/Brian Snyder
ELIZABETH WARREN: uma das maiores bandeiras da pré-candidata democrata à presidência é o “Madicare para todos” / REUTERS/Brian Snyder
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Paul Krugman

Publicado em 30 de outubro de 2019 às, 13h37.

Recentemente, a senadora Elizabeth Warren disse que divulgaria um plano em breve para  explicar como ela pretende bancar o “Medicare para todos”. Como muitos comentaristas de política, eu não vejo a hora de ler isso; este pode ser o momento crucial da campanha dela, e talvez até mesmo da eleição presidencial de 2020.

Há três coisas que qualquer pessoa precisa saber sobre o Medicare para todos, que no debate atual veio a significar um sistema de serviço público de saúde de pagador único, com o governo cuidando de toda a cobertura, sem um papel para os convênios particulares.

Em primeiro lugar, o sistema de pagador único é muito recomendado como uma das formas de se chegar ao acesso universal à saúde. Não é o único jeito – todo país desenvolvido grande com exceção dos Estados Unidos conseguiu implementar uma cobertura universal de saúde, mas muitos deles chegaram lá por meio de regulamentações e subsídios, em vez de depender exclusivamente de financiamento público. Mesmo assim, o sistema de pagador único é simples e limpo, e muitos economistas voltados à área da saúde o apoiariam caso os Estados Unidos fossem criar algo do zero.

Só que nós não estamos começando do zero, o que é a segunda coisa que qualquer pessoa precisa saber. Mais da metade dos americanos tem cobertura de um convênio de saúde particular, a maioria oferecida por seus empregadores.

Não são muitas as pessoas que adoram seus planos médicos privados, mas isso não quer dizer que elas mal possam esperar para trocar o serviço que elas conhecem por um sistema novo que desconhecem. A maioria das pessoas provavelmente estaria melhor sob um sistema de pagador único, mas seria um tanto complicado convencê-las disso; as pesquisas mostram um apoio muito menor ao Medicare para todos do que a um plano com uma “opção pública” no qual as pessoas poderiam manter o convênio particular se quisessem.

O que me traz ao terceiro ponto: Na verdade, o sistema de pagador único não vai acontecer tão cedo. Mesmo que os democratas ganhem de lavada em 2020, assumindo o controle tanto do Senado quanto da Casa Branca, é pouco provável que eles terão os votos necessários para acabar com os convênios médicos particulares.

Warren, que vem fazendo da seriedade política um ponto-chave de sua persona política – daí o slogan “Warren tem um plano para isso” – sem dúvida está ciente de tudo isso. E no começo deste ano ela pareceu entender os problemas de um sistema de pagador único, ao declarar que estava aberta a diferentes caminhos para se chegar a uma cobertura universal.

Desde então, porém, ela parece ter abraçado com força a possibilidade de eliminar os planos privados.

Não tenho nenhuma informação de bastidor sobre o que a levou a adotar essa posição, mas meu palpite é que ela estava tentando proteger sua base à esquerda – para evitar afastar os apoiadores do senador Bernie Sanders, que têm feito do sistema de pagador único uma espécie de teste de pureza pelo qual todo mundo precisa passar para ser considerado um progressista de verdade. E não vou ser eu a criticá-la por praticar um pouco de realismo político; afinal, o argumento contra o Medicare para todos é basicamente político por si só.

A essa altura, contudo, está parecendo que talvez Warren tenha se colocado em um beco sem saída.

Uma arte, mas só uma parte, do problema tem a ver com o custo.

Os jornalistas vêm importunando Warren para ser mais específica sobre quanto os impostos teriam de subir para pagar pela versão dela do Medicare para todos. Ela tem insistido, e é algo até que justo, que esse é um jeito ruim de tratar a discussão, uma vez que quaisquer impostos adicionais seriam compensados pela economia nos elevados prêmios que os trabalhadores e suas famílias pagam hoje pelos planos privados – na média, mais de US$ 20 mil por ano para um convênio com cobertura para uma família inteira.

A pergunta certa é se os custos totais das famílias americanas subiriam ou diminuiriam. Warren tem afirmado que, para a maioria das famílias, eles diminuiriam, mas não ofereceu nada específico. E essa falta de clareza, que está começando a parecer como uma manobra evasiva, é um problema maior para ela do que talvez fosse para outros políticos. Como eu disse, Warren tem feito da seriedade na política um aspecto chave da persona política dela, de modo que de fato chama a atenção a nebulosidade dela no tema do acesso à saúde pública.

Presume-se que o plano que está em estudos vai tentar dispersar esta névoa, mas vai ser complicado fazer isso. Uma estimativa independente do Urban Institute (que tem uma tendência de se posicionar à esquerda, até onde se sabe) sugere que um plano Medicare para todos de grande abrangência, parecido com o que o senador Sanders vem propondo, aumentaria de modo significativo o gasto geral com a saúde, embora um plano mais modesto não tenha o mesmo impacto.

Porém, o custo não é o único problema. De fato, não sei quão importante isso é de fato, uma vez que a abolição completa dos planos particulares parece improvável na prática. Além disso, vamos falar sério: Se Warren conseguir a indicação dos democratas, o resultado da eleição geral não vai depender do conflito de estimativas entre think tanks rivais.

Já a eleição, porém, pode depender do apoio das pessoas que têm bons planos privados de saúde e que talvez estejam nervosas quanto à possibilidade de dar um salto no desconhecido, não importa quantos fatos e números Warren use.

Ou seja, o que eu vou querer ver é se Warren dá a si mesma e ao partido dela flexibilidade suficiente para dissipar estas preocupações. Não estou certo sobre que forma esta flexibilidade pode ter. Talvez alguma coisa na linha de um período de transição expandido, com uma versão em muitos aspectos melhorada Obamacare (o que talvez seja politicamente viável) neste período de mudança?

O que quer que Warren apresente, este é um momento crucial. Há várias coisas excelentes na pauta política geral dela, mas ela não vai ter a chance de fazê-las a menos que consiga se liberar do que parece uma armadilha na política de saúde.